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Finisterra - Revista Portuguesa de Geografia

versão impressa ISSN 0430-5027

Finisterra  no.114 Lisboa ago. 2020

https://doi.org/10.18055/Finis20254 

NOTAS

Rede H: Rede nacional de estudos sobre habitação

Rede Nacional de Estudos sobre Habitação1

1Membros individuais ou coletivos interessados no tema da habitação provenientes da academia, sociedade civil, entidades do terceiro setor e de instituições públicas e privadas (http://www.redehabitacao.pt). E-mail: geral@redehabitacao.pt


 

A Rede H - Rede Nacional de Estudos sobre Habitação nasceu no início de 2020, antes do atual contexto pandémico da Covid-19 eclodir em Portugal, por iniciativa conjunta das equipas de seis projetos de investigação, em curso ou concluídos, financiados pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) e centrados na habitação: 1) o exPERts - Organizando o conhecimento do planeamento: Política de habitação e o papel dos peritos no Programa Especial de Realojamento (2016-2019); 2) o FINHABIT - Viver em Tempos Financeiros: Habitação e produção de espaço no Portugal democrático (2016-2019); 3) o HOPES - Perspetivas e lutas em torno da habitação. Movimentos, políticas e dinâmicas residenciais em e para além de Lisboa (2018-2021); 4) o Smartour - Turismo, alojamento local e reabilitação: Políticas urbanas inteligentes para um futuro sustentável (2018-2021); (5) o SustainLis - Requalificação urbana sustentável e populações vulneráveis no centro histórico de Lisboa (2018-2021); e (6) o REHURB - Realojamento e Regeneração Urbana (2010-2014). Reflexo da entrada em força do tema da habitação no debate social, político, académico e mediático português nos últimos anos, este leque alargado de projetos lançou o mote para a criação da Rede H, formalizada na primeira Assembleia Geral, realizada a 13 de fevereiro de 2020.

Atualmente, a Rede H reúne aproximadamente 60 membros, individuais e coletivos, provenientes da academia, da sociedade civil, de entidades do terceiro setor e de instituições públicas e privadas, procurando abranger diversas regiões e realidades sociais e habitacionais do país. Tem como propósito afirmar-se como uma rede aberta e colaborativa de referência em estudos de habitação ao nível nacional, articulada com outras no plano europeu, assumindo dois objetivos principais: um ligado à investigação realizada no campo dos estudos de habitação, outro associado à aproximação destes estudos ao contexto não-académico. Neste sentido, a Rede H visa desenvolver e promover colaborações no campo dos estudos de habitação, com a finalidade de facilitar a criação de projetos e/ou grupos de trabalho, articular estudos em contextos territoriais diferentes, aproximar grupos e indivíduos com interesses de investigação similares, e partilhar dados e resultados alcançados nas diferentes esferas de investigação e/ou atuação, dando-lhes uma visibilidade conjunta. Simultaneamente, pretende potenciar a visibilidade dos estudos de habitação fora do contexto académico, estabelecendo pontes com outros intervenientes e interessados no tema (decisores políticos, ativistas, setor imobiliário, etc.). Contribui ainda para a deliberação pública através da participação ativa no debate sobre o direito à habitação e à cidade, facilitando o acesso de políticos, técnicos, jornalistas e demais interessados a estudos e resultados de investigação sobre habitação, através de um repositório aberto organizado por temas-chave, bem como estimular o debate público sobre habitação de forma a ampliar o conhecimento neste campo.

Poucos dias após a formalização da Rede H, foram confirmados os dois primeiros casos de infeção por Covid-19 em Portugal, um dos países europeus com maiores dificuldades de acesso a uma habitação condigna e, neste sentido, particularmente vulnerável à pandemia e seus efeitos (Farha, 2017). Em resposta ao então declarado estado de emergência, a Rede H redigiu uma Carta Aberta endereçada ao Governo, à Assembleia da República e às demais entidades públicas, publicada no Jornal Público a 23 de março de 2020[i], exigindo a aprovação de medidas extraordinárias consideradas necessárias à garantia da segurança e da saúde das pessoas em situação de sem-abrigo ou de precariedade habitacional. Era evidente que, em situações de confinamento em casa, as condições habitacionais tornar-se-iam ainda mais importantes para o bem-estar dos cidadãos e o controlo da pandemia, porque delas depende a qualidade de vida dos indivíduos e suas famílias. Este cenário é particularmente óbvio para quem se encontra em situação de sem-abrigo ou vive em alojamentos sobrelotados, precários e/ou subequipados (sem água, casa de banho interna e/ou luz), enfrentando dificuldades acrescidas e não podendo proteger-se do vírus. Ao mesmo tempo, com o abrandar da economia e as suas consequências ao nível da redução de rendimentos e da perda de empregos, mais famílias não conseguirão pagar as suas rendas ou prestações bancárias com a habitação e/ou com outros serviços fundamentais, como água, eletricidade e gás. O acesso à internet e, por conseguinte, à informação, telescola e teletrabalho também ficará fortemente condicionado.

No momento da redação da Carta Aberta, as diversas medidas aprovadas pela Assembleia da República[ii] - como a suspensão dos despejos, dos efeitos das denúncias de contratos de arrendamento e da execução de hipotecas - e por algumas câmaras municipais - como a suspensão das desocupações do parque habitacional municipal - configuraram respostas positivas, todavia insuficientes em face das necessidades do momento. Perspetivando-se o incumprimento da recentemente aprovada Lei de Bases da Habitação (Lei n.º 83/2019, de 3 de setembro) e do Plano Nacional de Contingência da Covid-19, bem como das várias circulares informativas provenientes da Direção-Geral da Saúde e do Ministério da Saúde, a Rede H solicitou, nessa Carta Aberta, a adoção imediata de um conjunto de medidas do foro habitacional, que voltamos aqui a enunciar:

1. Mobilizar os espaços disponíveis (indústria hoteleira, alojamento local, habitações que possam ser temporariamente cedidas) para suprir o cumprimento de autoisolamento e de quarentena com vista a evitar riscos para a saúde individual e familiar. Esta utilização imediata, se necessário através de requisição como previsto na declaração de estado de emergência, deveria beneficiar primariamente pessoas em situação de sem-abrigo, famílias a viver em condições de precariedade extrema, vítimas de violência doméstica ou de género, bem como famílias em situação de sobrelotação, trabalhadores rurais em situação de habitação precária e, se necessário, profissionais de saúde;

2. Prorrogar automaticamente os contratos de arrendamento (habitacionais ou não) durante o período de emergência nacional, acrescido de período adequado para procura de nova habitação permanente e condigna findo este período;

3. Prevenir o aumento dos encargos com a habitação, através da redução ou suspensão dos pagamentos das rendas e das prestações relativas a crédito das famílias que sofram diminuição dos rendimentos;

4. Proteger os pequenos proprietários cujas rendas constituem parte substancial da sua subsistência, com medidas de alívio fiscal e de apoio financeiro;

5. Garantir medidas de proteção face ao risco de contágio de Covid-19 aos trabalhadores da construção civil e prestadores de serviços domésticos e domiciliários;

6. Garantir recursos e apoio para evitar os problemas de saúde mental decorrentes do isolamento, dando especial atenção aos grupos vulneráveis, como os portadores de deficiência, idosos e crianças;

7. Reforçar os instrumentos de proteção a situações de violência doméstica e de género;

8. Garantir a criação de instrumentos de proteção pessoal, informações e acesso a testes à Covid-19 a todo o pessoal empregado ou voluntário no trabalho com sem-abrigo;

9. Assegurar o fornecimento de equipamento informático e acesso à internet às famílias que não podem aceder a serviços como a aquisição de bens essenciais online, ensino à distância e outras informações;

10. Garantir a permanência em Portugal, num quadro residencial digno e que assegure o acesso a todas as medidas aplicáveis aqui mencionadas, aos imigrantes, aos refugiados e aos estrangeiros que aguardam decisão sobre requerimento de asilo e autorização de residência (ou não a possuem), na medida em que as suas condições de vida podem agravar-se substancialmente e as possibilidades de retorno se encontram seriamente condicionadas ou são mesmo inexistentes.

O momento de emergência exigia, e continua a exigir, medidas urgentes e extraordinárias, capazes de contrariar o cenário gerado pelos sistemas residenciais e pelo mercado imobiliário pré-Covid-19, caracterizado por disfuncionalidades significativas, injustiças no acesso a uma habitação condigna e inúmeros fogos e edifícios devolutos, degradados ou abandonados, em claro incumprimento da função social da habitação agora formalmente enquadrada no artigo 4.º da Lei de Bases da Habitação[iii]. A defesa do direito à habitação torna-se assim ainda mais relevante, em face de todas as contradições e efeitos nefastos da mercadorização e financeirização do setor imobiliário. Efetivamente, não se consegue garantir o direito à saúde sem proteger o direito de todos à habitação. Neste momento tão difícil que ainda atravessamos, os subscritores desta Carta Aberta pediram ao Governo, à Assembleia da República, aos municípios e a todos os atores da sociedade civil para reconhecer e advogar a função social da habitação e, consequentemente, a proteção das pessoas e famílias.

Posteriormente, alguns membros da Rede H avançaram com a recolha e análise comparada das medidas adotadas no âmbito da pandemia em seis países europeus - Portugal, Espanha, Itália, Alemanha, Irlanda e Reino Unido (Inglaterra e País de Gales) -, utilizando para tal entrevistas com informantes privilegiados em alguns destes países e, também, notícias e legislação sobre o assunto. As medidas identificadas foram agregadas em cinco eixos temáticos: sem-abrigo, despejos, arrendamento, habitação pública e crédito à habitação[iv]. Esta análise, também publicada no Jornal Público a 15 de abril de 2020, concluiu que, de um modo geral, as principais preocupações assumidas em cada contexto são similares. Contudo, tendo em conta a existência de diferentes regimes de arrendamento e sistemas de apoio social, alguns países consideram já ter uma rede de segurança suficientemente abrangente que basta reforçar, enquanto outros viram-se na necessidade de criar mecanismos de raiz para garantir o básico. De entre os temas abrangidos na análise, destacam-se os seguintes aspetos de cada um dos eixos considerados:

1. Respostas habitacionais de emergência e reforço do financiamento: As ações ligadas ao alojamento de pessoas em situação de sem-abrigo são, em geral, remetidas para a responsabilidade dos poderes locais, que criam abrigos temporários, seja em pavilhões desportivos, como em vários casos de municípios nacionais (Lisboa, Cascais, Funchal), seja em alojamentos turísticos agora disponíveis (Berlim, Dublin), entre outros. As exceções são Inglaterra e Espanha, onde há respostas ao nível central. Inglaterra criou um fundo de emergência de 3,2 milhões de libras (3,49 milhões de euros) destinados às administrações locais, com vista ao alojamento condigno de pessoas em situação ou risco de sem-abrigo. Espanha passou a incluir pessoas em situação de sem-abrigo no conjunto de beneficiários do seu programa de apoio às camadas mais vulneráveis, que financia o acesso à habitação até 400€ por mês. Em Portugal, a rede de Pousadas da Juventude disponibilizou 400 camas para pessoas em situação de sem-abrigo.

2. Suspensão dos despejos: Todos os países criaram formas de suspender os despejos e reforçar a garantia de acesso a uma habitação, ainda que por via de diferentes mecanismos e com distintos graus de abrangência. Se na maioria dos casos a medida abrange todas as situações, na Alemanha e em Espanha ela aplica-se apenas aos que tiveram uma perda de rendimentos significativa devido à situação de emergência e que não tenham alternativa habitacional. Em Espanha, os despejos já tinham sido suspensos, temporariamente e de forma generalizada, pelo Consejo General del Poder Judicial, devido à situação criada pela Covid-19.

3. Criação/alargamento dos sistemas de apoio ao arrendamento privado (inquilinos e senhorios): Países com sistemas de apoio à renda destinados às camadas com baixo rendimento ou em situação de carência temporária (como a Alemanha, a Itália ou o Reino Unido) reforçaram o orçamento dos seus sistemas de apoio. Portugal e Espanha avançaram com moratórias relativas ao pagamento das rendas, destinadas a agregados familiares com perda significativa de rendimentos e uma taxa de esforço com a habitação superior a 35%. Estas moratórias vêm acompanhadas por mecanismos de apoio ao pagamento do valor em falta no período posterior ao estado de emergência, nomeadamente por via de empréstimos estatais sem juros. No caso português, estes empréstimos podem ser pedidos pelos inquilinos elegíveis para moratória, bem como pelos senhorios que fiquem em situação de carência económica devido à perda de rendimentos resultante da moratória criada. No caso espanhol, o prazo de pagamento dos empréstimos poderá ascender a 10 anos, mas este regime aplica-se apenas a pequenos proprietários ou, tratando-se de um grande proprietário, às situações em que o inquilino decida optar por ele. Para proprietários com mais de 10 imóveis arrendados deverá ser o próprio senhorio a reduzir a renda em 50% ou a aceitar o pagamento do valor em falta por um período de três ou quatro anos. Comparativamente, em Portugal, quando o inquilino não pede empréstimo terá apenas um ano para regularizar a situação. Relativamente aos agregados familiares em carência económica que venham a ter dificuldade em assegurar o pagamento posterior do valor em falta, está previsto um apoio a fundo perdido que pode chegar aos 1100€ por mês.

4. Apoio aos residentes em habitação pública: Embora não tenha sido possível reunir informação para todos os casos, percebe-se que, sobretudo através da ação das entidades de administração regional ou local, vão sendo encontradas formas de apoiar residentes em habitação pública, por via da revisão dos valores das rendas ajustadas aos rendimentos auferidos durante este período, da negociação de dívidas, da criação de moratórias ou mesmo da isenção de rendas.

5. Criação de moratórias ao crédito à habitação: Em todos os países foram criadas moratórias ao crédito à habitação, ainda que sob diferentes regimes e níveis de abrangência. De um modo geral, são moratórias de capital e juros criadas por iniciativa pública, exclusivamente destinadas aos que sofreram impacto direto devido à situação de emergência criada pela pandemia. A exceção recai sobre a Irlanda, onde não houve ação governamental nesta matéria, tendo sido as moratórias criadas pelos próprios bancos, neste caso estritamente de capital e com condições menos favoráveis para os clientes. No extremo oposto, Itália é o único país em que esta medida envolve despesa pública, com o Estado a assegurar o pagamento de 50% dos juros devidos durante o período da moratória.

Regressando ao contexto específico português, com a aproximação do fim da moratória das rendas, dia 1 de julho de 2020, e do crédito à habitação, dia 30 de setembro de 2020, esboçam-se entre os membros da Rede H vários cenários futuros, antevendo-se uma forte vaga de despejos e de intensificação da precariedade habitacional. A crise social e económica que se perfila, ou já se instalou, terá seguramente um forte impacto no acesso e manutenção de uma habitação condigna, colocando à Rede H o desafio de identificar e refletir sobre o panorama habitacional, mas também de assumir uma abordagem propositiva e incisiva em torno do grande objetivo que une todos os seus membros: o cumprimento do direito à habitação, tal como consagrado na Constituição da República Portuguesa e, mais recentemente, na Lei de Bases da Habitação, praticamente ainda no papel e ainda sem regulamentação específica que viabilize a sua implementação.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Farha, L. (2017). Report of the Special Rapporteur on adequate housing as a component of the right to an adequate standard of living, and on the right to non-discrimination in this context. United Nations. Retrieved from https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G17/048/05/PDF/G1704805.pdf?OpenElement         [ Links ]

Habitação e Covid-19: carta aberta. (2020, Março). Público. Retrieved from https://www.publico.pt/2020/03/23/economia/opiniao/habitacao-covid19-carta-aberta-1908998

Habitação: as soluções de seis países europeus para enfrentar a pandemia. (2020, abril). Público. Retrieved from https://www.publico.pt/2020/04/15/economia/noticia/habitacao-solucoes-seis-paises-europeus-enfrentar-pandemia-1912240

Report of the Special Rapporteur on adequate housing as a component of the right to an adequate standard of living, and on the right to non-discrimination in this context. Mission to Portugal. (2017, February). United Nations General Assembly. Retrieved from https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G17/048/05/PDF/G1704805.pdf?OpenElement

 

Documentos legais

Decreto-Lei n.º 67/2019, de 21/05/2019 - Procede ao agravamento do imposto municipal sobre imóveis relativamente a prédios devolutos em zonas de pressão urbanística.

 

Recebido: junho 2020. Aceite: junho 2020.

 

Notas

[i] Disponível em: https://www.publico.pt/2020/03/23/economia/opiniao/habitacao-covid19-carta-aberta-1908998 (Acesso a 23/06/2020).

[ii] As diversas medidas aprovadas têm vindo a ser sistematizadas pela arquiteta Helena Roseta e encontram-se disponíveis em: https://www.helenaroseta.pt/legislacao/leisconcluidas/000753,000079/index.htm?t=habitacao-e-covid-19--medidas-legislativas-entre-19-de-marco-e-24-de-junho

[iii] Segundo dados do INE, em 2011 havia 734 846 de alojamentos familiares clássicos devolutos, correspondendo a 12,5% do total nacional. O Decreto-Lei n.º 67/2019, de 21 de maio, prevê o “ agravamento do imposto municipal sobre imóveis relativamente a prédios devolutos em zonas de pressão urbanística” e reconhece a necessidade de “uma ação mais interventiva do Estado no estímulo à sua disponibilização, concorrendo, simultaneamente, para a concretização do seu potencial económico e para o cumprimento da sua função social”.

[iv] Disponível em: https://www.publico.pt/2020/04/15/economia/noticia/habitacao-solucoes-seis-paises-europeus-enfrentar-pandemia-1912240 (Acesso a 23/06/2020).

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