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Finisterra - Revista Portuguesa de Geografia

versão impressa ISSN 0430-5027

Finisterra  no.97 Lisboa maio 2014

 

RECENSãO

 


Revisitando um clássico. Mastering space hegemony, territory and international political economyi

 

 

Elisa Pinheiro De Freitas1
1Bolsista de Pós-Doutorado Júnior (PDJ) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ), Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP). E-mail: elisafreitas@usp.br

 

 

As relações entre as unidades políticas que constituem o sistema internacional têm sido afetadas, na atual conjuntura, pelas constantes inovações que se verificam nos campos da informação, comunicação e transportes. Os fluxos de capitais, bens, serviços e pessoas tendem a não respeitar os limites fronteiriços dos estados-nações. Num mundo cada vez mais interdependente, tais factos implicam mudanças na organização espacial das atividades económicas. Compreender as transformações que ocorrem no âmbito da economia política internacional, bem como o caráter geográfico que marca as relações internacionais, é o objetivo deste livro de John Agnew e Stuart Corbridge.

Caso estejamos à procura de respostas para perguntas, tais como, “qual o papel do estado nacional num mundo cada vez mais articulado pela força das grandes empresas transnacionais-” ou “que outras potência(s) teria(m) condições para influenciar o plano das relações internacionais após o declínio da hegemonia dos estados Unidos-”, esta obra oferece-nos um diagnóstico inusitado ao fugir do óbvio, o que a torna leitura obrigatória ainda nos dias atuais, sobretudo para aqueles que se debruçam sobre temas próprios da geografia política, ciência política, economia e relações internacionais.

Nos últimos dois séculos, conforme assinalam os autores, a economia política internacional distinguiu-se pelo aspecto da hegemonia exercida pelos estados, entidades territoriais, sobre o espaço. Disputas a envolver estados nacionais, que buscavam exercer o controle sobre os recursos naturais e/ou defender sua posição estratégica, imprimiram um ritmo particular às relações internacionais. Não obstante, como expõem Agnew e Corbridge, atualmente é crescente a desterritorialização, tanto do poder político quanto do económico. Na era da globalização, o controle sobre o espaço não é mais uma prerrogativa apenas do estado nacional. Daí a emergência do espaço de relações no qual operam diferentes atores.

O livro está estruturado em três partes. Na introdução (Capítulo 1), os autores discutem a tradição geopolítica para a compreensão das relações internacionais bem com a origem do uso do vocábulo “geopolítica” e o seu vínculo ao nazismo alemão e ao determinismo geográfico. Ressaltam ainda que o termo tinha sido usado pelo geógrafo inglês, Halford Mackinder (considerado como um dos fundadores da geopolítica e geoestratégia), ao se referir ao modelo geográfico de influências no conflito global e à liderança britânica no âmbito mundial. Entre os anos de 1950 e 1960, os estudos em relações internacionais estavam interessados em abordar questões referentes à segurança nacional e ao militarismo. No entanto, conforme salientam os autores, no período pós 1970, o mercado baseado numa economia mundial ampliou-se e incorporou alguns países da ásia, áfrica e américa Latina.  

Para compreender essas mudanças, os autores resgatam o termo “geopolítica” e o rede- finem como correspondendo à divisão do espaço mundial por diferentes instituições (empresas transnacionais, movimentos sociais entre outros) nas suas esferas de influência. Em contraposição à velha “geopolítica” e aos seus conceitos correlatos (posição, primazia do estado territorial nas relações internacionais, espaço vital etc.) os autores propõem a “geopolítica crítica” que, segundo Agnew, investiga as suposições geográficas e designações que constituem a política mundial, procurando explicar as práticas através das quais os atores políticos espacializam a política internacional e a representam num mundo caracterizado por diferentes tipos de lugares. Sob essa perspectiva, o espaço não pode ser apreendido como algo fixo, mas em permanente movimento, em decorrência das práticas espaciais geradas pelos diversos atores que operam em diferentes escalas geográficas.

Após a discussão dos pressupostos da “geopolítica crítica”, os autores buscam, na primeira parte do livro, constituída pelos capítulos 2, 3 e 4, recuperar o significado do conceito de espaço, a partir de uma perspectiva gramsciana (o espaço produzido, diferenciado e contestado em qualquer projeto hegemónico). Ademais, refletem sobre os conceitos de “ordem geopolítica”, de “discurso geopolítico” e de “armadilha territorial”. A ordem geopolítica pode ser compreendida como um contexto histórico-geográfico no qual um conjunto de atividades, estratégias, instituições e regras dirigem a economia política internacional. Ressaltam os autores nesta obra que a qualificação “geopolítica” chama a atenção para os elementos geográficos da ordem mundial.

Após apresentarem os principais esquemas interpretativos sobre o sistema internacional, Agnew e Corbridge ressaltam que, desde a expansão europeia, três ordens geopolíticas se consolidaram. A primeira, conhecida como o “Concerto da europa” (período da hegemonia britânica) emergiu em 1814, após o Congresso de Viena, tendo-se estendido até 1875. A rivalidade entre as potências europeias causaria a segunda ordem, designada como “inter-imperial”. Esta entrou em declínio com o fim da segunda guerra Mundial (1945). Um mundo marcado pelo processo de descolonização e pelo surgimento de duas superpotências (EUA e URSS) marcaria a ordem geopolítica da “guerra fria”. A crise económica mundial da década de 1970 que, segundo os autores, culminou com os limites do modo de regulação fordista, assinalou a decadência da guerra fria e o aparecimento de um novo período, no qual a soberania dos estados nacionais tem sido desafiada, tanto pelo aumento dos fluxos (capitais, bens, serviços, pessoas etc.), quanto pela ação de atores não-estatais (empresas transnacionais, organizações não-governamentais, movimentos sociais, blocos económicos, etc.). De acordo com os autores, os momentos de transição de uma ordem geopolítica para outra sempre foram marcados por eventos de natureza distinta, que alteraram o equilíbrio de poder entre os estados nacionais.

As ordens geopolíticas, constituem-se e consolidam-se à medida que são capazes de produzir os discursos que as justificam. Para os autores, o discurso geopolítico corresponde às formas de compreender e narrar “a geografia da economia política internacional”. Os grupos sociais que se apoderam das estruturas dos estados nacionais, ou seja, as elites políticas, tendem a criar padrões e regras que se estendem por todo o tecido social.

Para a ordem geopolítica do “Concerto da europa” (1815-1875), empregou-se e difundiu-se o discurso da geopolítica civilizacional (a europa como padrão de civilização); a ordem geopolítica inter-imperial foi justificada por meio do discurso da geopolítica naturalizada (o estado territorial como um organismo que precisa de uma contínua expansão espacial) e, por sua vez, através da ordem geopolítica da guerra fria, disseminou-se o discurso geopolítico ideológico (capitalismo em contraposição ao socialismo e vice-versa).

Os discursos geopolíticos constituíram-se na legitimação das ações realizadas pelos estados territoriais em cada período da economia política mundial. Contudo, não se pode deixar de alertar para o seguinte facto: os discursos geopolíticos tendem a modificar-se. Isto significa que aos velhos elementos constitutivos dos discursos são acrescentados novos. assiste-se, portanto, ao longo dos tempos, à reelaboração dos discursos.

Na segunda parte do livro, composta pelos capítulos 5, 6 e 7, os autores aprofundam as discussões introduzidas na primeira parte e demonstram que o declínio dos EUA como a principal potência do sistema internacional é relativo, uma vez que a economia doméstica norte-americana nos últimos anos não tem apresentado bom desempenho, mas as suas companhias têm obtido significativa margem de lucro. Como explicar este facto - Ressaltam ainda que o foco sobre as questões do mundo atual, não se pode enredar exclusivamente por discussões que se prendem com a questão territorial, porque muitas vezes esta constitui uma “armadilha”. Os autores esclarecem que o sistema internacional contemporâneo caracteriza-se pelo facto de nenhuma economia nacional ter o pleno controlo sobre os diferentes atores que operam à escala global. E outro aspecto do mundo contemporâneo resulta do facto do poder estar disperso por diferentes regiões do globo. Estes factos tendem a caracterizar a emergência da ordem geopolítica do “Liberalismo transnacional”, justificada pelo discurso neoliberal e pela primazia do mercado autorregulado.

Na terceira parte do livro, (Capitulo 8) discute-se a constituição de novos discursos geopolíticos e as questões referentes ao multilateralismo, os dilemas relacionados com a identidade nacional e representação, no contexto da globalização.

Este livro demonstra o esforço dos autores em debater as transformações do mundo contemporâneo de forma interdisciplinar ao recorrerem aos estudiosos das diversas áreas das ciências humanas. é muito interessante a forma como articulam os conceitos de estado, território, soberania, equilíbrio de poder, hegemonia, nacionalismo, divisão internacional do trabalho, entre outros, e as teorias daquelas áreas sem perder a coerência metodológica. John Agnew e Stuart Corbridge recuperam ainda os autores clássicos da geografia política, bem como as teorias desenvolvidas neste campo do conhecimento. Ainda propõem a abordagem sobre estes temas seja feita através de uma geopolítica crítica, ou seja, consideram que os estudos sobre as relações económicas e políticas internacionais não podem prescindir de compreender o papel dos elementos geográficos na constituição de uma ordem internacional.

Pode-se afirmar que esta obra, pela complexidade dos temas abordados, significa uma grande contribuição para a afirmação da geografia política e da geografia económica e constitui um contributo incontornável para a ciência política e relações internacionais. Aqueles que se interessam por compreender as questões relacionadas com a globalização, o enfraquecimento dos estados nacionais, o (re)surgimento dos nacionalismos, os blocos económicos e os fenómenos transnacionais, não devem deixar de ler este clássico.

 

NOTES

iAgne J, Corbridge S (1995) Mastering space. Hegemony, territory and international political economy. London-New York, Routledge.

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