SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número104Planeamento e conflitos territoriais: uma leitura na ótica da (in)justiça espacial índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Finisterra - Revista Portuguesa de Geografia

versão impressa ISSN 0430-5027

Finisterra  no.104 Lisboa abr. 2017

 

NOTA INTRODUTÓRIA


 

João Morais Mourato; Paulo Morgado

 

 

A prática do ordenamento do território, o desenho, implementação e avaliação dos seus instrumentos, é um ato fundamentalmente político. Político no sentido em que são decisões de natureza política que definem as matrizes de atribuição de poder e de recursos que, por sua vez, determinam a evolução dos territórios. Contudo, a ênfase predominante no debate académico nacional, tem sido em torno do ordenamento do território enquanto política pública e não enquanto arena de ação política de profundo impacto na res pública.

Neste sentido, os conflitos - implícitos e explícitos – derivados da intervenção no território podem, enquanto objecto de estudo na investigação e conceptualização do pensamento geográfico, promover a (re)politização do debate académico sobre os fundamentos da prática do ordenamento do território em Portugal. Esta (re)politização é, no nosso entender, justificada pelo crescente número de soluções alternativas de governança territorial que emergem no contexto nacional.

Estas soluções resultam da adoção de uma filosofia de intervenção integrada no território como resposta à crescente complexidade de gestão do mesmo. Destas soluções alternativas gera-se também uma nova convivência entre interesses já solidamente organizados e outros ainda em processos embrionários de mobilização, organização e institucionalização. Estes últimos, em particular, representam: (i) uma janela de inovação face aos padrões tradicionais de mobilização e intervenção da sociedade civil e (ii) um teste aos limites dos atuais mecanismos de legitimação e democratização da intervenção pública no território.

Sublinhe-se que a problemática das soluções alternativas de governança territorial não é nova no domínio do ordenamento do território. Há muito que se advogam e experimentam abordagens mais participadas e colaborativas na gestão do mesmo. Contudo, uma análise crítica da evolução destas práticas levanta a dúvida se as mesmas constituem, de facto, arenas de emancipação societal. Ou, se pelo contrário, promovem: (i) o reforço das lógicas de poder dominantes via a instrumentalização dos contributos da sociedade civil e (ii) a desresponsabilização do decisor-político via a criação de soluções alternativas de legitimação da intervenção no território. Neste sentido, há que questionar se estas práticas participativas e colaborativas públicas desviam, ou não, a atenção dos verdadeiros processos materiais e políticos que moldam as relações sociais e funcionais no território.

É, no contexto destes novos processos de transformação territorial que emergem os territórios pós-políticos. Estes, à luz da definição de Eric Swyngedouw, são estruturados por configurações institucionais mais ou menos formais, assentes na lógica normativa e disciplinadora da produção de consensos e compromissos, que acabam por sublinhar os limites das formas já institucionalizadas de democracia representativa e participativa.

A omissão dos conflitos, dinâmicas agonísticas e práticas contenciosas na produção destes territórios pós-políticos reacende o debate sobre o direito à cidade tal como Henri Lefebvre o conceptualizou há mais de cinco décadas. Manuel Castells, Susan Fainstein, John Friedmann, John Forester, David Harvey, entre outros, fizeram evoluir conceptualmente o direito à cidade não o limitando somente à formulação de direitos de cidadania para a exigência do cumprimento dos mesmos, mas também enquanto peça fundamental nas dinâmicas espaciais de transformação urbana. E, é aqui especificamente, que a questão do direito à cidade, reforça a validade do conflito enquanto objecto de inquisição geográfica.

Em Portugal, a análise, modelação, monitorização e gestão de conflitos na intervenção no território, tarda em impor-se quer como (i) peça fundamental do processo de elaboração e implementação de políticas públicas de gestão territorial, quer como (ii) objecto de estudo, na investigação e conceptualização do pensamento geográfico. Foi neste sentido que se organizou no IX Congresso da Geografia Portuguesa, em Évora, uma sessão paralela centrada especificamente no tema do conflito e território.

Os contributos reunidos neste número da Finisterra resultam dessa sessão paralela. Como conjunto, constituem uma amostra da multiplicidade de abordagens em torno da relação conflito e território plasmando diferentes tipos de conflito, ângulos de análise do mesmo, e metodologias de mitigação, gestão e mediação do conflito, mediante procedimentos de liderança e apoio à decisão. São analisados exemplos que abrangem processos de urbanização planeada, casos de intervenção em áreas urbanas de génese ilegal, requalificação de centros históricos, a perene dificuldade de constituição de uma política efetiva de mobilidade à escala metropolitana, ou a complexidade da gestão dos usos do solo sob pressão do desenvolvimento de índole turística, na orla costeira.

Em suma, o objectivo deste número é o de promover um debate, a nosso ver, ainda embrionário no contexto nacional. A pertinência deste justifica-se por múltiplos factores. Sublinhamos um: a reforma da administração do território em Portugal. A concretização desta reforma tem inegável impacto no atual contexto de reconfiguração das soluções de governança territorial. É legítimo assumir que pode deste processo resultar o surgimento de novos conflitos, ou o reforço dos já existentes ao nível das relações de poder dos principais agentes de transformação do território. Esta é uma área de investigação que se impõe, se pretendemos promover um pensamento geográfico crítico e socialmente comprometido.

 

The practice of Planning, the design, implementation and evaluation of its instruments, is a fundamentally a political act. Political in the sense that Planning, as a public policy, is framed by political decisions that define frameworks and rules of allocation of power and resources that, in turn, condition the dynamics of territorial development. However, the predominant emphasis on the Portuguese national academic debate has been one of instrumentalism focusing on spatial planning as a public policy, and not as an arena of and for political action with profound impact on the res publica.

In this sense, the implicit and explicit conflicts resulting from territorial development may, as a research subject and as a geographical concept, promote the (re)politicization of the academic debate on the foundations and practice of planning in Portugal. In our view, the need for this (re)politicization is paramount in face of the growing number of national and local alternative territorial governance solutions that have recently emerged.

These solutions embody an underlying integrated approach philosophy to territorial development aimed to tackle its growing complexity. However, these solutions generate new patterns of coexistence between already well-organized vested interests and others still in an embryonic process of mobilization, organization and institutionalization. The latter, in particular, represent: (i) a window of social and institutional innovation compared to traditional patterns of mobilization and intervention of civil society and (ii) a test to the limits of the current mechanisms of legitimization and democratization of public intervention in territorial development processes.

The experimentation with alternative solutions of territorial governance is not new to planning. There is an already substantial track record in both advocating for and putting into practice more participated and collaborative planning approaches. However, a critical analysis of the evolution of the latter raises the question whether they are in fact, societal emancipation arenas. Or, quite the opposite, that they promote: (i) the strengthening of the dominant power rationales via the instrumentalization of the inputs of civil society and (ii) the dismissal of part of the accountability of political decision-makers via the introduction of alternative planning policy legitimization processes. In this sense, it is necessary to question whether these public participatory and collaborative practices deviate or not our attention from the real material and political process that shape territorial social and functional relations.

From within these new spatial transformation processes emerge the post-political territories. In line with Eric Swyngedouw’s definition, these are structured by more or less formal institutional settings, are normatively consensus-led thus highlighting the limits of the forms already institutionalized representative and participatory democracy. The omission of conflicts, agonistic dynamics and contentious practices in the production of these Post-political territories, rekindles the debate on the right to the city as Henri Lefebvre conceptualized over five decades ago. Manuel Castells, Susan Feinstein, John Friedmann, John Forester, David Harvey, among others, have further theorized the right to the city beyond the issue of rights formulation and political acculturation of citizens to demand it, but also as a key part of the spatial dynamics underpinning urban transformation. In this sense, the right to the city, reinforces the validity of conflict as an object of geographical inquiry.

In Portugal, the mapping, analysis, modeling, monitoring and management of conflicts in territory development is yet to draw significant attention either as: (i) fundamental part of the process of elaboration and implementation of public policies of territorial management; (ii) or as an object of study, research and conceptualisation of geographical thought. In order to address this gap, we have organized at the Ninth Congress of the Portuguese Geography in Évora, a parallel session focused specifically on the theme of conflict and territory. The contributions collected in this issue of Finisterra spring from this parallel session.

 As a whole they constitute a showcase of the multiplicity of research approaches to the relationship between conflict and territory. They cover: (i) different types of conflict; (ii) different angles of the same type of conflict; and (iii) different methods of conflict mitigation, management and mediation through leadership and decision-making support. The empirical cases under review range from planned urbanization processes, interventions in urban areas of illegal genesis, historic center rehabilitation, the setting up of an effective mobility policy at the metropolitan scale or the complexity of coastline land use management in face of tourism development pressures.

In short, the aim of this issue is to promote a debate, which is, in our view, still embryonic in the national context. Its relevance is justified by multiple factors. Let us emphasize one: the ongoing reform of the Portuguese territorial administration framework. In our view, the implementation of this reform will have an undeniable impact in the current context of reconfiguration of territorial governance solutions. It is legitimate to assume that this process can result in the emergence of new conflicts, or the deepening of already existing ones within the power relations of the main territorial development actors. This is a fundamental field of inquiry if we are to promote critical and socially engaged geographical research.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons