SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número94Reclaim the streets: o protestival e a transformação criativa da cidadeIniciativas locais e luta contra a pobreza e a exclusão índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Finisterra - Revista Portuguesa de Geografia

versão impressa ISSN 0430-5027

Finisterra  no.94 Lisboa dez. 2012

 

ARTIGO ORIGINAL


 

Espaço público e criatividade urbana. O caso do marais em Paris

 

Public space and urban creativity. The case of Marais, Paris

 

Espace public et créativité urbaine. Le cas du Marais, Paris

 

 

Aquilino Machado1; Isabel André2

1Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril (ESHTE). E-mail: Aquilino.Machado@eshte.com

2Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa (IGOT-UL). E-mail: isabelandre@campus.ul.pt

 

 

RESUMO

A inovação sócio-territorial das cidades contemporâneas forja-se, em boa medida, nos seus espaços públicos. É sobretudo aí que se produzem os meios urbanos criativos. Este artigo debate a criatividade urbana ancorada no espaço público, quer enquanto recurso simbólico da identidade local, quer como lugar de encontro, de debate, de confronto de ideias e de práticas. A metáfora clássica da porta, que deverá estar sempre aberta para que seja permitida a comunicação e a interação, assume particular significado no quadro parisiense do bairro do Marais, onde o espaço público se apresenta efetivamente como a porta aberta, ou seja, como a essência do meio criativo que aí se desenvolveu. Propomos aqui uma leitura do Marais, que salienta a diversidade sociocultural e a tolerância enquanto fatores chave da produção de capital relacional e de dinamização local. Falamos das intensas relações de vizinhança, estimuladas pelas caraterísticas do espaço público, pelas atividades criativas que nele se desenvolvem e pelos modos de governança que o vão configurando. Mas, referimo-nos também ao importante papel das redes sociais virtuais no fortalecimento, reconhecimento e coesão da comunidade local.

Palavras-chave: Espaço público, meios socialmente criativos, inovação sócio-territorial, capital relacional, Paris-Marais.

 

ABSTRACT

The socio-territorial innovation of contemporary cities is forged, to a large extent, in its public spaces. It is mainly there that urban creative milieus are produced. This article discusses the urban creativity generated in urban public space, seen as symbolic resource of local identity as well as a place for meeting, debate, confrontation of ideas and practices. The classic metaphor of the door, which should always be open to allow communication and interaction, is of particular significance in the context of the Parisian Marais neighbourhood, where the public space actually seems to have the door opened, ie, to be the essence of creative milieus developed there. We propose a reading of Marais that emphasizes the sociocultural diversity and tolerance as key factors in the production of relational capital and local socioeconomic dynamics. We stress the intense neighbourly relationships, stimulated by the characteristics of public space, by the creative activities that take place in it and by the modes of governance configuring the neighbourhood. We further underline the important role of virtual social networks in empowerment, recognition and cohesion of the local community.

Keywords: Public space, socially creative milieus, socio-territorial innovation, relational capital, Paris-Marais.

 

RÉSUMÉ

Dans les villes contemporaines l’innovation nait surtout dans les espaces publics. On considère celle-ci comme étant une source d’identité locale, dans la mesure où elle correspond à des lieux de rencontre, de débats, de confrontation d’idées et de pratiques. La métaphore classique selon laquelle il faut qu’une porte soit ouverte pour permettre la communication et l’interaction, s’applique particulièrement bien au quartier du Marais, où l’espace public constitue un milieu véritablement créatif. On propose une lecture de ce quartier qui met l’accent sur sa diversité socio-culturelle tolérante, laquelle y permet un développement dynamique des relations sociales, avec d’intenses relations de voisinage et le développement d’activité créatrices. On considère aussi les formes de gouvernance qui modèlent ce quartier et on montre l’importance des réseaux sociaux virtuels qui assurent le développement, la reconnaissance et la cohésion de la communauté locale.

Mots-clés: Espace public, milieux socialement créatifs, innovation socio-territoriale, capital relationnel, Paris-Marais.

 

 

I. INTRODUÇÃO

A produção de meios criativos depende de um conjunto complexo de condições, associadas aos recursos, à agência, à regulação, às atitudes, valores e comportamentos, mas também às próprias caraterísticas da paisagem, especialmente quando o foco da criatividade se encontra na cultura e nas artes.

O presente artigo apresenta e discute a criatividade urbana no bairro do Marais em Paris e, em particular, o papel do espaço público que parece funcionar aí como um fator de produção e de amplificação do meio criativo que que se tem vindo a desenvolver. Discute-se o espaço público, quer enquanto recurso simbólico da identidade local, produzido ao longo do tempo através da sobreposição e conjugação de diversos ‘layers’ socioculturais, quer enquanto local de encontro, de debate, de confronto de ideias e de práticas, ou seja de valorização e densificação do capital relacional – sistema interescalar de redes sociais, individuais e coletivas.

No Marais, foi-se criando um ‘caldo’ multicultural propício à conjugação – mais ou menos harmoniosa ou conflituosa – de diversos capitais relacionais. A diversidade do bairro do Marais manifesta-se, desde logo, através de uma grande heterogeneidade social, espelhada quer nos comportamentos quer nas manifestações culturais, que conduz a uma percepção territorial de grande cosmopolitismo.

a história do bairro fez-se de sucessivas vagas de residentes com matrizes socioculturais diversas, como se verá mais adiante, mas a diversidade assumida como fator de desenvolvimento associa-se sobretudo a um processo de gentrificação iniciado na década de sessenta e consolidado na década de oitenta do século XX. Numa fase inicial, a comunidade gay assumiu um papel de destaque, ao mobilizar um conjunto de agentes, de atividades e de eventos que emprestaram novo dinamismo cultural ao bairro. Este processo foi acompanhado pelo aparecimento de outros protagonistas fortemente empenhados em ações de participação cívica.

Esta dinâmica não afastou algumas das comunidades mais antigas, que acompanharam este dinamismo contribuindo assim para ampliar a diversidade, nomeadamente uma comunidade judaica localizada num espaço demarcado do Marais, onde a Rue des Rosiers se projeta como coluna vertebral, uma comunidade chinesa proveniente da província de Zhejiang representando aproximadamente 10% da população do 3e Arrondissement/Alto Marais, e ainda uma comunidade magrebina que, embora perdendo peso populacional, continua a ter uma presença marcante.

A forma como este conjunto social tão heterogéneo se foi constituindo e convive, através de redes de proximidade bem estruturadas, mostra como as circunstâncias do meio podem propiciar a constituição de novos coletivos que inclusivamente agregam comunidades pré-existentes. Isto parece ser especialmente estimulado por via da criatividade urbana, ou seja através de iniciativas artísticas e culturais que facilitam o diálogo e a expressão das diferentes culturas.

Tanto mais que esta trajetória incorpora algumas práticas claramente transgressivas no contexto da cidade, designadamente o modo como a comunidade gay se apropriou do espaço público, sem receio de afirmar os seus valores, comportamentos e práticas. Há que salientar também, neste processo, o papel da cidadania ativa na negociação e na procura de consensos suscetíveis de responder às necessidades da comunidade. Fazendo uso de uma ideia de João Ferrão (2002), os princípios da democracia deliberativa, como fonte de decisão e de ação têm sido amplamente aplicados no território do Marais, nomeadamente, através do projeto Maison des Associations, – agregado de entidades associativas do terceiro sector – que, neste bairro, adquiriu uma dimensão simbólica muito significativa mediante uma mobilização de recursos com notória capacidade criativa. O acervo de entidades associativas reforçou a coesão e o sentimento de identidade no bairro, nomeadamente por via do estabelecimento de redes sociais locais de apoio e capacitação das comunidades em situação de maior vulnerabilidade social. Disto é exemplo o intenso trabalho dirigido às crianças da comunidade chinesa do Alto Marais, a defesa ativa da igualdade de direitos das minorias sexuais, ou do direito à governação do próprio território, por intermédio das várias associações que integram os órgãos consultivos do poder municipal/ (Conseils de Quartier)i.

 

II. CRIATIVIDADE URBANA

Veículo de identidade, através do património, de expressão e comunicação, através das artes, a cultura constrói os códigos e as linguagens simbólicas em que radicam os sentimentos de pertença a um coletivo de base territorial.

O conceito de património coletivo corresponde precisamente à valorização do bem comum e do sentido de comunidade para além das ‘fronteiras sociais e culturais’. Por outro lado, a herança cultural promove a coesão porque facilita o estabelecimento de ‘pontes’, baseado nos traços comuns que a história vai deixando (por exemplo, na margem norte e na margem sul do Mediterrâneo). As singularidades culturais afirmam-se como fator de distinção (Jacobs e Fincher 1998) dos coletivos locais num mundo globalizado, como contraponto à normalização e frequentemente como meio de resistência à integração.

este é contudo um quadro ambíguo, dado que a cultura tanto surge associada à singularidade dos lugares e dos coletivos como à emergência de valores e práticas globais. Com bastante frequência e sem especial surpresa assistimos à coexistência de expressões culturais locais e globais ou à passagem rápida de um ritmo musical de uma aldeia africana para uma banda hip-hop internacional. Esta ligação estreita entre o local e o global confere à expressão artística e aos bens culturais um valor estratégico nas sociedades atuais. Um exemplo interessante pode ser um dos últimos filmes de Woody Allen (Meia Noite em Paris, 2011) onde os espaços mais distintivos de Paris, incluindo a Rue des Rosiers no Marais (Le Marché Paul Bert), associados à boémia parisiense dos meios artísticos vanguardistas do início do século XX, bem como aos locais de charme da atualidade, passam para um blockbuster financiado pelo município de Paris para ampliar a notoriedade da cidade. A singularidade parece transformar-se num dos principais trunfos da afirmação internacional, mesmo quando se associa a representações de melancolia e decadência como é, por exemplo, o caso de alguns espaços do centro histórico de Lisboa.

É também importante salientar que essa projeção externa de espaços singulares contribui muito para transformar a sua matriz identitária. Se, por um lado, se corre o risco de ser absorvido pelos circuitos globais, por outro, os coletivos locais não deixam de sentir reforçada a sua autoestima ao verem-se projetados no espaço global o que conduz normalmente à valorização do seu património coletivo.

Apesar da importância do património local como veículo de identidade e afirmação dos lugares, não é certamente menos importante para o desenvolvimento local, o papel das expressões culturais e artísticas enquanto meios de comunicação de ideias, emoções e sentimentos que encontram na linguagem das artes um modo adequado de transmissão (Schaffer-Bacon, Yuen, Korza, 1999).

As sociedades pós-industriais conferiram à cultura e às artes uma posição bastante central na vida das pessoas e dos coletivos territoriais. É especialmente valorizado “the creative element of our existence – expressions of who we are, where we come from, and where we wish to” (Jeannotte e Stanley, 2002:136). A certeza associada às meta-narrativas ideológicas do século XX foi dando lugar à incerteza e à inconstância, matriz que marca atualmente o quotidiano do mundo ocidental, associada também à progressiva dissolução das várias formas de transcendência, e sobretudo da crença religiosa, que se pode ser, de algum modo, superada através das artes (Ruby, 2002). De facto, as diversas expressões culturais e artísticas têm ajudado a construir representações do futuro ou mesmo antecipações do futuro. “Some artists express in their work feelings or codes that forecast the future or that indicate symbolically that the present is no longer viable” (Smiers, 2005: 9).

Por outro lado, a cultura e as artes são também o elemento central da estetização do quotidiano (Smiers, 2005; Ley, 2003), cada vez mais intensa nas sociedades atuais. O corpo, a casa, o automóvel, o espaço público ou a cidade são, em larga medida, alvos privilegiados de intervenções guiadas mais pelos critérios da estética do que pela funcionalidade, pela utilidade ou pela eficácia (Ley, 2003). A identidade, pessoal e coletiva, usa um grande número de referências estéticas. “A well developed cultural identity includes the strong feeling that specific artistic expressions make us the people we want to be, and, at the same time, that other expressions disturb our lives, don’t belong to who we are, or make us feel less comfortable” (Smiers, 2005: 121).

As expressões simbólicas traduzem bem as tensões e os conflitos entre comunidades ou no seu interior. A cultura e as artes associam-se, por isso, com grande frequência à inovação social, ou seja, à emergência de novas respostas originais para problemas sociais não resolvidos, visando a inclusão e implicando uma transformação das relações sociais no sentido da autonomia (André e Abreu, 2006). Neste processo, conjugam-se a facilidade de comunicação, a atitude crítica, a participação cívica, a dialética entre o individual e o coletivo, a capacidade de regeneração dos lugares e ainda a dinamização económica e a criação de emprego (Moulaert et al., 2004: 231-232).

Contudo, a cultura e as artes não são apenas relevantes no plano social, constituindo-se também como trunfos importante no âmbito do desenvolvimento económico. Muitas cidades da Europa e da América do Norte têm assistido ao desaparecimento das atividades produtivas tradicionais e à dissolução dos valores e das práticas sociais que, em conjunto, configuravam o tecido socioeconómico. As ameaças associadas a essas transformações têm sido, em muitos casos, ultrapassadas por via de uma aposta forte na produção cultural e artística. “Cities of the future are ‘creative communities’ in the sense that they recognize that art and culture are vital not only to a region’s liveability, but also to the preparedness of its work force. They understand that art-infused education is critical to producing the next generation of leaders and workers for the knowledge economy.” (Eger, 2010: 8).

Esta é basicamente a ideia principal dos amplamente reconhecidos livros de Richard Florida (2002, 2005, 2008): os meios criativos são cruciais para a competitividade das cidades, não só porque estimulam a inovação mas também porque o ambiente boémio criado pelos artistas é muito favorável à atração de profissio- nais altamente qualificados que – levados pela importância da estética, da origi- nalidade e do espetáculo – gostam de respirar o ‘ar dos artistas’. Ainda segundo Florida, atrás da ‘classe criativa’ vêm para a cidade os investimentos estratégicos. As atividades culturais e artísticas emergem assim atualmente em muitos lugares como o “golpe de mágica” capaz de transformar a degeneração em regeneração. David Ley (2003: 2542) sugere que “the redemptive eye of the artist could turn junk into art”, mas não deixa de acrescentar que “the calculating eye of others would turn art into commodity”. Não podemos contudo deixar de salientar que o modelo da cidade criativa preconizado por Florida e por outros autores de referência (Landry, 2000, 2006; Hall, 2000) não conduz à inovação sócio-territorial (inovação social associada à transformação dos lugares), na medida em que o seu grande foco é o reforço da competitividade e não a transformação dos coletivos locais no sentido da equidade e da justiça social. Pelo contrário, este modelo conduz a uma cidade dual, fragmentada e exclusiva (Scott, 2006; Gertler, 2004; Miles, 1997).

As ligações entre a cultura, as artes e a transformação sócio-territorial dos lugares que nos parece existir no Marais correspondem a uma matriz bem diferente, próxima, por exemplo, da cidade socialmente criativa defendida por Gertler (2004) e inspiradora da política urbana do Canadá que procura combinar, por um lado, o dinamismo económico e antecipar a mudança e, por outro, estimular a transformação social e a produção de capital social (coletivo e partilhado) especialmente nas comunidades mais vulneráveis (Klein e Harrison, 2007; Moulaert et al., 2009).

 

III. CIDADANIA E ESPAÇO PÚBLICO

Antes de discutirmos a criatividade urbana no Marais importa apresentar alguns pontos essenciais sobre o papel do espaço público no aprofundamento da cidadania através de novas formas de governança. É neste quadro que a criatividade e as artes, em particular, podem contribuir significativamente para a transformação sócio-territorial.

É interessante a ideia desenvolvida por Ferrão (2006) quando se reporta às redes de «instituições leves» – locais de encontro como os cafés, os espaços verdes ou estádios, redes informais, associações, etc.” [que] “constituem nós importantes de revelação e de transformação das cidades”. Estas redes são, de facto, campos de interação onde práticas fragmentadas se interligam, ultrapassando as “lógicas de proximidade, organicamente constituídas por comunidades de vizinhança”. Semelhantes comunidades incorporam “tempos-espaços muito diversos, desde a autarcia dos excluídos à mobilidade dos que participam de forma ativa em redes transnacionais” (Ferrão, 2006: 4) e abrem uma perspectiva mais alargada no que respeita ao alcance da governança urbana.

Mas, essas práticas não se resumem à experiência de novas formas de administração urbana, particularmente no que Guerra (2003) designa como um jogo estratégico de atores. Na nossa contemporaneidade, o espaço público adquire, cada vez mais, uma expressão ativa da cidadania, quer pela emergência de movimentos de protesto, quer pelo tom de viva festividade e celebração que algumas iniciativas assumem em diversos cenários urbanos.

Tejerina (2005) reforça esta ideia, salientando a importância que os novos movimentos sociais e os processos plurais de construção de cidadania adquirem, através da reapropriação e atribuição de novos significados aos espaços públicos.

O caráter alternativo e por vezes radical de algumas iniciativas promovidas pelos “novos atores sociais”, ONG e movimentos que se tornaram “parceiros e adversários incontornáveis dos poderes públicos”(Cefaii, 2005) colide, repetidas vezes, com as práticas políticas de mobilização, que se apresentam como normativas. Convirá, por conseguinte, compreender se a invenção de outros repertórios de ação política choca e enfraquece as práticas político-partidárias institucionais desenvolvidas no espaço público, ou se elas representam novas ações complementares enriquecedoras de um espaço público plural, mau grado a transgressividade de que se revestem.

Mas a projeção de celebrações transgressivas já adquiriu dimensão global em certas mobilizações levadas a efeito nos espaços públicos urbanos. Cefaii sublinha que o gay pride se tornou num acontecimento tão incontornável como as manifestações do primeiro de Maio” (2005: 141), levando a assumi-los como espaços de contestação onde se expressam conflitos e tensões e ao mesmo tempo de tolerância e diálogo.

Deste entendimento procede a ideia de repensar a governança urbana procurando na pluralidade dos diversos atores económicos e sociais a validação e implementação de novas políticas de desenvolvimento que pressuponham “trajectórias territoriais de inovação” (Ferrão, 2002).

Merece assim especial enfoque a afirmação dos espaços públicos urbanos e a mobilização das novas práticas de cidadania e dos novos modelos de participação cívica e política como fatores de inovação social e construção de meios criativos, tanto no plano económico como no social. Neste sentido, relevam-se as diversas estratégias que pretendem reforçar a qualificação social em torno da “socialização da urbanidade e da cidadania urbana”. Neste contexto, Cynthia-Ghorra-Gobin (2000) considera os espaços públicos como lugares privilegiados de mise-en-scène da sociedade civil, onde indivíduos anónimos estão em situação de copresença e sob o efeito dos códigos necessários a um reforço do sentimento de pertença.

Um meio socialmente criativo – impulsionador de inovação sócio-territorial – deve ser suficientemente flexível para permitir a mudança e razoavelmente organizado para manter a sua identidade e coesão (André e Abreu, 2006). Ainda segundo os mesmos autores, esta ideia assenta na existência de três condições essenciais para a consecução de um meio socialmente criativo: diversidade, tolerância e participação dos cidadãos.

Ou seja, no conjunto de práticas de governança, sobressai a preocupação de defender determinados espaços urbanos, mediante um reforço das relações de reciprocidade e de cooperação entre os cidadãos da comunidade local. O que pressupõe o reforço quotidiano da sua consciência cívica e das várias modalidades de participação. Mas, o que sobressai particularmente deste tipo de plataformas cívicas é a sua capacidade para gerar diversas redes sociais de cooperação e de confiança, promotoras de stocks de capital social que facilitam a tolerância e enriquecem a diversidade e a participação cívica.

A reflexão sobre o papel da cidadania e do espaço público na construção de meios urbanos criativos, coesos e inclusivos remete para as seguintes questões que estarão presentes a seguir na discussão do caso do Marais: (i) Estará uma visão otimista do espaço público (promotor de inovação sócio-territorial) associada ao roteiro de novas estratégias que apontam para uma visão cultural e plural da cidade associada à identidade local e ancorada nas atividades culturais e artísticas? (ii) Qual o significado simbólico que os novos movimentos sociais assumem na reconstrução desse espaço público?

 

IV. MARAIS: UM PERCURSO SINGULAR

Agrupando grande parte do 3e e 4e Arrondissements de Paris, o bairro do Marais particulariza-se como um tecido urbano com alguma homogeneidade face às áreas envolventesii. Tal situação derivou da grande robustez histórica criada ao longo dos séculos, que dotou este território com um caldo multicultural e arquitectónico singularmente fecundo.

A designação de Marais associa-se à área inundável do Sena que desde cedo foi usada para pastagens e para o cultivo agrícola.

“C’est une verdure éternelle dans ce marais, où les salades de toutes les saisons montrent successivement leurs tiges.” (Louis Sébastien Mercier in Chadych, 2005: 6-7).

Mas o primeiro surto urbano do Marais dá-se com o priorado instituído pelos Templários em 1240 (do qual resta uma marca toponímica – a Rue du Temple) que atraiu inúmeros comerciantes e artesãos que assim procuravam escapar aos regulamentos rígidos das corporações (Faure, 2007). É curioso esta génese do Marais ancorada num dinamismo económico, social e cultural surpreendente para a época que a Ordem do Templo desenvolvia. A extinção desta ordem, no início do séc. XIV, provocou certamente algum abandono e decadência no Marais.

Contudo a grande prosperidade é retomada no século XVII (le Marais du grand siècle ou l’âge d’or) período que correspondeu no bairro do Marais à grande opulência da corte do rei Henri IV, em que a perpetuação da sua magnificência passava pela edificação de peças arquitetónicas de grande escala, onde a ostentação simbolizava poder e riqueza. O traço impressivo da Place Royale, atualmente designada de Place des Vosges, verdadeira jóia da arquitetura renascentista parisiense, configurou, a par do Palácio do Louvre e das Tuileries, uma marca territorial assinalável que sublinhava o contraste entre o este e o oeste de Paris, ou seja, entre a expansão urbana associada à ação da corte, por um lado, e a cidade plebeia, por outro, com as suas inerentes carências, sobreocupações e insalubridade dos espaços públicos.

Esta dinâmica manteve-se e até se acentuou no reinado de Louis XIII, já que o governo deste monarca empreendeu a construção de inúmeros palácios que viriam a albergar a aristocracia que acompanhava a presença do poder real no Marais. Com a constituição de uma rede de cariz palaciano, o Marais ficou marcado pelo fausto do poder real e aristocrático.

“Consolidada a malha urbana no final do século XVii, este território proporcionava uma ocupação sócio-territorial diacrónica, parafraseada por Chadych ao dizer que o remate norte do Marais conformava um “meio social fechado e homogéneo onde dominavam as altas personagens da Corte, do governo e da nobreza, e a sul era menos homogéneo e mais popular” (2005: 15).

“Au temps même de sa splendeur aristocratique, le Marais, comme tous les quartiers de Paris – même et surtout peut être les plus nobles – présentait, au voisinage ou au rez- -de-chaussée des hôtels, boutiques de toutes sortes et ateliers”, composant un “ paysage à la fois bourgeois, artisanal et industriel” (Benedetti, citado por Djirikian 2004: 48)

O reinado de Louis XVI revestiu-se de consequências importantes para a evolução do Marais. A transferência da corte para o palácio de Versailles constituiu, igualmente, um fenómeno de deslocalização do poder político e económico, com naturais reflexos na vivência do bairro. Aquela deriva originou o abandono e o início do declínio do bairro. De facto, uma acentuada degradação urbana repercutia-se, na primeira metade do século XIX, em quase toda a cidade de Paris, constituída por “uma rede densa e confusa, sem uma verdadeira estrutura” (Lainé, 2005: 7). Em 1830, o plano Vasserot antecipa, de algum modo, as grandes intervenções que vêm a ter lugar duas décadas mais tarde. No Marais, a construção da Rue Rambuteau e da Rue du Pont Louis-Philippe permitiram “mieux irriguer un quartier artisanal et commerçant dans lequel s’installent les manufactures”iii.

Mas a incapacidade de resolver problemas de insalubridade e de miséria dos bairros centrais da capital só viria a ser atenuada pela ação de Haussmann, visionário modernista, para uns, burocrata e responsável por uma linguagem urbana redutora que suprimia a vivência quotidiana dos bairros populares, segundo outros. Se os problemas da insalubridade e da degradação dos bairros foram mitigados e um novo paradigma urbano moderno germinou na capital francesa, a «haussmanização» provocou contudo a destruição de um conjunto vasto de bairros medievos de inegável qualidade arquitetónica e onde as sociabilidades locais – ancoradas em redes sociais densas e consolidadas – garantiam a sobrevivência dos mais desfavorecidos. No entender de Benévolo (1994: 197), com Haussmann nasceu “uma retórica tendenciosa que exagera a ruína, a insalubridade, a miséria das partes antigas da cidade e que chega mesmo a penetrar na linguagem burocrática e comemorativa”, dando-se inicio à cidade moderna, limpa e segura.

Neste quadro de contradições, onde a construção da cidade moderna destruía os vínculos do passado (Benjamin, 1997; Ascher e Giard, 1975), o bairro do Marais foi relativamente poupado, já que o projeto que levaria ao desaparecimento do casco medieval foi votado ao fracasso, quando o Barão Haussmann, Prefeito do Sena e Senador, foi acusado de má utilização do dinheiro público e seguidamente exonerado. Mesmo assim, ainda foi aberta a Rue de Rivoli, uma grande artéria que veio separar grande parte do Marais da margem do Sena. Contudo, a permanência do Marais antigo é certamente um fator decisivo para compreender o Marais atual onde se cruzam diferentes culturas mas também diferentes espaços que a história foi modelando e conjugando.

Em meados do século XX, o Bairro do Marais apresentava problemas sociais e urbanísticos comuns a muitos bairros da capital francesa: albergava uma população predominantemente operária e pouco reivindicativa, com diferentes origens geográficas, sendo evidente a deterioração das infraestruturas e a desqualificação do espaço público urbano, apesar de alguns estudos pontuais e ações para a salvaguarda do património realizados nos anos 30.

“Trois principales raisons peuvent expliquer la poursuite du déclin: l’arrivée d’immigrants pauvres, en provenance d’Europe de l’Est et souvent de confession juive (fin XIXe – seconde guerre mondiale) puis d’Afrique du Nord (juifs et musulmans, 1945-1975); le classement de certain secteurs comme ‘îlots insalubres’ avant la seconde guerre mondiale; le manque d’intérêt de l’opinion, des médias, et l’inaboutissement des projets des pouvoirs publics” (Djirikian, 2004: 50)

Sustentado por uma política focada na alteração das mentalidades que emer- gia nas sociedades ocidentais, e era acompanhada pelo desígnio de proteger a herança patrimonial e cultural do passado, o bairro do Marais foi objeto de uma ação estruturante de restauração dos edifícios históricos, na sequência da promulgação da Lei de Salvaguarda da Proteção do Património, publicada em 1962 pelo então ministro da cultura, André Malraux.

As medidas de salvaguarda e de valorização desencadeadas no bairro do Marais (o primeiro plano a ser realizado em França no sequência da Lei Malraux), escudaram-se na constituição da Association de Sauvegarde et Mise en Valeur du Paris Historique (1963) e foram despoletadas posteriormente através do Plan de Sauvergarde et de Mise en Valeur du Marais (PSMV, 1964), que veio a beneficiar posteriormente com a construção do Centro George Pompidou em 1977. Este plano teve uma particularidade importante que terá permitido seguramente ‘travar’ even- tuais projetos de regeneração, uma vez que incluía explicitamente a preservação do interior dos imóveis, sendo o único instrumento de planeamento a contemplar esse aspecto, mais relevante do que à partida pode parecer.

No entender de Bourdin, citado por Mela (1999: 149), “este polo cultural propiciou uma tentativa constantemente renovada de ‘reinvenção’do património simbólico urbano” O impacto e a replicabilidade desta nova marca cultural foram refletidos no bairro do Marais com a abertura de inúmeras galerias de arte e lojas especializadas e com a chegada de novos grupos, que Bovone (2004) designou de “novos intermediários culturais”, isto é, que podem ser considerados como elos determinantes duma “cadeia de criação-manipulação-transmissão de bens com elevado conteúdo de informação, onde o valor simbólico é preponderante” (Bovone, 2004: 105).

Esta mudança correspondeu, em larga medida, à chegada de novos protagonistas vivamente empenhados na dinamização da vida local, apelidados de bobos ou bourgeois bohêmes, eram portadores de um “capital cultural e social importante” (...) e de “novas ideias fundadas na ecologia e no empenho na decisão de questões da governabilidade da cidade” (Calbérac, 2005: s/p). À partida, poder-se-ia estar perante um processo de gentrificação, ou seja da expulsão dos grupos sociais mais vulneráveis, cujas casas seriam reabilitadas entrando num segmento do mercado imobiliário muito valorizado, dada não só a localização central mas também devido ao valor patrimonial dos edifícios. Contudo, o percurso recente do Marais não foi este.

A presença muito expressiva da comunidade gay entre os novos residentes do Marais teve um papel destacado na configuração desse percurso, ao conseguir mobilizar um significativo conjunto de agentes urbanos que implementaram um renovado dinamismo cultural no bairro, onde a florescência de restaurantes e bares foi acompanhada pelo aparecimento de galerias de arte, lojas de antiguidades, livrarias, etc. Mas onde se mantiveram os antigos comércios, oficinas e associações. Constitui-se assim uma comunidade local mais diversificada, tolerante e empenhada na participação cívica, na medida em que tem consciência das várias formas de discriminação social e tem também recursos para as combater.

A par da miscigenação social e cultural, a presença duma secular comunidade judaica, instalada no território do Marais, contribuiu também para emprestar uma identidade própria ao bairro e para fazer surgir, numa primeira fase, uma barreira de resistência à gentrificação (Djirikian, 2004). O bairro judeu no Marais designado em yidddsidh pletz’corresponde a um território geograficamente delimitado que se centra na Rue des Rosiers e vias adjacentes. Na atualidade não tem já a dimensão de que se revestiu entre as duas grandes guerras, quando era constituído essencialmente por judeus asquenazes – provenientes da Polónia, Roménia e Rússia. Ali viria a instalar-se posteriormente uma segunda grande vaga de imigrantes judeus, oriundos do Norte de África (judeus sefarditas), regra geral dotados de fracos recursos económicos. Porém, globalmente esta comunidade detém elevados níveis de capital cultural, o que facilitou certamente a sua resistência às dinâmicas da gentrificação.

Numa orla mais periférica, a comunidade chinesa ganhou peso e importância, particularmente no sector norte do Marais (3e Arrondissement) ancorado na Rue du Temple, onde prevalece a atividade comercial, constituída por um leque diversificado de pequenas lojas. Simultaneamente e numa franja ainda mais periférica surge a comunidade magrebina, cujo o número decaiu nas últimas décadas, e que corresponde efetivamente a grupo pobre e em constante risco de exclusão.

“Elle symbolisait le Marais comme terre d’accueil, le Marais ouvrier d’antan, le Marais et ses logements dégradés” (Djirikian, 2004: 50).

A convivência destas comunidades, com todas as suas singularidades e contradições, gerou neste território um sentimento de tolerância que permitiu estabelecer e consolidar um conjunto significativo de redes sociais de base local. Daí advie- ram benefícios óbvios já que estas redes – umas de proximidade e outras de longa distância, associadas aos fluxos migratórios – emprestam grande parte da sua qualidade e atratividade ao território do Marais. Por exemplo, o conjunto expressivo de iniciativas de índole cultural que são desenvolvidas neste bairro: desde a celebração em Maio do Marais Solidário, ao Gay Pride em 25 de Junho, até às jornadas da cultura Judaica, numa panóplia vastíssima de iniciativas realizadas na esfera pública que reforça e interliga os diversos contextos relacionais do Marais. A mobilização da cultura e das expressões artísticas parece assumir neste bairro um papel crucial, reforçando a autoestima dos diversos grupos que constituem a comunidade local e facilitando, através das vias mencionadas anteriormente no segundo ponto deste artigo, a comunicação e o diálogo.

 

V. O ESPAÇO PÚBLICO DO MARAIS

No quadro sociocultural descrito no ponto anterior desenvolveram-se um conjunto de iniciativas que privilegiam o espaço público e que em muito têm contribuído para a constituição no Marais de um meio socialmente criativo.

Para o Bairro do Marais, foi preparado “um conjunto de estratégias inovadoras, desenvolvidas pela municipalidade parisiense e por outros agentes da sociedade civil”, estratégias essas produzidas em espaços juridicamente privados, mas que funcionam simbolicamente como uma projeção do espaço público, equiparável a um “palco sobre o qual todo o teatro da vida comum se processa” (Stephen, 1992). Neste contexto, há que relevar a Maison des Associations, agregado de entidades sem fins lucrativos, cuja finalidade é criar uma dinâmica económica e social no bairro assente na mobilização das potencialidades locais suscetíveis de produzir e desenvolver uma identidade própria do Marais, evidenciando os seus traços distintivos no contexto urbano onde se insere.

Sendo um projeto desenvolvido pela municipalidadeiv, e distinguindo-se, por isso mesmo, daquilo que é considerado por André e Abreu (2006) quando discutem o conceito de inovação social como um processo que emerge “fora das instituições e frequentemente contra elas, sendo o resultado de uma mobilização em torno de um objetivo, protagonizada informalmente por um movimento social ou, com uma matriz mais estruturada, por uma organização” (2006: 129), o projeto do Marais não deixa de refletir o firme propósito de recriar a cidade de forma mais tolerante, diversificada e democrática e de estimular a inovação sócio-territorial.

Este bairro parisiense tem construído, nas últimas décadas, um forte sentido coletivo e uma grande capacidade de apropriação do espaço público. O que neste domínio se revela profundamente inovador é a capacidade para tornar alguns territórios de cariz privado ou semiprivado em extensões do espaço público. Ali a densidade e a proliferação de espaços culturais e artísticos alternativos e de entidades associativas constituem a força motriz do processo.

Aplica-se aqui especialmente bem a metáfora clássica da porta, entendida como “imagem alegórica mais sensível de relacionamento social” (Fortuna, 1999: 141) a qual deverá estar sempre aberta para que seja permitida a comunicação, situação que adquire particular significado no bairro do Marais. Por via desta dinâmica de desenvolvimento local, que inclui um forte capital simbólico, consegue-se, mediante a mobilização de recursos com notória capacidade criativa, fomentar nos cidadãos um sentimento de pertença ao lugar. Com efeito, quer as associações quer os ateliers e galerias funcionam como prolongamento do espaço público, criando pequenos fóruns de debate e tertúlia.

O processo que tem vindo a ser desenvolvido no âmbito da revisão do Plano de Salvaguarda e Valorização do Marais (a ser aprovado em 2013) traduz muito bem a preocupação com os aspectos anteriormente referidos, assim como a intenção clara de eleger o espaço público, o património e a economia local como elementos cruciais do futuro Marais. O quadro I sintetiza o essencial da proposta de revisão do plano.

 

 

“Merecem” também uma atenção especial as redes sociais das comunidades mais expostas à exclusão social, ou as que se constituíram para defender o direito participação nas diversas associações que integram os órgãos consultivos do poder municipal (Conseils de Quartier).v

“Les associations du Marais se sont constituées en véritable réseau, leurs présidents se connaissent tous, organisent des réunions inter-associatives, n’hésitent pas à entrer en contact avec le Maire de l’arrondissement” (Djirikian, 2004: 229).

Para além das já referidas ‘portas abertas’, as redes sociais virtuais surgem também como um potente meio de ampliação do espaço público. Estas redes, servindo de veículos para a implementação de projetos coletivos inovadores reforçam, por conseguinte, a identificação dos cidadãos com os respetivos territórios e emprestam às comunidades mais vulneráveis novas aptidões e capacidades para que possam efetivamente resolver os seus problemas. Isto sugere que as redes virtuais não anulam as relações pessoais de vizinhança, tornando-as até mais fortes por via da sua ligação ao exterior e dos recursos que por essa via são mobilizados.

Exemplo disso, pelo seu caráter inovador é a Association franco-chinoise Pierre Ducerf, que é dirigida por gente muito nova e que constitui um modelo de inclusão e de inovação social no contexto da formação de uma identidade coletiva de bairro plural. Através dela são desenvolvidas diversas atividades direcionadas aos jovens , entre as quais se destacam a construção e distribuição de pequenos roteiros culturais para a descoberta do bairro. Grande parte deste trabalho é desenvolvido com base nas redes sociais virtuais.

Na mesma ótica de reforçar as redes locais associando-as às redes sociais vir- tuais, destacam-se também outros projetos particularmente inovadores de intercâmbio entre as diferentes comunidades, no campo das competências linguísticas, desenvolvidos na base do voluntariado. O que emana deste exemplo, de grande simplicidade, supera a própria prática de voluntariado, já que acima de tudo reproduz a consolidação de um capital relacional entre as várias comunidades do bairro, e a integração de um conjunto de atores que se encontram em situações de maior vulnerabilidade.

Outro aspecto relevante observado no Marais, na ótica do meio socialmente criativo, reporta-se ao conjunto das associações que abrangem um leque apreciável da sociedade civil e cujo objetivo é o de influenciar decisões políticas, que direta ou indiretamente, se refletirão na vida quotidiana do bairro. A forma como algumas associações se mobilizam no sentido de defender o património e o espaço público coletivo, entendidos como fatores simbólicos essenciais do cenário citadino, contribui significativamente para a afirmação das forças identitárias do território.

A consciência cívica de salvaguarda patrimonial, radicada numa ampla plataforma de cidadãos, impulsiona a dinâmica de desenvolvimento local, e contribui decisivamente para a implementação de um espaço público aberto e democrático. Essa mobilização associativa converge para o estabelecimento de consensos no âmbito de uma proteção patrimonial, que no início dos anos 2000 parecia votada ao esquecimento.

“Il faut dire que le quartier du Temple est le meilleur exemple de démocratie locale qui puisse exister à Paris et peut-être en France” (Djirikian, 2004: 50)

Djirikian (2004) refere que o consenso associativo que se formou para proteger o Carreau du Temple (mercado do final do século XIX, constituído por uma estrutura de ferro) e também o Marché des Enfants Rouges (o mais antigo de Paris) provocou mesmo a queda do candidato de direita e a vitória de uma plataforma de esquerda nas eleições municipais de 2001, que defendia a salvaguarda dos dois edifícios.

Mas este espírito reflete-se igualmente no debate em torno da discussão pública das propostas de transformação urbana do quartier des Halles, e mais recentemente na Place de la Repúblique, que embora já não circunscritos ao Marais se situam na sua periferia. Qualquer destes exemplos, reflete o lado positivo e estimulante de uma democracia deliberativa, fundamentais para a concretização deste meio criativo.

As várias associações e o próprio sítio Internet da Mairie 3e convocam os residentes a refletir sobre algumas questões que fazem parte do seu quotidiano, e emitem um sinal aos órgãos do poder instituído de quanto é importante uma modalidade ativa do exercício da cidadania, a que Verba (1992), citado por Mela (1999), define como citizenry (vocábulo que sugere a ideia de uma cidadania ‘em ação’), para distinguir do termo mais habitual de ‘citizenship’, que aponta para a relação jurídica entre o cidadão e o Estado” (121).

Apesar das caraterísticas do coletivo local, favoráveis à tolerância e à luta contra diversos estigmas sociais, bem como das políticas e iniciativas que têm procurado promover no Marais um meio socialmente criativo, a fragmentação sócio-espacial não deixa de marcar este bairro. Conforme assinala Djirikian (2004) existe um envolvimento distinto das associações que atuam no Alto Marais e das que pertencem ao Marais meridional. As primeiras mostram um associativismo mais ativo e formas de mobilização mais eficazes e mais reconhecidas pelos poderes públicos. Isto revela a diferença entre um Marais turístico e gentrificado, administrativamente correspondente ao 4e Arrondissement, e um Marais de mix sociocultural que se situa no 3e Arrondissement. Uma comunidade diversificada, assim como uma maior exposição à adversidade, tende a suportar uma estratégia de desenvolvimento assente na cidadania participativa e na defesa de uma identidade coletiva, de algum modo protetora para os diferentes grupos que formam o coletivo.

 

VI. CONCLUSÃO

Para além da classificação estabelecida pela Unesco, que atribui ao bairro do Marais o título de Património Mundial da Cultura, o que mais sobressai neste espaço é a sua capacidade de valorizar e conjugar diversos capitais relacionais que alimentam um meio socialmente criativo. Alguns desses capitais são transportados pelas pessoas e pelos grupos que se foram instalando no Marais, outros surgiram da sua interação. Uns ligam-se às relações pessoais de vizinhança, outros às redes sociais virtuais. Esta dinâmica foi potenciada, nas últimas décadas, por uma conjugação forte e eficaz entre as iniciativas top-down, desenvolvidas pelas autoridades públicas municipais, e as ações bottom-up levadas a cabo pelos diversos grupos da comunidade local.

Enunciámos duas questões no final do terceiro ponto deste artigo: (i) Estará uma visão otimista do espaço público (promotor de inovação sócio-territorial) associada ao roteiro de novas estratégias que apontam para uma visão cultural e plural da cidade associada à identidade local e ancorada nas atividades culturais e artísticas? (ii) Qual o significado simbólico que os novos movimentos sociais assumem na reconstrução desse espaço público? a leitura que fazemos do Marais permitem-nos responder afirmativamente.

A diversidade no bairro do Marais manifesta-se na grande heterogeneidade de comportamentos pessoais e sociais dos seus residentes, incluindo claramente a transgressão e a contestação (visão plural da cidade). Esta situação é geradora de tensões e de conflitos que parecem ser ultrapassados com alguma facilidade e mesmo transformados em inovações sócio-territoriais. A forte presença de atividades e eventos culturais e artísticos no espaço público surge como um fator decisivo na medida em que cada grupo comunica com os outros nas linguagens que lhe são mais confortáveis e melhor adequadas ao conteúdo da mensagem que pretende expressar (visão cultural da cidade).

Mas estas atividades e eventos têm uma particularidade importante no Marais que importa sublinhar: a porta aberta. Isto significa a ampliação do espaço público e mesmo a interceção de diferentes espaços privados que assim se passam a relacionar. Este processo é porventura o traço mais original da inovação sócio-territorial no Marais, surgindo, em grande medida como um resultado da mobilização dos residentes focada em objetivos concretos. Por outro lado, as redes virtuais permitiram, de certo modo, entrar no espaço privado sem o invadir. Ou seja facilitaram o diálogo e o conhecimento mútuo dos grupos que vivem no Marais.

A boa relação com o ‘outro’ – próximo ou distante – está indissociavelmente ligada às dinâmicas sociais e culturais do Marais e à inovação sócio-territorial que aí se tem produzido.

 

BIBLIOGRAFIA

André I, Abreu A (2006) Dimensões e espaços de inovação social. Finisterra – Revista Portuguesa de Geografia, XLI (81): 121 -141.         [ Links ]

Ascher F, Giard J (1975) Demain, la ville? Urbanisme et politique, Éditions sociales, Paris.         [ Links ]

Benjamin W (1997) Paris, capitale du XIXe siècle : Le Livre des passages. 3e édition. Editions du Cerf, Paris.         [ Links ]

Bovone L (2004) Os novos intermediários culturais. Considerações sobre a cultura pós-moderna. In Fortuna C (ed.) Cidade, cultura e globalização. Editora Celta, Oeiras: 105-120.         [ Links ]

Calbérac Y (2005) La vague Bobo. Cafés Géographiques, doc. 565 [Acedido em 30 de Junho de 2011] http://www.cafe-geo.net/cafes-geo-paris/

Carr S, Francis M, Rivlin L, Stone A (1993) Public space. Cambridge University Press, New York.         [ Links ]

Cefaï D (2005) Os novos movimentos de protesto em França : a articulação de novas arenas públicas. Revista Crítica de Ciências Sociais, 72: 129-160.         [ Links ]

Chadyn D (2005) Le Marais, évolution d’un paysage urbain. Parigramme/Compagnie Parisienne du Livre, Paris.         [ Links ]

Colin G (2009) Les commerces gays et le processus de gentrification. Métropoles, 5 [Acedido em 14 junho de 2012] http://www.metropoles.revues.org/3858

Djirikian A (2004) La Gentrification du Marais: quarante ans d’evolution de la population et des logenments. Université Paris I, Maîtrise de Géographie sous la direction de Martine Berger e d’Yvan Chauvire, Paris.         [ Links ]

Eger J (2010) The creative community. Forging the links between art, culture, commerce & community. GRIN Verlag oHG, Munchen.         [ Links ]

Faure J (2007) Le Marais: promenade dans le temps. L’Harmattan, Paris.         [ Links ]

Ferrão J (2004) A cidade como agitação social: pedido de ajuda de um geógrafo aos colegas das ciências sociais. Cidade, 8: 111-117.         [ Links ]

Ferrão J (2003) Intervir na cidade: complexidade, visão e rumo. In Portas N, Domingues A, Cabral J (eds.) Políticas urbanas: tendências, estratégias e oportunidades. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa: 219-225.         [ Links ]

Florida R (2008) Who’s your city? How the creative economy is making where to live the most important decision of your life. Basic Books, New York.         [ Links ]

Florida R (2005) The flight of the creative class: the new global competition for talent. Harper & Collins, New York.         [ Links ]

Florida R (2002) The rise of the creative class: and how it’s transforming work, leisure, community, and everyday life. Basic Books, New York.         [ Links ]

Gertler M (2004) Creative cities: what are they for, how do they work, and how do we build them? Canadian Policy Research Networks, Ottawa.         [ Links ]

Ghorra-Gobin C (2000) Les Espaces de la Médiation. Reinventer les «Espaces Publics» comme symbole de la médiation. UNESCO [Acedido em 21 de Maio de 2011]
http://www.unesco.org/most/cyghorra.htm

Guerra I (2003) Tensões do urbanismo quotidiano. In Portas N, Domingues A, Cabral J (eds.) Políticas urbanas: tendências, estratégias e oportunidades. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa: 236-251.         [ Links ]

Hall P (2000) Creative cities and economic development. Urban Studies, 37(4): 639-649.         [ Links ]

Jacobs J, Fincher R (1998) Cities of difference. Guilford Press, New York.         [ Links ]

Jeannotte M, Stanley D (2000) How will we live together? Canadian Journal of Communication, vol.27: 133-139.         [ Links ]

Klein J-L, Harrison D (2007) L’Innovation sociale, émmergence et effets sur la transformation des societies. Presses de l’Université du Québec, Québec.         [ Links ]

Lainé C (2005) Histoire architecturale et urbaine de Paris (acedido em 16 de junho de 2011)
www.forum%20desimages.net/fr/alacate/htm/ETUDE/ARQUICHECTURE         [ Links ]

Landry C (2006) The art of city making. Earthscan, London.         [ Links ]

Landry C (2000) The creative city: a toolkit for urban innovators. Earthscan, London.         [ Links ]

Le Texier E (2005) Minorités et espace public dans la ville. Le « Chicano Park » à San Diego (Californie). Espaces et Sociétés, Dossier Ville, action « citoyenne » et débat public, 123(3): 10-28.         [ Links ]

Ley D (2003) Artists, aestheticisation and the field of gentrification. Urban Studies, 40(12): 2527-2544.         [ Links ]

Mela A (1999) A sociologia das cidades. Editorial Estampa, Lisboa.         [ Links ]

Miles M (1997) Arts, space and the city. Public art and urban futures. Routledge, London.         [ Links ]

Monot A (2003) La Ville et le communautarisme: le cas du Marais, un «gueto gay» à Paris. Cafés Géographiques, doc. 270 [Acedido em 30 de Junho de 2011].
http://www.cafe-geo.net/article.php3?id_article=270&var_recherche=Alexandra+Monot

Moulaert F, Demuynck H, Nussbaumer J (2004) Urban renaissance: from physical beautification to social empowerment. Lessons from Bruges - Cultural Capital of Europe 2002. City, 8(2): 229-235.

Moulaert F, Maccallum D, Hillier J, Vicari S (2009) Social innovation and territorial development. Ashgate, Farnham.         [ Links ]

Putnam R (2002) Democracies in flux: the evolution of social capital in contemporary society. Oxford University Press, Oxford.         [ Links ]

Rhein C (coord.), Blidon M, Fleury A, Guérin-Pace F, Humain-Lamoure A-L (2008) Regards sur les quartiers parisiens. Contextes spatiaux, usages politiques et pratiques citadines. Contrat Ville de Paris n° DASCO/2004-168, UMR. Géographie -cités, CNRS, Universités de Paris 1 et Paris 7: 234        [ Links ]

Ruby C (2002) La « résistance » dans les arts contemporains. EspacesTemps.net, Textuel, 01.05.2002 (Acedido em 10 de outubro de 2008] http://www.espacestemps.net/document341.html

Schaffer-Bacon B, Yuen C, Korza P (1999) Animating democracy: the artistic imagination as a force in civic dialogue. Americans for the Arts, Washington.         [ Links ]

Scott A (2006) Creative cities: conceptual issues and policy questions. Journal of Urban Affairs, 28(1): 1-17.         [ Links ]

Smiers J (2005) Arts under pressure: promoting cultural diversity in the Age of Globalization, Zed Books, London.         [ Links ]

Tejerina B (2005) Movimientos sociales, espacio público y ciudadanía. Revista Crítica de Ciências Sociais, 72: 67-97.         [ Links ]

Tomas F (2001) L’espace public, un concept moribond ou en expansion? Géocarrefour, revue de Géographie de Lyon, 76(1): 75-94.         [ Links ]

 

Os autores deste texto escrevem segundo o novo acordo ortográfico.

 

Recebido: Janeiro 2012. Aceite: Setembro 2012.

 

 

NOTAS

iNo quadro do novo Plan Local d’Urbanisme foram criados os Conseils des Quartier. No 4e Arrondissement existem 4 (Sant-Merri, Saint-Gervais, Arsenal, Iles) e no 3e existem três (Réaumur, Temple, Rambuteau-Franc-Bourgeois). Cada Conseil de Quartier é constituído por 33 membros, repartidos por 4 colégios: um colégio de habitantes (24); um colégio de associações (4 presidentes de associações); um colégio de «pessoas qualificadas» (2) e um colégio de eleitos (3).

iiDanielle Chadych citando Léon-Paul Fargue define o bairro do Marais como o “véritable musée de vieux hôtels plus étincelants, plus distingués les uns que les autres” et aussi de “seul quartier qui réunit les spécimens de toutes les époques francaises” (2005: 6).

iiiCitação retirada da apresentação pública da revisão do ‘Plan de de Sauvegarde et de Mise en Valeur du Marais’ efetuada no 4e arrondissement pelo Atelier d’Architecture et d’Urbanisme Elisabeth Blanc Daniel Duche, 30 de Setembro de 2009.

ivO projeto foi lançado em 2001, durante o mandato de Bertrand Delanoë que propunha criar uma Maison des Association (MDA) em cada arrondissement da cidade de Paris. Nessas MDA estão disponíveis recursos muito variados, como o apoio jurídico, os espaços de reunião, utilização gratuita de redes informáticas e apoio às iniciativas de participação cívica e política mediante o estabelecimento de projetos interassociativos.

vConseils de Quartier – um dos aspetos mais relevantes da lei nº 2002-276, de 27 Fevereiro, assenta na criação de um conjunto de estratégias inovadoras, visando criar uma dinâmica operativa de democracia de proximidade, baseada na mobilização das potencialidades locais susceptíveis de produzir uma identidade de bairro. Quadro legal obrigatório em comunas com mais de 80.000 habitantes, conduziu à criação de 121 Conseils de Quartiers em Paris, e a uma dinâmica de descentralização como via preferencial para resolver os problemas da gestão territorial. As soluções, assim arquitetadas visam permitir a elaboração e o acompanhamento de projetos de interesse coletivo, através da reciprocidade e cooperação de redes associativas. Estas ações tomam especial relevância no trabalho dirigido às comunidades mais desfavorecidas, graças ao capital relacional a que passam a ter acesso.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons