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Finisterra - Revista Portuguesa de Geografia

versão impressa ISSN 0430-5027

Finisterra  no.104 Lisboa abr. 2017

https://doi.org/10.18055/Finis10787 

RECENSÃO


 

Fear, space and urban planning. A critical perspective from Southern Europe1

 

 

Anna Ludovici2

2Estudante de Doutoramento em Migrações, Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa (IGOT-UL). E-mail: ludovicianna@campus.ul.pt

 

 

A produção do espaço continua a ser um tema central nos estudos relativos à relação entre dinâmicas sociais e planeamento urbano. As agendas neoliberais que determinam o “sucesso” e a competitividade das cidades contemporâneas, impõem políticas públicas de gestão e de organização dos territórios que alteram a diferentes escalas as paisagens urbanas e as formas de vivenciar o espaço público.

Nesse contexto líquido e glocal (Swyngedouw, 2004; Castells, 2009), as cidades continuam a desenvolver um papel determinante para delinear os novos instrumentos de leitura, descodificação, interpretação e reconstrução do espaço. A alta concentração de recursos económicos, sociais, financeiros, etc., faz com que as cidades globais atraiam um número crescente de interesses e stakeholders diversificados. Por um lado, é possível afirmar, portanto, uma tendência geral ao multiculturalismo e à multietnicidade, que questiona a nossa relação com a alteridade e os sentimentos de inclusão ou de medo e repulsão que este contacto (forçado) comporta.

 Por outro lado, o crescente uso das tecnologias da informação (TIC), seja a nível individual e privado, seja no que diz respeito às políticas públicas de controlo e segurança, determina novas formas de “estar nas cidades”, e condiciona as práticas diárias e os comportamentos dos seus moradores. A crescente desigualdade e as dinâmicas de exclusão socio-espacial geram, portanto, conflitos políticos e sociais que se manifestam entre o espaço virtual da rede e o espaço físico da rua (Queirós, Roque, Quintela, Ludovici, & Vitoriano, 2015), e que levantam questões relativas ao efetivo direito de acesso à cidade (Lefebre, 2012) e desafiam formas inovadoras e alternativas de planeamento.

É neste âmbito de investigação que Simone Tulumello, com o livro: Fear, Space and Urban Planning. A Critical Perspective from Southern Europe, editado pela Springer em 2017, levanta questões significativas relativamente entre o espaço urbano, o seu planeamento e o sentimento de “medo”.

O autor questiona as formas de produção e de reprodução da “insegurança” percebida no espaço público urbano, através das narrativas realçadas pelos meios de comunicação e em particular os seus efeitos a nível político, destacando assim a dimensão espacial dentro do quadro mais complexo da geopolítica internacional. Com estes objetivos principais, são investigadas as práticas do planeamento urbano comparando as diferentes estratégias adotadas por cidades ocidentais situadas no contexto da Europa do Sul (nomeadamente Lisboa e Palermo), consideradas como exemplo de um modelo específico, em que a reprodução das práticas neoliberais assume uma tipologia própria e peculiar.

O livro articula-se em 6 capítulos, cada um estruturado de forma autónoma, e garantindo ao leitor diferentes temas de aprofundamento. A partir do conceito de fearscape (paisagem do medo), são exploradas as formas através das quais o “medo” no espaço urbano é construído e reproduzido a partir da influência dos media, de uma desinformação sistemática e dos paradoxos da insegurança (Cap. 2). Nessa dinâmica, assume importância o papel que as lógicas políticas atribuem ao “outro” e a forma como é construído o conceito de alteridade (Cap. 3). O espaço urbano é assim avaliado na sua relação entre o medo e a insegurança (Cap. 4) e nos modos como o planeamento é influenciado por estas instâncias (Cap. 5). No último capítulo (Cap. 6), o autor imagina que uma realidade possível para a cidade do futuro seja a de uma cidade distópica na qual a economia política do medo se tornará dominante (Tulumello, 2017: xix); mas também não abdica em considerar a hipótese de uma ação planificadora capaz de enfrentar as economias políticas do medo.

O “medo” - nomeadamente de ser vítima de um crime violento dentro do espaço urbano – determina o aspeto da cidade contemporânea, a sua paisagem e a sua experiência. Mas quais são as relações entre as transformações contemporâneas do espaço e o crescente sentimento do medo no espaço urbano? É o medo uma componente inevitável da vida urbana? E se sim, de que forma o planeamento urbano responde às instâncias de segurança por um lado, e de participação e acesso democrático, por outro? Para responder a estas perguntas, o autor analisa a fearscape a partir da (re)produção do sentimento do medo a fim de oferecer uma abordagem crítica à análise das transformações espaciais produzidas direta ou indiretamente pelos discursos sobre e pela perceção da insegurança. A análise das estratégias espaciais e das formas narrativas através das quais este sentimento se reproduz nas práticas diárias e na planificação das ordinary cities, leva este trabalho além dos mais tradicionais estudos análogos relativos às global cities ou às cidades de conflito (Sassen, 2001; Soja, 1996). De acordo com Tulumello, são as próprias odinary cities os espaços onde as estratégias de controlo e de vigilância injustificadas são normalizadas e naturalizadas, perdem o próprio conteúdo “extraordinário” e tornam-se instrumentos consuetudinários de garantia da segurança e do bem estar dos cidadãos.

A cidade, na sua vivência normal, torna-se cada vez mais central nas dinâmicas do poder. O “planeamento do medo”, através da adoção de uma “biopolítica do terror” (Debrix & Barder, 2009), constitui o manifesto das lógicas hegemónicas que de fato controlam e manipulam o acesso e o direito à cidade (Harvey, 2012; Lefebvre, 2012) e consequentemente o exercício completo da cidadania. O modelo político ocidental é assim analisado no seu paradoxo mais evidente: ter um nível crescente de medo em cidades que nunca foram tão seguras. Isto justifica e é justificado por um conjunto de retóricas e práticas planificadoras que, com o objetivo de garantir segurança, configuram uma política sistemática (com evidentes derivas económicas neoliberais) de diminuição progressiva da liberdade, através de um controlo cada vez mais invasivo - câmaras de vigilância, privatizações, etc. - que não apenas limita a privacidade dos cidadãos, como, também, condiciona os seus comportamentos e o seu acesso ao espaço público.

A institucionalização da insegurança cria, na verdade, uma situação de excecionalidade (Agambem, 2003) em que (i) a sub-representação de alguns grupos (ii) a limitação de ação de outros e (iii) um substancial contexto de desdemocratização, são justificados e implementados através da suspensão da lei “normal” a favor de uma nova ordem, justamente, a da exceção.

Ao colocar em relação a retórica do medo com a produção do espaço, nota-se como a primeira condiciona e se insere no debate aberto sobre as geografias da exclusão. A existência, nas cidades globais da diversidade, do multiculturalismo e da reivindicação da identidade estranha dos “outros”, gera um conflito cada vez mais evidenciado pela construção e pelo esforço de fronteiras (Raffestin, 1986) não apenas e simplesmente nacionais. Se é verdade que é também a dimensão do irracional (como refere o autor) – (ou seria melhor dizendo, do emocional) a definir a construção e a organização do nosso espaço (Epstein, 1998), as lógicas do medo, fazem, então, com que o aspeto da cidade seja moldado a partir de uma dicotomia: “nós” – os que precisamos de segurança, os que abdicamos dos nossos direitos fundadores em nome dela; e “os outros” – a ameaça. A paisagem urbana do medo acaba assim por refletir as dinâmicas da exclusão social, da segregação, do controle por parte do poder central, suportando a reprodução das relações de poder (Raffestin, 1980; Soja, 1996) e da injustiça espacial.

É nesse sentido que talvez o capítulo quarto seja o mais original do livro, ao fixar no espaço urbano uma taxonomia dos territórios do medo, nomeadamente: as áreas fisicamente delimitadas (enclosures); as barreiras; o espaço pós-público e as formas de controlo. Estas categorias de fearscape delimitam o espaço urbano, quer fisicamente, através da construção de limites de exclusão e segregação, e de impedimentos à mobilidade, quer mais subtilmente através de processos de privatização e da atuação das políticas de vigilância. A partir da recolha de dados empíricos nas cidades de Lisboa e Palermo, Tulumello destaca mais uma vez como as práticas consideradas excecionais, se estão progressivamente a tornar normais e a constituir elementos determinantes no processo de construção e reconstrução do espaço urbano. Contudo, algumas cidades da Europa do sul são caraterizadas por padrões espaciais originais e complexos (Malheiros, 2002), nos quais as lógicas segregadoras são às vezes menos institucionalizadas.

A multiescalaridade na abordagem do autor, permite de fato, no capítulo 5, evidenciar estes aspetos, aumentando o zoom e concentrando a atenção em dois bairros específicos das áreas metropolitanas de Lisboa e Palermo. O autor consegue demonstrar, por um lado, como o medo é de facto fruto de uma reprodução complexa, decorrente de uma multiplicidade de níveis: o espacial e o das narrativas, tanto políticas, como da informação, elaboradas no quadro de uma intensificação das lógicas da insegurança.

Por outro lado, o espaço urbano, mais do que o conjunto das relações sociais em geral, assume um papel fundamental, sendo a dimensão na qual os atores são posicionados e o resultado das suas práticas diárias. Nesse sentido, é dentro do espaço urbano que os sentimentos do medo se reproduzem, alimentados por dinâmicas geopolíticas e pela construção de uma narrativa da alteridade: três dimensões que, interligadas, influenciam e determinam as políticas e a praxis do planeamento urbano.

Portanto, qual será o futuro? Duas hipóteses possíveis são contempladas no último capítulo: uma na qual a cidade continua caraterizada pela atual paisagem do medo, e onde as políticas económicas da insegurança se tornam dominantes. Uma segunda, em que algumas possíveis práticas e ações de planeamento sejam capazes de enfrentar as economias políticas do medo através: (i) de poli-racionalidade e da criatividade; (ii) de um contradiscurso radical e (iii) de uma marginalidade ativa.

Confirma-se, portanto, a centralidade e a importância de uma análise do espaço urbano nas dinâmicas hegemónicas e contra-hegemónicas que caraterizam a sociedade contemporânea. Uma abordagem geográfica que assume o território como ponto de partida e não apenas como cenário das atividades humanas consegue explicitar os desenhos políticos e as narrativas neoliberais mais elusivas, explicando as práticas que desenham o espaço no qual agimos, e que condicionam a nossa própria forma de pensar e re-conceptualizar a realidade.

Um espaço que nos imponha escolhas entre direitos fundamentais, que implique (nos casos mais extremos) uma moralização dos comportamentos e a justificação da limitação da democracia, é um espaço desigual, segregador e substancialmente injusto. Mas a consciência de que o espaço nunca é um produto neutro, longe de ser uma consideração desanimadora, permite-nos imaginar práticas e planeamentos alternativos, inclusivos das instâncias marginalizadas pelas lógicas dominantes.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Agamben, G. (2003). Stato di eccezione [Exception state]. Torino: Ed. Bollati Boringhieri.         [ Links ]

Castells, M. (2009). The Networked City: Réseaux, espace, société. EspacesTemps.net         [ Links ]

Debrix, F., & Barder, A. D. (2009). Nothing to fear but fear: Governmentality and the biopolitical production of terror. International Political Sociology, 3(4), 398–413.         [ Links ]

Epstein, D. (1998). Afraid/not: Psychoanalytic directions for an insurgent planning history. In L. Sandercock (Ed.), Making the invisible visible: A multicultural planning history (pp. 209-226). Berkeley: University of California Press.         [ Links ]

Harvey, D. (2012). Rebel cities. From the right to the city to the urban revolution. London: Verso.         [ Links ]

Lefebvre, H. (2012ed). O Direito à Cidade [The right to the city]. Lisbon: Ed. Letra Livre.         [ Links ]

Malheiros, J. (2002). Ethni-cities: Residential patterns in Northern European and Mediterranean metropolises—Implications for policy design. International Journal of Population Geography, 8(2), 107-134.         [ Links ]

Queirós M., Roque, A.R., Quintela, P., Ludovici, A., & Vitoriano, N. (2015). Born in the blogosphere, staging in the streets: crisis, austerity and urban social movements. In E. Gualini (Ed.), Conflict in the City: Contested Urban Spaces and Local Democracy. Berlin: Jovis        [ Links ]

Raffestin, C. (1986). Eléments pour une théorie de la frontière. Diogène, 34(134), 3-21.         [ Links ]

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Sassen, S. (2001). The Global City: New York, London & Tokyo. Princeton: University Press.         [ Links ]

Soja, E. (1996). Thirdspace: Journeys to Los Angeles and other real-and-imagined places. Cambridge: Blackwell.         [ Links ]

 

 

NOTAS

1Tulumello, S. (2017). Fear, Space and Urban Planning. A Critical Perspective from Students Europe. Switzerland: UNIPA, Springer Series.

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