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Finisterra - Revista Portuguesa de Geografia

versão impressa ISSN 0430-5027

Finisterra  no.114 Lisboa ago. 2020

https://doi.org/10.18055/Finis19631 

ARTIGO

Da crítica do canteiro à autogestão: Sérgio Ferro, Usina e os mutirões autogeridos em São Paulo, Brasil

From the critique of the building site to self management: Sérgio Ferro, Usina and self managed mutirões in São Paulo, Brazil

De la critique du chantier à l’autogestion: Sérgio Ferro, Usina et mutirões autogérées à Sao Paulo, Brésil

Desde la crítica de la obra de construcción a la auto-gestíón: Sérgio Ferro, Usina y mutirões autogestionados en Sao Paulo, Brasil

Bernardo Amaral1

1Arquiteto, doutorando, Departamento de Arquitetura, Faculdade de Ciências e Tecnologias, Universidade de Coimbra, Edifício Colégio das Artes, Largo D. Dinis, 3000-143, Coimbra, Portugal. E-mail: bernardo.amaral@student.fct.uc.pt


 

RESUMO

Conceitos como trabalhador coletivo e crítica do canteiro, desenvolvidos pelo arquiteto e crítico brasileiro Sérgio Ferro, são cruciais para interpretar a prática de coletivos de arquitetos, engenheiros e educadores sociais que irão dar apoio a movimentos de direito à habitação, surgidos na região de São Paulo desde os anos 90. Um desses coletivos, Usina - Centro de Trabalhos para o Ambiente Habitado (Usina CTAH), fundado em 1990, conta hoje com uma vasta experiência de assessoria técnica a movimentos sociais organizados em equipes de trabalho autogeridas, comummente apelidadas de mutirões. Este artigo, propõe-se a analisar a metodologia de trabalho da Usina CTAH, nomeadamente os seus processos de desenho, de decisão e de negociação, à luz dos conceitos lançados por Sérgio Ferro nos anos 70, no sentido de entender a importância da sua obra na redefinição da prática arquitetónica enquanto prática económica, social e política.

Palavras-chave: Arquitetura; Sérgio Ferro; mutirões; autogestão; direito à habitação.


 

ABSTRACT

The concepts of collective worker and critique of the building site developed by the Brazilian architect and theorist Sérgio Ferro, are crucial to understand the practice of architectural collectives that started emerging in the 1990s with the purpose of providing technical guidance to right-to-land and right to housing grassroots movements in the region of São Paulo. One of such cases is Usina - Centro de Trabalhos para o Ambiente Habitado (Work Centre for the Inhabited Environment) (Usina CTAH), founded in 1990, gatherer of an extensive experience in technical consultancy to social movements organized as self-managed building teams, usually called mutirões. This paper aims to analyse Usina’s work and methodologies of design, decision and negotiation processes in the light of Sérgio Ferro’s concepts, in order to better understand the importance of his work in terms of redefining architectural practice as a political, social and economic agency.

Keywords: Architecture; Sérgio Ferro; mutirões; Self-management; Right-to-housing.


 

RÉSUMÉ

Des concepts comme travailleur collectif ou critique du chantier, développés par l’architecte et critique brésilien Sérgio Ferro sont cruciaux pour interpréter la pratique de collectifs d’architectes, d’ingénieurs et d’éducateurs sociaux qui vont soutenir les mouvements de droit au logement qui émergent à São Paulo depuis les années 1990. L’un de ces collectifs, l`Usina - Centro de Trabalhos para o Ambiente Habitado (Centre de Travail pour l’Environnement Habité) (Usina CTAH), fondé en 1990, apporte une vaste expérience dans l’assistance technique aux mouvements sociaux organisés en équipes de travail autogérées, aussi connues par mutirões. Cet article propose une analyse de la méthodologie de travail de l’Usina CTAH, notamment sur ses processus de conception, de décision et de négociation, à la lumiére des concepts de Sérgio Ferro, afin de comprendre l’importance de son Suvre dans la redéfinition de la pratique de l’architecture en tant que pratique économique, sociale et politique.

Mot clés: Architecture; Sérgio Ferro; mutirões; autogestion; droit au logement.


 

RESUMEN

Conceptos como trabajador colectivo o crítica de la obra de construcción, desarrollados por el arquitecto y crítico brasileño Sérgio Ferro, son cruciales para interpretar la práctica de colectivos de arquitectos, ingenieros y educadores sociales que van dar asistencia a movimientos de lucha por el derecho a la vivienda que surgen en el estado de São Paulo desde los años 90. Uno de estos colectivos, Usina - Centro de Trabalhos para o Ambiente Habitado (Centro de trabajo para el medio ambiente habitado) (Usina CTAH), fundado en 1990, cuenta hoy con una amplia experiencia de asesoría técnica a movimientos sociales organizados en equipos de trabajo auto-gestionados, comúnmente denominados de mutirões. En este artículo, propongo analizar la metodología de trabajo de Usina CTAH y su proceso de disenõ, de decisión y de negociación a la luz de conceptos introducidos por Sérgio Ferro en los años 70, para entender la importancia de su obra en la re-definición de la práctica arquitectónica como una práctica económica, social y política.

Palavras clave: Arquitectura; Sérgio Ferro; mutirões; auto-gestión; derecho a la habitación.


 

I. Introdução

O debate internacional recente em torno da prática de arquitetura como intervenção social e política tem girado com frequência em torno do conceito de participação, ou seja, de diferentes modos de incluir os futuros moradores no processo de conceção do projeto de arquitetura - um debate disciplinar, que retoma questões levantadas nos anos 1960 e 70 por arquitetos como De Carlo (1969/2005) ou Turner (1972). Recentemente, destacam-se neste campo os contributos de autores como Till (2005), Miessen (2010), entre outros, conceptualizando a problemática ao atual contexto socioeconómico europeu, carecendo, porém de analisar em profundidade o impacto da mesma revisão disciplinar na articulação entre as práticas de projeto e as práticas de construção.

A obra do arquiteto e crítico brasileiro Sérgio Ferro é, neste campo, de especial relevância e originalidade, requerendo, contudo, de publicação e respetiva recensão crítica em Portugal. Embora publicado no Brasil, França e recentemente no Reino Unido e Estados Unidos (com algumas exceções, como o ensaio de André Tavares de 2009 sobre o advento do modernismo brasileiro), a sua obra teórica merece maior divulgação no contexto do debate sobre o papel político e social da prática arquitetónica. Desde os anos 1960, que Ferro desenvolve uma análise crítica da arquitetura, simultaneamente disciplinar e ideológica, identificando na arquitetura moderna uma separação entre o desenho e o estaleiro de obra; entre o arquiteto e o construtor - uma separação forçada que, segundo o autor, é um dispositivo de dominação classista e ideológica (Ferro, 1979/2006). Para Ferro, a prática de arquitetura é uma prática política, que se manifesta através das relações de produção, ou seja, das relações de poder no meio laboral, com consequências disciplinares. Como superação da tensão entre desenho e estaleiro de obra, Ferro propõe uma revisão integral das relações de produção, na direção de uma prática autogerida entre técnicos habilitados, construtores e futuros moradores.

As experiências das assessorias técnicas aos movimentos de direito à habitação a partir dos anos 1990 em São Paulo, Brasil, são neste contexto especialmente pertinentes, procurando implementar a autogestão como modelo de organização laboral e de mediação entre o projeto e o estaleiro de obra, ou seja, superando potencialmente a tensão denunciada por Sérgio Ferro entre o desenho e a obra. Mais do que um modelo de participação, em que os futuros moradores contribuem pontualmente na conceção do projeto, os projetistas, os futuros moradores e os construtores são parte de uma equipa desde o início do projeto até à sua conclusão. Estes grupos de moradores organizados por movimentos de direito à habitação, participam igualmente do processo construtivo num sistema de ajuda mútua, tradicionalmente apelidado no Brasil de mutirão, sendo desde então denominados de mutirões autogeridos.

Neste artigo analiso a pertinência da crítica disciplinar de Sérgio Ferro e seu impacto na prática, nomeadamente no quotidiano laboral de uma assessoria técnica, que tenha a autogestão como modelo de organização interna e de mediação entre projeto e a obra. A Usina - Centro de Trabalhos para o Ambiente Habitado (Usina CTAH), associação sem fins lucrativos e sediada em São Paulo, é uma dessas assessorias, contando hoje com 30 anos de trabalho exclusivo de apoio a movimentos de direito à habitação. A partir de uma residência de investigação de quatro semanas no escritório da Usina, tive oportunidade de acompanhar o seu quotidiano laboral, no sentido de caracterizar as suas relações de produção e de analisar obras construídas e em curso.

O artigo está organizado em três partes: a recensão à obra de Sérgio Ferro, uma análise das assessorias técnicas à luz dos conceitos de Ferro e as notas finais. A primeira parte - “O Canteiro e o Desenho” - está organizada em 4 pontos, nomeadamente “Poética da Economia”, “Crítica do Canteiro”, “História de Arquitetura vista de baixo” e “Canteiro Livre”. O primeiro ponto foca-se sobre a obra de Ferro enquanto jovem arquiteto e membro do coletivo Arquitetura Nova, anunciando desde cedo uma reflexão sobre a prática de projeto centrada no estaleiro de obra e na racionalização construtiva e espacial. No segundo ponto abordo a crítica do canteiro, uma perspetiva inédita no campo da teoria e crítica da arquitetura, focada nos meios e modos de produção e respetivas relações de poder, que servirá de base também para explorar um novo campo da historiografia da arquitetura enunciado no quarto ponto - “A História da Arquitetura vista de baixo”. Por fim, em “Canteiro Livre”, procuro resumir as principais ideias de Ferro para superar a contradição denunciada pelo próprio entre desenho e obra, tendo como ideal social o conceito de trabalho livre. A segunda parte, “O Canteiro, o Mutirão e a Autogestão” está dividida em dois pontos. No primeiro ponto descrevo sumariamente o surgimento de assessorias técnicas de apoio aos mutirões autogeridos, particularizando o caso de estudo da Usina. Refiro o posicionamento de Sérgio Ferro e suas afinidades com o seu modo de trabalho. No segundo ponto apresento observações feitas durante a residência de investigação na Usina, procurando relações entre a sua prática e os conceitos propostos por Sérgio Ferro, nomeadamente no que concerne às relações de produção e tecnologias de construção.

II. O desenho e o canteiro

1. Poética da economia

Sérgio Ferro forma-se na Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo (FAAUSP) em 1962, num período marcado pela afirmação da arquitetura brasileira através de nomes como Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, no Rio de Janeiro, e de João Vilanova Artigas em São Paulo. Niemeyer, Artigas e outros arquitetos dessa geração são politicamente ativos através sua militância no Partido Comunista Brasileiro (PCB). É uma época marcada também pela construção da futura capital, Brasília, utopia modernista gizada por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer - símbolo de uma sociedade progressista em devir, cujas aspirações são goradas pela instauração da ditadura militar em 1964.

Ainda enquanto estudante, Sérgio Ferro junta-se aos colegas Rodrigo Lefèvre e Flávio Império e juntos formam o coletivo Arquitetura Nova. Entre 1961 e 1968, Arquitetura Nova realiza uma série de obras experimentais, focadas na racionalização construtiva e espacial. Através da sua prática, o coletivo procura inovar nos meios de produção no estaleiro de obra, ambicionando formas de construir mais eficientes, económicas e que pudessem ser executadas por construtores pouco qualificados - uma abordagem que concetualizaram como poética da economia:

“Assim é que o mínimo útil, do mínimo construtivo e do mínimo didático necessários, tomamos (…) as bases de uma nova estética, que poderíamos chamar a poética da economia, do absolutamente indispensável, da eliminação de todo o supérfluo, da economia de meios para a formulação da nova linguagem, para nós, inteiramente estabelecida nas bases da realidade histórica.” (Ferro & Lefèvre, 1963/2006, p. 36).

Ficaram conhecidas as suas experiências com arcos em catenária, que exploram nas casas-abóbada, como a Casa Issler de 1961, e ainda nas casas Pery Campos, Zamataro e Ziegelmeyer, realizadas por Rodrigo Lefèvre (com outros arquitetos) nos anos 70. Estas obras são exemplo de uma arquitetura projetada para ser executada segundo uma manufatura serial, ou seja, baseada no trabalho manual em estaleiro, o tipo de construção mais corrente na época, no Brasil. O recurso à abóbada permitia a construção de uma cobertura em tijolo ou bloco, que devido à compressão requeria o mínimo de armadura de ferro: uma tecnologia para ser facilmente executada através do trabalho manual, minimizando o uso de maquinarias, pré-fabricação e materiais dispendiosos. Na Casa Boris Fausto de 1962, Arquitetura Nova experimenta com a manufatura heterogénea, ou seja, recorrendo a elementos construtivos industriais e pré-fabricados montados em obra, um tipo de estaleiro comum em países industrialmente mais desenvolvidos e defendida por arquitetos como Artigas e Mendes da Rocha. Destas duas experiências, Sérgio Ferro conclui que a Casa Boris Fausto apresentou maiores problemas de construção, pois os elementos construtivos industriais tinham defeitos de fabrico, por vezes, falta de esquadria ou dimensões não padronizadas, dificultando o trabalho de montagem e gerando algumas patologias futuras. Por outro lado, na Casa Issler, ao racionalizar técnicas construtivas populares, atingiram uma maior eficiência construtiva e económica, com um preço de construção a metade do valor corrente em São Paulo (Ferro, 1969/2005).

Mais que alunos, Ferro, Lefèvre e Império eram tidos como discípulos de Vilanova Artigas (Koury, 2003), influenciados pela sua militância política e linguagem austera e brutalista que caracterizava as suas casas paulistanas. No entanto, os discípulos vão confrontar o mestre, questionando a sobrevalorização do desenho face às condições do estaleiro de obra - um debate disciplinar entre Ferro e Artigas que conduzirá ao rompimento da sua relação em 1968 (Arantes, 2002, p. 42-46; p. 49-50), segundo afirma Sérgio Ferro (1986/2006) numa entrevista:

“A nossa divergência com Artigas é que ele nunca queria cair num miserabilismo. A nossa tendência era mais radical e orientada para a casa popular (…). Estávamos pensando num outro cliente, aquele que não existia - o povão. (p. 256)” e “Uma corrente seguiu o Artigas no lado formal, na organização de plantas, no espaço, no uso do concreto, e foi refinando. (…) E o nosso grupo seguiu o Artigas na crítica política e ética que ele fazia da arquitetura anterior. Deste modo, empregamos os mesmos elementos formais, mas os desenvolvemos em outra direção.” (p. 261).

Enquanto Artigas usava a linguagem brutalista como provocação estética ao gosto burguês, isto é, como forma de “re-educação” da classe dominante, Arquitetura Nova ambicionava desenvolver um sistema construtivo económico, eficiente e facilmente executável para ser reproduzido por toda a população brasileira. É nesse sentido que deve ser entendida a poética da economia - a recusa do revestimento, a racionalização do trabalho manual no estaleiro, a subalternização do desenho à lógica construtiva - não como uma estética, mas como uma proposta ética e política de mediação entre o projeto e a obra, visando a reformulação das relações de produção entre todos os atores envolvidos. É através da prática da obra, que o trabalho de Arquitetura Nova ganha dimensão ideológica, centrado no trabalhador e nos meios de produção, um posicionamento que será posteriormente desenvolvido teoricamente por Sérgio Ferro através do conceito de crítica do canteiro.

O ativismo político de Ferro, Lefèvre e Império manifesta-se na sua atividade enquanto arquitetos, encenadores, pintores, mas também, como educadores e pedagogos, ideologicamente comprometidos contra a ditadura militar e contra a ortodoxia marxista do Partido Comunista Brasileiro - o “Partidão”. Sérgio Ferro refere a importância da sua participação num grupo de leitura de O Capital de Karl Marx, organizado por professores e investigadores da Faculdade de Letras da Universidade de São Paulo (como Roberto Schwarz), no qual a obra é debatida sob uma perspetiva científica e académica.

Esta leitura de O Capital marca definitivamente a visão de Ferro relativamente aos meios e modos de produção da arquitetura, expressa no texto A Produção de Casa no Brasil, redigido em 1969 a partir de anotações de aulas na Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo (FAUUSP) e publicado em 1972 pelo Grémio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo - GFAU (Arantes, 2002, p. 110-113). Considerado pelo autor como um esboço de O Canteiro e o Desenho, neste texto o autor visa a produção de habitação no Brasil à luz da economia política. Ferro analisa os meios de produção da construção da casa popular, auto-construída, precária, mas com um grande valor de uso social e compara com a produção da casa da alta burguesia, a mansão, projetada por arquiteto, com materiais e mão-de-obra especializada, com um valor de troca superior ao seu valor de uso, ou seja, uma mercadoria inserida na lógica de produção capitalista. Por fim, analisa ainda a produção de habitação para a classe média, enquanto “forma-mercadoria”, num capítulo denominado de estreito mercado de massas. Ferro caracteriza os meios de produção no estaleiro, refletindo criticamente sobre o papel simbólico do revestimento; sobre os conceitos de mercadoria e de fetiche aplicados à arquitetura; sobre a manufatura, a divisão e a força de trabalho; e sobre o conceito de mais-valia no contexto brasileiro da produção de habitação.

A partir de 1968, a ditadura militar intensifica o processo de perseguição política a artistas, intelectuais e académicos que manifestavam a sua oposição ao regime. Depois do afastamento forçado de Artigas e Mendes da Rocha da FAUUSP, Ferro e Lefèvre são presos em 1970 por resistência armada à ditadura militar. Após um ano de tortura e clausura, são libertados, sem que Ferro tenha perspetiva de reintegração na Faculdade como docente. Ferro exila-se em França em 1972, como professor catedrático na Faculdade de Arquitetura de Grenoble, onde continuará a sua investigação sobre as relações de produção entre o desenho e o estaleiro e onde fixa sua residência até aos dias de hoje.

2. Crítica do canteiro

É em França que Sérgio Ferro redige as suas principais obras, como Reflexões para uma Política na Arquitetura (1972/2006), O Canteiro e o Desenho (1979/2006) ou Desenho e Canteiro na concepção do Convento de La Tourette (1998/2006), nos quais aprofunda uma visão crítica da arquitetura a partir de uma análise marxista dos seus meios de produção, ou seja a crítica do canteiro.

Em O Desenho e o Canteiro, Ferro (1979/2006) elabora uma crítica mordaz ao papel profissional do arquiteto: por um lado, enquanto participante num sistema de exploração de mão-de-obra precária, que caracteriza a indústria da construção e o mercado de promoção imobiliária; por outro lado, pela via disciplinar, enquanto agente de repressão de um saber empírico do construtor através da sobre-determinação do desenho e da divisão do trabalho no estaleiro. Sérgio Ferro recorre à chave de leitura iniciada em A Produção de Casa no Brasil (1969), desenvolvendo o postulado da produção de arquitetura enquanto forma-mercadoria e aprofundando o estudo sobre a organização de trabalho no estaleiro de obras. Ferro critica a exploração da mão-de-obra e a divisão do trabalho em equipas que não comunicam entre si e se limitam a executar tarefas, de acordo com a divisão de trabalho capitalista. Este tipo de divisão laboral contribui, na opinião do autor, para a alienação do construtor relativamente à obra que está a construir, limitando a aplicação do seu saber construtivo e servindo sobretudo enquanto mecanismo para a dominação de classe:

“Assim se volume e revestimento (e mais) figuram o inverso da prática cotidiana dos canteiros, se a série de categorias totalizantes esconde a separação que engendra, tais oposições se apoiam num terceiro termo que, na sua forma mais geral, é a luta cotidiana de classes no canteiro. Se luta é oposição imediata ela mantém, enquanto dura, o que opõe: o trabalho separado de um lado; de outro, o poder separador, inicialmente uno, o capital.” (Ferro, 1979, p. 134).

No seguimento da análise crítica ao estaleiro enquanto local da luta de classes, Ferro irá analisar o papel do desenho como instrumento de dominação e de repressão do saber-fazer dos construtores, segundo Ferro, um desenho separado, um desenho que separa a conceção da construção. Para enquadrar historicamente esta teoria, o autor recua à transição da Idade Média para o Renascimento, período em que se consolida o papel do arquiteto através do domínio exclusivo da geometria e da perspetiva, elementos que irão dominar a composição arquitetónica e o planeamento construtivo. O mestre-de-obras e o seu saber técnico e artístico, até então organizado em corporações de mesteres, perde o poder para esta profissão emergente de homens letrados, para os quais a arquitetura é um exercício de composição - cosa mentale - ao qual a construção passará a estar subjugada. Dá como exemplo a construção da cúpula de Santa Maria del Fiore, em Florença, cuja obra foi projetada e coordenada por Filippo Brunelleschi em 1434, considerado por vários historiadores como o primeiro arquiteto da Idade Moderna. O arquiteto-escultor assume aqui um papel soberano, gerindo várias equipes de construtores em estaleiro, separando-as, com o intuito de lhes retirar poder e autonomia. Não será um acaso, que o surgimento da figura profissional do arquiteto na península itálica coincida com o advento do capitalismo e a ascensão da burguesia.

Ao denunciar o flagrante alheamento dos arquitetos às condições de trabalho no estaleiro, quer no plano social, político, mas também técnico e artístico, Sérgio Ferro põe um dedo na ferida de toda uma geração. No entanto, apresenta propostas para a superação da contradição entre desenho e estaleiro, no contexto de uma crítica ideológica ao regime capitalista. Segundo o autor, o estaleiro deverá estar organizado em equipes separadas por funções, garantindo a sua autonomia técnica e funcional, coordenadas entre si “como uma banda de jazz”, parafraseando uma metáfora usada (Ferro, 2006, p. 406). A esta proposta de organização laboral chamará de estética da separação, acrescentando que numa fase seguinte: “haveria tendência para o desenvolvimento do diálogo, para a troca horizontal, para a superação da separação e das relações de produção que a sustentam. (…) A estética da separação prepararia o terreno para uma espécie de autogestão.” (Ferro, 1979, p. 133). Por outro lado, Ferro não retira o arquiteto do processo, propondo que este se aproxime do estaleiro, que conheça a sua realidade e que execute um desenho da - e não para a - produção, um desenho “que se limitasse à técnica de produção e desse liberdade aos produtores para realizar alterações e elaborações, de certa forma extinguindo o arquiteto tal como o conhecemos e o desenho como técnica de dominação.” (Arantes, 2002, p. 119).

3. História de Arquitetura vista de baixo

Em 1982, Sérgio Ferro, é nomeado Diretor Científico do Laboratório Dessin/Chantier na Escola de Arquitectura de Grenoble, procurando transpor a crítica do canteiro para a investigação em História de Arquitetura, ou seja uma análise histórica centrada no estaleiro de obra e nas relações de produção. Le Corbusier: Le couvent de La Tourette (Ferro, Kebbal, Potié, & Simonnet, 1987/2006), documenta o primeiro trabalho de investigação do laboratório. O Convento de La Tourette é uma obra do arquitecto suíço Le Corbusier finalizada 1960 - um edifício considerado por historiadores como Reyner Banham como precursor da arquitetura brutalista. Os investigadores do Dessin/Chantier irão analisar no local os vestígios do trabalho manual, da manufatura, identificando situações em que o arquiteto recorre a artifícios para mascarar certos erros de projeto e manter a imagem pretendida. Os investigadores irão identificar também situações em que não há nenhuma regularidade estrutural, nem racionalização construtiva, contrariando o discurso do arquiteto, que advoga a "verdade" dos materiais e da estrutura, assim como o racionalismo projetual. Como metodologia de trabalho, são analisados os desenhos de execução da arquitetura e das engenharias, comparando com o que foi construído. Procuram também outros testemunhos do estaleiro através de diários de obra, desenhos, fotografias e realizando entrevistas, quando possível, aos construtores, engenheiros ou dono de obra (Contier, 2010). Analisando o arquivo da Fundação Le Corbusier, os investigadores encontraram a correspondência postal entre Le Corbusier e os seus colaboradores no atelier de Paris-Xenakis e Wolgensky. Le Corbusier encontrava-se na altura na Índia e seguia a obra de La Tourette à distância. Da análise dessa correspondência, verifica-se, que Wolgensky e Xenakis reclamam a autoria de quase todo o projeto, com exceção do esquema geral desenhado por Le Corbusier. Através do estudo de cartas entre projetistas e clientes e relatórios de obra, descobrem que esta foi muito atribulada, com grandes tensões entre os arquitetos, os construtores e o dono de obra. Descobrem, por exemplo, um derrape orçamental na ordem dos 40%, que, na interpretação de Ferro, é gerado pela tensão entre desenho e estaleiro, em particular devido à imposição de soluções que valorizam o desenho sobre a lógica construtiva. Através da crítica do canteiro de obras aplicada à história de arquitetura, obras como La Tourette são desconstruídas a partir das condições efetivas de produção, desmascarando a retórica difundida pelo seu autor. Desta investigação resulta também a comprovação da tensão efetiva entre desenho e estaleiro, inclusive com um arquitecto tão reconhecido como Le Corbusier e que se se afirma como “o construtor”. Segundo Ferro, a arquitetura que critica, vive mais da retórica do que da obra construída, afirma-se pelo desenho e pela palavra, permanecendo alheada da obra e dos construtores:

“Por isso o discurso dos arquitetos é fundador e os de L.C. (Le Corbusier) exemplares. Não por sua suposta verdade ou pertinência. Em geral incoerentes, incompletos e pobremente utópicos - mas têm papel enorme na formação da leitura de interpretantes prioritários. (…) O que conta é que determinam o que devemos pensar da obra, ou melhor, da casca da obra. Eles nos conduzem a nos focalizarmos nela e fornecem os atributos que devemos aceitar. Trata-se da formação de crenças por via autoritária.” (Ferro, 1988/2006, p. 221).

4. Canteiro Livre

“Cada canteiro livre é uma universidade.”

(Ferro, 2002, p. 149)

Ainda enquanto estudante, Sérgio Ferro realiza com Rodrigo Lefèvre uma série de obras em Brasília para o seu pai, promotor imobiliário. O confronto local com as condições de exploração e precariedade a que eram submetidos os construtores, milhares de migrantes rurais sem qualificação, chamados de “candangos”, marcou para sempre o jovem arquiteto. Um estaleiro num país supostamente progressista, contudo explorador e violento, onde muitos sacrificaram a vida. A indiferença de Lúcio Costa e de Oscar Niemeyer, autores dos projetos, às condições de trabalho nos estaleiros de Brasília foi motivo de indignação para Ferro, originando posteriormente o corpo de pensamento crítico denominado de crítica do canteiro. Para Ferro, a prática de arquitetura é politicamente interventiva enquanto prática laboral. As propostas de Ferro para superar as contradições entre desenho e canteiro, implicam a transformação das relações de produção, perspetivando uma distribuição equilibrada de poder e de saber entre projetistas e construtores. Como parte da sua crítica anti-capitalista, Sérgio Ferro defende a ideia do trabalho livre, dando como referência as corporações de construtores no período Gótico. Numa entrevista, indagado sobre o conceito de canteiro livre, Ferro (2002, p. 150) afirma “que em condições de liberdade e de respeito por todos, usando somente a força da racionalidade construtiva, afastando toda a sombra de autoridade e de argumentação “estética” (último reduto da autoridade), outras relações de produção nascem: isto é possível nos “bolsões” que me referi acima.” Os “bolsões” que refere, são mais concretamente, os estaleiros de obra promovidos por movimentos sociais como o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MTST) e Movimento sem Teto (MST), os “mutirões autogeridos”, que segundo Ferro correspondem na prática à sua ideia de “canteiro livre”. Os conceitos políticos de autogestão e de ajuda mútua estão na base da organização interna destes movimentos e servirão igualmente de base ideológica para uma revisão das relações de produção entre arquitetos e construtores.

III. O canteiro, o mutirão e a autogestão

1. A autodeterminação do trabalhador coletivo

Desde o início dos anos 90, movimentos sociais de direito à terra e à habitação conquistam progressivamente maior expressão política através de programas de financiamento à habitação como o Fundo de Atendimento à População Moradora em Habitação Subnormal (FUNAPS Comunitário), lançado entre 1989-1992 na região de São Paulo (Vilaça, 2016) e o Minha Casa Minha Vida Entidades, lançado pelo governo PT (Partidos dos Trabalhadores) em 2009. São programas de financiamento para construção de habitação coletiva de raiz, em que todo o orçamento e processo de conceção e construção é gerido pelas associações com a assessoria técnica de arquitetos, engenheiros e educadores populares. Algumas das assessorias técnicas formadas nos anos 90 por arquitetos-militantes vão reclamar também a autogestão como forma de organização laboral interna e na mediação entre projeto e obra. É o caso da Peabiru e da Usina CTAH, as duas ainda hoje no ativo, que articulam prática de projeto com investigação. Para a Usina e outras assessorias da região de São Paulo, o grande modelo de referência desde os anos 90 é o da Federação Uruguaia das Cooperativas de Ajuda Mútua (FUCVAM), pondo em prática a ajuda mútua, a autogestão e a propriedade coletiva (Baravelli, 2006). Em 2002 é publicada a tese do arquiteto, investigador e membro da Usina, Pedro Arantes (2002), em que são analisadas as bases teóricas do discurso de Ferro, relacionando-o com o trabalho dos mutirões autogeridos, enquanto canteiros autónomos e livres de dominação.

É por essa altura, 30 anos depois da sua partida para o exílio, que Ferro regressa à FAUUSP para dar uma palestra, retomando as ligações com a academia e a arquitetura brasileira, particularmente com os projetos de mutirões autogeridos. A obra de Sérgio Ferro ganha, desde então, um novo alento na comunidade académica, sendo convidado para entrevistas e apresentações nos anos subsequentes, suscitando o interesse de arquitetos e investigadores, para além do já citado Pedro Arantes e José Eduardo Baravelli, também Silke Kapp, João Marcos Lopes, Reginaldo Ronconi, Felipe Contier, entre outros.

Para a monografia da Usina, publicada em 2015, Ferro redige o texto O “Trabalhador Coletivo” e Autonomia, uma reflexão em torno do conceito marxista de “trabalhador colectivo”, que neste caso é o sujeito coletivo autodeterminado, formado pela equipe da assessoria técnica com os mutirantes. Para Ferro, o trabalho da Usina com os mutirões autogeridos é um exemplo prático da transformação das relações de produção no contexto da prática arquitetónica e no sentido da realização do canteiro livre.

2. O trabalhador coletivo em ação - Notas de campo

Em Abril de 2018, tive a oportunidade de passar quatro semanas em São Paulo a acompanhar o quotidiano de trabalho da Usina CTAH. A Usina é hoje uma das três assessorias técnicas em São Paulo (a par da Peabiru e Ambiente), que dão apoio a projetos de mutirões autogeridos promovidos por movimentos de direito à habitação. Fundada em 1990 como associação sem fins lucrativos, enquanto ONG, tem trabalhado exclusivamente como assessoria técnica, contando hoje com uma larga produção tanto prática como teórica.

O objetivo da residência de investigação foi recolher dados para analisar a metodologia de projeto utilizada, nomeadamente na organização do projeto e a sua relação com todos os atores, como engenheiros, construtores, mutirantes, líderes de movimentos e instituições de financiamento, ou seja, uma crítica do canteiro à obra que a Usina tinha então em curso. A equipe que se encontrava na altura a trabalhar era formada por dois arquitetos mais velhos, membros fundadores da Usina, dois arquitetos jovens, já com cerca de 10 anos experiência de trabalho na Usina e três arquitetos estagiários. Para além da equipa de arquitetos, estavam também presentes no escritório dois educadores sociais, que são parte integrante da equipa. Todas as semanas havia um longo dia de reuniões com João Marcos Lopes, um dos arquitetos fundadores, que coordenava os projetos em curso com arquitetos e construtores, debatendo soluções construtivas e também a organização do estaleiro de uma obra que ia começar em breve. Wagner Germano, outro dos membros-fundadores estava no escritório todos os dias, coordenando os projetos. Tive oportunidade de visitar o bairro COPROMO - Cooperativa Pró Moradia de Osasco, na sua companhia e de Stavros Stavrides, um professor grego da Faculdade de Arquitetura da Universidade Técnica de Atenas, que estava de visita. Flávio Higuchi e Kaya Lazarini, mais novos, coordenavam os dois projetos de grande dimensão então em curso. Outros projetos tinham sido interrompidos por falta de financiamento, devido à mudança de conjuntura política. Apesar das diferenças de funções que cada um assume por projeto, há uma rotatividade das tarefas administrativas entre todos os membros, como contabilidade, comunicação, secretariado, limpeza, logística e manutenção. Em termos de remuneração, o valor/hora é igual para todos, independentemente da sua experiência como arquitetos. Outra característica é a realização de uma reunião semanal entre todos os membros do coletivo, onde são tomadas decisões de organização interna, como foi o caso da minha presença como observador participante. Estes aspetos refletem uma organização interna autogestionária, com o objetivo de implementar uma distribuição de poder horizontal na gestão coletiva do escritório.

Durante o período da visita de estudo, tive oportunidade de acompanhar um dos educadores sociais da Usina, Sandro Oliveira, numa reunião de preparação de obra na periferia de São Paulo, promovida pela União de Movimentos Moradias (UMM). Esta reunião de coordenação, contava com representantes de comissões de trabalho, também futuros moradores, para um projecto de habitação com 700 fogos. O Sandro e as educadoras do movimento participaram e mediaram a reunião, que tinha cerca de 20 pessoas. Fui também a uma obra de outro mutirão da UMM, na cidade de Tiradentes, assessorado pela assessoria técnica Ambiente, onde pude assistir a uma reunião de formação sobre saúde e segurança no trabalho e de almoxarifado, ou seja a gestão do armazém de ferramentas. Esta reunião decorreu no estaleiro de obra em curso, uma obra de habitação coletiva com 1000 fogos, na qual os actuais mutirantes partilhavam as suas experiências com os mutirantes de uma obra da Usina, então em preparação. Surpreendeu-me, em ambos os casos, a capacidade de organização, o respeito pela intervenção de cada um e a objetividade do discurso de cada interveniente. Uma das características da autogestão é a implementação de um sistema de democracia direta através de assembleias, posto em prática por estes movimentos sociais desde o início do processo. Nestes casos, há sempre um arquiteto e/ou um educador social da assessoria para fazer a articulação com os futuros moradores organizados, os mutirantes. Os educadores populares da Usina intervêm no campo social, dinamizando os grupos de moradores e gerindo potenciais conflitos. Das entrevistas realizadas aos educadores das assessorias técnicas e dos movimentos sociais, a principal referência nestes processos de negociação e de decisão coletiva, é o pedagogo brasileiro Paulo Freire (1968/2018), que defendia uma educação popular para a autodeterminação e emancipação das populações mais pobres e oprimidas. As particularidades da pedagogia de Freire, dos princípios da autogestão e do modelo assembliário são determinantes na prática dos mutirões autogeridos e serão aprofundados numa próxima visita de campo.

Através de entrevistas a mutirantes, lideranças de movimentos, assessores técnicos, e da consulta de registos fotográficos do Arquivo da Usina CTAH, constatei que há um longo processo participativo entre arquitectos e mutirantes durante o projeto - um processo que dura vários meses, e em que os arquitetos sugerem soluções espaciais em maquetas com móveis, para que a perceção de espaço seja menos abstrata e mais interativa. As decisões finais são sempre tomadas em assembleias. O sistema construtivo é depois estudado em função do tipo de estaleiro, que é parcialmente em auto-construção, por ajuda mútua. A Usina desenvolveu várias soluções construtivas e materiais no sentido da racionalização construtiva e económica, considerando igualmente a facilidade de execução pelos mutirantes. É o caso do bloco de cimento estrutural ou as escadas metálicas pré-fabricadas que funcionam como andaime, realizadas pela primeira vez no bairro COPROMO. Neste sentido está patente no processo de trabalho da Usina, a ideia de Sérgio Ferro (1979), que os arquitetos devem fazer o desenho da produção e usar a tecnologia ao serviço das condições materiais reais.

Um aspecto a salientar é o facto de que a grande maioria dos mutirantes são mulheres, as futuras moradoras, muitas delas mães solteiras ou separadas. Sem experiência prévia de construção, trabalham normalmente aos fins de semana e feriados, executando trabalhos complementares aos que são realizados pela construtora contratada. Algumas destas mutirantes, depois de conquistada a sua casa, militam nos movimentos de direito à habitação, ajudando a organizar novos grupos de origem. As lideranças que encontrei nos movimentos e que tive oportunidade de entrevistar foram unicamente mulheres, testemunhando sentir na pele o direito à habitação como um veículo de autodeterminação e autonomia socioeconómica

Após visitar algumas obras da Usina realizadas há alguns anos, em particular a COPROMO, pude comprovar a qualidade destes conjuntos habitacionais, quando comparados com a habitação social promovida pelo Estado, como por exemplo, as casas do programa Minha Casa Minha Vida ou os bairros da Companhia Metropolitana de Habitação (COHAB). Para além do cuidado na escolha de materiais de fácil manutenção, como o tijolo estrutural aparente, as áreas de cada apartamento são consideravelmente superiores. Isto é apenas possível devido ao livre arbítrio dos moradores na gestão do orçamento que dispunham e na participação de um trabalhador coletivo desde o início da luta pelo terreno e que acompanha o projeto até à conclusão da obra.

Embora haja vozes críticas à auto-construção, como é o caso do sociólogo Francisco Oliveira (2006) que acusa o mutirão de contribuir para a redução salarial da mão de obra profissionalizada, a auto-construção (total ou parcial) é defendida por João Marcos Lopes (2006) e Sérgio Ferro (2006), sobretudo como forma de apropriação coletiva dos meios de produção e de autodeterminação dos mutirantes. Hoje em dia, perante obras de grande escala, uma grande parte das tarefas do mutirão é a execução de trabalhos de menor exigência física, ou seja, a autoconstrução é parcial. O mutirão, formado por mulheres e, na sua maioria, com empregos a tempo inteiro, concentra-se na direcção e fiscalização da obra, optando por recorrer a uma construtora profissional com disponibilidade para trabalhar toda a semana. Este fator não retira autonomia e poder de decisão aos mutirantes, cujos meios de produção se mantêm sob sua gestão, e os mutirões de fim-de-semana são mantidos como meio de redução de custos e como forma de manter activo o trabalhador coletivo. A questão levantada por Francisco de Oliveira (2006) é pertinente, mas deverá ser enquadrada à luz da economia solidária ou do terceiro setor - um argumento que pretendo aprofundar num artigo futuro.

IV. Notas finais

Com este artigo procurei dar a conhecer a obra do arquiteto e crítico brasileiro Sérgio Ferro. Por ser relativamente desconhecido da comunidade académica portuguesa, optei por fazer uma recensão dos principais conceitos que definem o seu pensamento. Procurei também analisar a relevância da sua crítica do canteiro na prática disciplinar, observando como as assessorias técnicas e os mutirões autogeridos aplicam algumas das suas propostas, neste caso, através de uma observação participante nos escritórios da Usina CTAH. De facto, há muitos aspetos da obra da Usina, que a destacam de uma prática corrente, nomeadamente o facto de não ter fins lucrativos, as relações de produção em autogestão e o desenho que serve a produção. São arquiteturas vistas a partir do estaleiro e de quem constrói - uma mudança de perspetiva com influências determinantes desde o processo de conceção, no processo de construção em mutirão, até à sua apropriação enquanto habitação. São mudanças disciplinares e ideológicas, contra-hegemónicas, mas com resultados bem-sucedidos no campo da autodeterminação popular na luta pelo direito à habitação. No que toca à obra de Ferro, também ela contra-hegemónica, é uma obra que abre novos caminhos de reflexão crítica sobre a produção de arquitetura, menos centrada no desenho ou no objeto arquitectónico, propondo analisar a arquitetura a partir do estaleiro de obra, tentando resgatar assim a relação perdida entre desenho e obra, denunciada pelo autor. Uma reflexão ideológica, mas necessária, sobre a possibilidade da arquitetura enquanto parte de um todo maior: de um trabalhador coletivo, idealmente livre e autónomo.

 

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Recebido: março 2020. Aceite: julho 2020.

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