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Finisterra - Revista Portuguesa de Geografia

versión impresa ISSN 0430-5027

Finisterra  no.100 Lisboa dic. 2015

https://doi.org/10.18055/Finis7873 

TEXTO


 

A Serra(i).Comunidade (pequeno bilhete, sete anos depois)

 

 

Alexandra Lucas Coelho1 ii

1 Jornalista

 

 

Os estabelecimentos humanos raro sobem até aos cumes mais elevados.

Orlando Ribeiro

 

Ao sétimo glaciar ficou como está. Depois o tempo começou a trabalhar no granito. Vieram pastores, celtas, e veio o império romano, diz-se que até Júlio César. e quando

O império se foi, continuaram a vir nómadas, transumantes, pastores vestidos de pele e burel, surrobeco e pelica, com manta, cajado, alforge de pão, um corno para gordura ou azeitonas, uma aferrada para cozer batatas ou tirar leite. Punham coleiras com picos nos cães para os lobos não lhes saltarem ao pescoço. Havia lobos, raposas, javalis, víboras, lagartos, águias, corvos, trutas nas lagoas e ovelhas nos covões cobertos de erva tenra durante o estio. De abril a Outubro, os rebanhos de todos subiam a serra pastoreados à vez. Quem tinha 20 ovelhas, pastoreava um dia, quem tinha 40, dois, quem tinha 100, cinco. A isto chamava-se correr a andana ou correr a volta. Quando chegava a noite, os pastores arrumavam os rebanhos nas malhadas, lugar onde os covões estão rodeados de rochas, e enrolavam-se na manta, ao abrigo de alguma lapa, at é à manhã seguinte. Dormir dizia-se que era amanhoar.

Lá em cima, despontavam ranúnculos brancos, sargaços amarelos, campainhas, fetos, zimbro. Fazia-se queijo de ovelha e mel de urze. A terra dava o que dá no alto, centeio e batata, nos prédios que a gente do vale cultivava, em subidas regulares. Gente de passagem, gado sazonal, era isto. Mas alicerces, não.

Até que sousa Martins, futuro santo, propôs à sociedade de Geografia uma expedição às alturas. Por volta de 1880, a tuberculose progredia como “o mal do século”, a altitude podia ser a salvação e aquela era a serra. O tísico alfredo César Henriques quis ser o primeiro a estabelecer-se, comprovando a pureza de ar e água. Há fotografias do abrigo que mandou construir debaixo de uma fraga em 1882, num entusiasmo pulmonar. Chamou-lhe Casa da fraga. Foi a primeira de várias, milagrosamente poucas, ao longo do trilho que leva à lagoa.

O Observatório. A Casa do telégrafo, mais tarde do Correio. A Casa de afonso Costa. A Pensão Montanha, para 30 doentes, junto à Cabe ça do Preto, uma daquelas pedras com forma humana a que os cientistas chamam antropoglifites. O estado fez a “pousada exclusivamente destinada a viajantes e excursionistas, com a demora máxima de três dias (quatro quartos, sala de leitura, quarto de banho, fogões) ”, ainda hoje descrita no egrégio “Guia de Portugal”, e plantou pinheiros, abetos e castanheiros pelas encostas. Apareceu a estrada, a capela e o caf é que também era pensão e criação de cães. Mas em não querendo, até de Verão se ia pelos caminhos sem ver ninguém.

Gargantas, circos, ravinas, escadas de gigantes, entaladas. Nomes de pastores: lagoa comprida, escura e do peixã o, poios brancos e poio do judeu, covão dos cântaros e d’ametade, da mulher e do urso, do vidual e do bicho, do ferro e das canelas, frag ão do corvo e do passarão, fragões das candeeiras, fragas da cruz, da morte, da estrela e da batalha, penhas dos abutres e do gato, moreia do alforfa e do zêzere, cabeça do velho e da velha, vale do rossim e das éguas, seixo branco, mondeguinho.

Três rios a nascer. 147 dias de nevoeiro, 117 de chuva, 35 de neve.

E no inverno, ninguém a sério. Os trilhos ficavam cortados durante dias. Quando passou a haver estradas, as estradas ficavam cortadas durante dias. Só no Observatório havia luz nas casas de granito. Durante anos a gente do Observatório viveu isolada da família, rondada por lobos e sem ver gente. O correio era uma mulher que subia a serra a pé pelo atalho, no meio das feras e do frio. Lá em baixo, no vale, nasciam filhos de cada vez que os do Observatório vinham de visita à família. Mas era difícil falar. O inverno fecha a gente, põe-na para dentro. Um homem sozinho no cimo de uma serra torna-se impermeável. Se a sua natureza não o tira dali é porque a sua natureza também é aquilo.

A gente acrescentava vogais, dizia a iágua, o cuarro. São das primeiras palavras de que me lembro.

O frio era escuro e soprava. O calor era branco e cheirava a sabão de len çóis a corar ao sol. No Verão, as casas abriam-se pela estrada fora, da Casa da fraga até à lagoa. Um Verão dormimos no sanatório. Tinha muitas casas de banho abandonadas, de um lado e do outro. Noutro Verão dormimos na Casa do Correio. Tinha um rato. De dia, aprendíamos o telégrafo e à noite a via láctea. Houve o Verão da Casa da Galeria e o Verão da Casa Dividida. O Ver ão dos 39 Degraus no Café do samuel e o Verão em que as meninas viram aquilo dos rapazes.

Algumas pedras eram grandes como casas. Outras montavam-se como animais. Tinham musgos, e o dorso quente. Nas noites de Lua Cheia, a serra era a Lua, as pedras ficavam brancas. Nas noites de Lua nova, via-se o pó das estrelas, era o cimo da terra.

Mas quando o turismo começou a subir, o pico mais alto não era ali, gra ças aos céus e à última glaciação.

E a 1380 metros continuámos a respirar.

Lisboa, 22 de Julho de 2008

 

Comunidade (pequeno bilhete, sete anos depois)

Viajei muitas vezes com Orlando Ribeiro. Não em pessoa, claro, nem sequer em livro, mas com uma ideia de comunidade. Era o Mediterrâneo, em todas as suas margens e extensões, Ocidente-Oriente. O Levante, essa invocação.

Não vem da universidade, não me lembro de o estudar, não sei como num curso de comunica ção não tínhamos uma cadeira de geografia, mas não tínhamos. Orlando Ribeiro chegou-me em viagem, veio com os á rabes, com as oliveiras, saber até onde vão e como isso nos une, o azeite, o pão, o vinho, o queijo, o tomate, o peixe pescado antes de todo este horror, das mortes entre sul e norte, do muro na água, da barbárie nas areias onde não mais me sentarei para comer entre barcos, junto a onde o alfabeto nasceu.

Tenho uma pequena primeira edição de Mediterrâneo, Ambiente e Tradição que queria ter comigo agora, mas estou no interior de Minas Gerais, a milhares de quilómetros desse mar. E no entanto, vejo nesta serra pedras que levam ao meu começo. Orlando Ribeiro é a construção de um nós, pensamento que conhece a raiz porque a transporta, além, e al ém, e além, para que seja mais e não menos. Para que todos sejamos mais.

Pedra do Papagaio, 25 de Junho de 2015

 

Recebido: Junho 2015. Aceite: Outubro 2015.

 

 

NOTAS

 

i A primeira parte deste texto (“A Serra”) saiu em 2008 na revista Egoísta.

ii Alexandra Lucas Coelho nasceu em Lisboa. Tem carteira de jornalista desde Janeiro de 1987. Publicou cinco livros: “Oriente Próximo” (2007), “Caderno afegão” (2009), “Viva México” (2010), “tahrir” (2011) e “Vai, Brasil” (2013). Em 2012 lançou o seu primeiro romance, “e a noite roda” e em 2014 o segundo, “O Meu amante de Domingo”.

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