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Finisterra - Revista Portuguesa de Geografia

versión impresa ISSN 0430-5027

Finisterra  no.103 Lisboa dic. 2016

 

COMENTÁRIO


 

Os inquéritos [À fotografia e ao Território]: um retrato múltiplo do território português [do séc. XIX até ao presente]i

 

 

Manuel Miranda Fernandes1

Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento do Território (CEGOT), Faculdade de Letras, Universidade do Porto, Via Panorâmica, s/n, 4150 564, Porto, Portugal. E-mail: mmfernand@gmail.com

 

 

É sempre assinalável a organização de uma exposição de índole geográfica sobre o território português, sobretudo quando dela resulta um testemunho impresso de elevada qualidade. Merece atenção, portanto, o catálogo da exposição que esteve patente no Centro Internacional das Artes José de Guimarães, entre outubro de 2015 e fevereiro de 2016, e no Museu Nacional de Etnologia, em “segunda versão”, de abril a outubro de 2016. A exposição reúne um conjunto de inquéritos ao território onde a fotografia tem especial relevância: “uma miríade de retratos do território português” e uma “reflexão sobre nós mesmos e o lugar em que nos foi dado viver” (p. 15). A dialética território/fotografia assume‑se como foco desta exposição (e do seu catálogo), especialmente interpeladora num tempo marcado pela “radical democratização” do ato de fotografar (Corral Vega, 2011, p. 78) e pela contínua produção de gigabytes de imagens, frequentemente perdidas nos meandros de dispositivos eletrónicos.

O catálogo – que abre com um excerto fac‑similado do Traité Pratique de Perspective (1889), de Armand Cassagne, representando operações metódicas a que o olhar se submete, para restituir, através do desenho, um objeto em perspetiva (La distance, La ligne de terre, L'horizon, p. 5‑13) – contém uma seleção abrangente de materiais fotográficos (e outros materiais documentais), produzidos por mais de duas dezenas de autores/projetos, com destaque para o Inquérito à Arquitetura Regional Portuguesa (1955‑1957) e para os levantamentos do Centro de Estudos de Etnologia (1947‑1980). Entre as séries de imagens encontram‑se textos ensaísticos de Catarina Rosendo, sobre a obra fotográfica de Alberto Carneiro e a sua intervenção estética no território, na década de 1970; de Joaquim Moreno, sobre o supra mencionado Inquérito e a sua problematização, num plano transnacional; das entrevistas inéditas a Fernando Távora, Nuno Teotónio Pereira e Benjamim Pereira, realizadas por João Leal em 1996, que abrem os bastidores das inquirições ao território protagonizadas por arquitetos e etnógrafos, durante o Estado Novo; e de Nuno Faria, curador da exposição, que desvenda algumas das opções subjacentes à construção do extenso projeto expositivo e dos universos autorais representados.

Definiu‑se como ponto de partida deste exercício a expedição científica à serra da estrela, essa expedição de “índole caseira”, “curioso acidente de percurso” de uma sociedade geográfica vocacionada para a exploração dos territórios ultramarinos portugueses (Daveau, 1981, p. 315 e 317). O catálogo reproduz manuscritos de Martins sarmento, que dirigiu a secção de arqueologia, excertos fac‑similados de dois dos relatórios resultantes da expedição, e imagens fotográficas da serra da estrela nessa época, constituindo o núcleo mais antigo de materiais exibidos. A paisagem e os modos de vida serranos são também motivo de uma série de fotografias de Orlando ribeiro, incluindo fotomontagens panorâmicas que remontam a 1940 e se articulam com uma série fotográfica de Duarte Belo, captada na serra da estrela entre 1991 e 2015, e com o abrigo/refúgio concetual, projetado por Pedro tropa para o planalto central da serra.

A seleção fotográfica do Inquérito promovido pelo Sindicato Nacional dos Arquitetos, e dos levantamentos da equipa do Centro de Estudos de Etnologia, a que aludimos, impressa no catálogo em papel de tipo fotográfico, testemunha a afirmação da fotografia, de forma intensiva e sistemática, como método de registo ou anotação na prática do trabalho de campo, durante o séc. XX, favorecida por avanços técnicos que tornaram mais acessível o seu uso. Complementados pelo texto de Joaquim Moreno (“tanto chão”, p. 209‑225) e pelas entrevistas inéditas conduzidas por João Leal (p. 259‑351), a estes inquéritos é consagrado o essencial do catálogo. Seja‑nos permitido destacar a limpidez do céu, na fotografia em contrapicado do interior de um forno de cal (p. 187), cuja simplicidade vernacular se projeta numa grandiosidade simbólica – o dispositivo produtor da cal que revela a branco o casario na paisagem. Observe‑se ainda a reprodução das fichas de trabalho do Centro de Estudos de Etnologia, que se aproximam das do trabalho fotográfico empreendido por Artur Pastor, nas décadas de 1950 e 1960, no âmbito da Direção Geral dos Serviços Agrícolas (Pavão, 2014).

A partir deste núcleo central, a exposição (e o catálogo) irradia em múltiplas direções, através dos projetos fotográficos de autores contemporâneos, cujos discursos sobre o território compõem um amplo caleidoscópio. A diversificação das práticas fotográficas transcende agora o registo objetivo que usa a imagem como “prova”, constituindo “um espaço de discurso distinto”, que implica “uma reflexão sobre a própria fotografia, o seu estatuto e o seu potencial expressivo” (Pereira, 2016, p. 164). Uma direção que se projeta como o eco de uma euforia disruptiva restitui imagens de uma paisagem híbrida entre formas pretéritas e novas dinâmicas de uso, representada por Álvaro Domingues, com “A Rua da Estrada” (2009) e “Vida no Campo” (2012), por Carlos Lobo, com a série “Songs from a River” (2012), por Paulo Catrica, com a série “Periferias” (1997/98), e por “Cimêncio” (2003), de Nuno Cera e Diogo Lopes. Outra direção, que se aproxima do território pelo seu potencial estético, resulta num labor artístico que encontra em Alberto Carneiro a abordagem mais radical, e porventura a mais estimulante, examinada por Catarina Rosendo (“Por uma estética do concreto. Território e identidade nas obras fotográficas de Alberto Carneiro”, pp. 41‑53). Nesta direção cruzamo‑nos também com Mariana Caló e Francisco Queimadela, com o projeto “Observatório” (2012), Eduardo Brito e a série “Sob a Luz Quase Igual” (2012), André Príncipe e “O Perfume do Boi” (2012) e Valter Vinagre e “Posto de Trabalho” (2010/2013). Identificamos ainda uma terceira direção, a do inventário das formas do território que permanecem, e dos modos de vida que perduram, na esteira dos inquéritos realizados no séc. XX, como o extenso trabalho de Duarte Belo, através da série “Portugal Próximo” (1991‑2015), e numa dimensão mais etnográfica, Luís Pavão e a série “Serra do Caldeirão” (1980), e Álvaro Teixeira, cuja série “Moinhos da Igreja” se apresentou ao público pela primeira vez nesta exposição. Mencione‑se ainda o trabalho singular de Jorge Graça, na série noturna “Eclipse”, usando a luz do luar para “ver” a paisagem.

O catálogo inclui ainda uma referência sumária aos projetos “Duas Linhas” (2009), de Pedro Campos Costa e Nuno Louro, e “Sete Círculos” (2016), de Pedro Campos Costa e Eduardo Costa Pinto, o primeiro dos quais regista de forma sistemática o território português, ao longo de duas linhas dispostas de norte a sul, uma junto à costa ocidental, outra na raia oriental; o segundo regista o território de Lisboa e seus arredores a partir de sete círculos concêntricos, que intersetam direções pré‑determinadas, ligando o dispositivo geométrico à paisagem concreta, e aos processos e relações que nela têm lugar. Por fim, o catálogo menciona o projeto sonoro de Carlos Alberto augusto para a exposição, realizado a partir de recolhas feitas entre 1974 e 2015, e os filmes de André Príncipe (Campo de Flamingos Sem Flamingos, 2013) e Daniel Blaufuks (Um Pouco Mais Pequeno do que o Indiana, 2006), que foram exibidos de forma permanente durante a exposição.

Evidentemente, encontrar um fio condutor para ordenar esta multiplicidade de perspetivas num catálogo impresso não é uma tarefa fácil, nem sempre sendo claro qual o critério adotado. Dado que o índice se restringe aos textos impressos, não indexando os autores das séries fotográficas, o leitor terá de percorrer o catálogo como um território de descoberta, abrindo nele o seu próprio caminho. Saliente‑se o facto de o catálogo ser bilingue (português/inglês), o que contribuirá para a sua difusão e para alargar o universo de potenciais leitores.

Um apontamento final é devido ao subtítulo Paisagem e Povoamento, que o programa expositivo e o catálogo partilham com a obra de Carlos de Oliveira, Finisterra – Paisagem e Povoamento (1978). Podemos supor uma relação concetual do programa expositivo com esta narrativa, por vezes considerada como uma espécie de escrita fotográfica? Com efeito, permeada por uma luz que “age de outra forma, com a ajuda do uso e do tempo”, encontramos (na obra? na exposição?) uma “geometria submersa na realidade” e a reconstrução mágica da paisagem, pelo fogo que a lavra por dentro. A “duplicidade do real” tem aqui especial lugar: um homem vagueia toda a noite, sem luz, a caminho da infância, duplicando regressivamente a sua própria imagem, quem sabe se em busca de uma câmara escura onde possa revelar‑se.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Corral Vega, P. (2011). An abundance of images: is it leading to a ‘trivialization of photography'? Nieman Reports, 65(1), 78-81.         [ Links ]

Daveau, S. (1981). A expedição científica à Serra da Estrela, organizada pela Sociedade de Geografia de Lisboa em Agosto de 1881. Finisterra – Revista Portuguesa de Geografia, 16(32), 314-318.         [ Links ]

Oliveira, C. (1978). Finisterra – Paisagem e Povoamento. Lisboa: Sá da Costa Editora.         [ Links ]

Pavão, L. (2014). Pastor, guardador de sonhos. In L. Pavão (coord.), Artur Pastor [versão digital], Arquivo Municipal de Lisboa, pp. 11-28. Disponível em: www.arquivomunicipal.cm-lisboa.pt/fotos/produtos/catalogoarturpastor_76694821053eb38131caac.pdf         [ Links ]

Pereira, L. (2016). Documento e discurso: sobre os inquéritos (à fotografia e ao território). Práticas da História - Journal on Theory, Historiography and Uses of the Past, 1(2), 153-175.         [ Links ]

 

 

NOTAS

iFaria, N. (2016). (coord) Os inquéritos [à fotografia e ao território] / Paisagem e povoamento. Textos de Catarina Rosendo, Joaquim Moreno, João Leal e Nuno Faria. Guimarães: A Oficina e Sistema Solar (Documenta). Edição bilingue (port./ingl.), 424 pp. Il., mapas, bib. [ISBN 978‑989‑8474‑39‑1].

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