SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número114Henri Lefebvre, a cidade e sociedade urbanaEm que casa fico? Reflexões acerca do direito à cidade e à habitação em tempo de COVID-19 índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Finisterra - Revista Portuguesa de Geografia

versão impressa ISSN 0430-5027

Finisterra  no.114 Lisboa ago. 2020

https://doi.org/10.18055/Finis20386 

ATUALIZAÇÃO BIBLIOGRÁFICA

Mujeres, casas y ciudades. Más allá del umbral. (Zaida Muxí martínez)[i]

Joana Pestana Lages1

1Investigadora Integrada, DINÂMIA’CET-ISCTE-IUL, Avenida das Forças Armadas, 1649-026, Lisboa, Portugal. E-mail: joana.lages@iscte-iul.pt


 

Livro assumidamente feminista, a primeira edição de Mujeres, casas y ciudades, da autoria de Zaida Muxí Martínez, de Outubro de 2018, publicado em Barcelona e sem tradução para português, propõe uma nova abordagem da história da Arquitectura e do Urbanismo centrada nas contribuições singulares de mulheres que foram, sistematicamente, não reconhecidas ao longo da História.

Zaida Muxí Martínez, arquitecta argentina radicada em Barcelona, é professora na Escola Técnica Superior de Arquitetura de Barcelona, especializando-se nos temas do urbanismo, espaço e género. O livro Mujeres, casas y ciudades parte de um extenso processo de pesquisa iniciado por Muxí em 2004, obra que se junta a outras como La arquitectura de la ciudad global (2009), Postsuburbia (2013) ou Arquitectura y Política (2014), esta última em coautoria com Josep Maria Montaner.

A postura feminista implica uma necessária, e urgente, desconstrução da história dominante, contestando a falsa neutralidade e universalidade da transmissão de conhecimento e dos relatos históricos. A partir de uma epistemologia feminista e plural, a tarefa maior do livro é resgatar do esquecimento um largo conjunto de mulheres às quais foi negada, ou silenciada, voz na construção de espaços e cidades.

O livro compila e sistematiza os contributos na prática do projecto, da obra e do desenho, mas também do ensino, da investigação e da política urbana, protagonizados por mulheres, aos quais Muxí aporta os processos socioculturais e políticos que lhes deram corpo. É, pois, uma leitura que cruza escalas e fronteiras disciplinares pela sua lente de análise e pela diversidade nos contributos recolhidos, não só de arquitectas, designers e urbanistas, mas também mulheres mecenas, pensadoras, políticas e tantas outras que moldaram o ambiente construído do mundo ocidental. Numa nota prévia à leitura explica-se o título: “tudo isto sintetizado na casa e na cidade, como a representação do privado e do público”. A casa enquanto lugar do trabalho reprodutivo, desvalorizado e entregue às mulheres e a cidade, lugar público, produtivo e absoluto, atribuído aos homens, numa construção de valores fruto de uma sociedade patriarcal, com efeitos nos espaços vividos e desenhados, na distribuição de poderes e na criação de hierarquias.

O livro apresenta-se em oito capítulos, precedidos por uma introdução que lança questões prévias à leitura, centradas na construção de género na História ocidental. A conclusão, que é “provisória” segundo a autora, aponta o caminho a fazer no reconhecimento e validação das mulheres como protagonistas plenas da História. A bibliografia e o índice onomástico reforçam o propósito do livro como documento de consulta e visibilidade das muitas mulheres citadas.

Longe de enunciar todas as temáticas e percursos abordados por Zaida Muxí Martínez, antecipam-se, ainda que de forma breve, alguns momentos. Em “Mujeres arquitectura y ciudad antes del siglo XIX”, Muxí recupera A Cidade das Damas, escrito em 1405 por Christine de Pizan. Considerada por alguns a primeira escritora feminista, abriu caminho às revindicações de outras mulheres, até mesmo às mulheres organizadas (espacialmente) em estruturas próprias de gestão colectiva como as beguinages. Este primeiro capítulo estabelece a evolução do espaço doméstico, dos confinamentos às emancipações possíveis, a par da pesquisa por mulheres que exerceram a profissão antes do século XIX.

Segue-se “Revolución Social” centrada no século XIX e nas soluções que Angela Burdett-Coutts, Octavia Hill e Henrietta Barnett ofereceram ao problema de habitação, focado na classe operária, resultado da verdadeira transformação social operada pela Revolução Industrial. O contributo de Hill na intervenção em bairros pobres e insalubres, e a influência que causou no trabalho de Patrick Gueddes, precursor do urbanismo e da visão holística da cidade, mostram a extensa rede de contributos que Muxí mapeia.

Em “La prática arquitectónica: de la experiencia a la profesión”, apontam-se projectos e teorias experimentais como as casas sem cozinha propostas na segunda metade do século XIX por Melusina Fay Peirce, sugerindo um modelo de cooperativa de serviços domésticos, antecipando as discussões de hoje sobre co-housing e gestão partilhada. Entrando no século XX com “Las primeras arquitectas com formación universitaria” e “Las pioneras modernas”, mapeiam-se as pioneiras na Europa e na América do Norte, começando aqui a autora a interrogar-se porquê e para onde desaparecem as mulheres depois de formadas, questionamento que a acompanhará até às conclusões do livro e para o qual levanta algumas respostas, indicando possíveis caminhos de superação.

“Housers, las viviendas como centro de interés”, apresenta o processo da austríaca Margarete Schutte-Lihotzky em parceria com Ernst May, na concepção da cozinha de inspiração taylorista e laboratorial, e na influência desta no modelo que ainda hoje usamos. A cozinha modular insere-se numa visão mais ampla de Schutte-Lihotzky na defesa e promoção de habitação promovida pelo poder público, onde os critérios de funcionalidade e racionalização são prioritários, constantemente abordados com perspectiva de género. Desenha-se habitação para a mulher trabalhadora, tentando gerir com a máxima eficiência e poupança o tempo das tarefas domésticas.

“Tercera y cuarta generación” corresponde ao capítulo que traça o percurso das profissionais dos anos cinquenta até aos anos sessenta, focando arquitectas como Minnette de Silva y Lina Bo Bardi. Parte substancial é ainda dedicada ao mapeamento das primeiras publicações e exposições focadas no trabalho e na projecção de mulheres arquitectas.

No último capítulo, “Urbanismo moderno: mujeres públicas versus la mujer privada”, destaca-se o percurso de Jane Jacobs que, apesar de não ser arquitecta ou urbanista (mas sim, jornalista e ativista), marca o pensamento sobre cidades desde a década de 1960, a cooperativa Matrix formada duas décadas mais tarde, pertinente pela sua dimensão processual e participativa, somando-se também a experiência do gabinete de planeamento de Viena, pioneiro na articulação das questões de género desde a década de 1990. No remate, Muxí mostra-nos como nas diferentes geografias do mundo ocidental se tece uma teia de influências, que se potencia não se sobrepondo, quer na voz, quer na importância.

Em todos os capítulos se cruzam biografias de mulheres, ou grupos de mulheres, que influenciam até hoje os estudos arquitetónicos e urbanos. Acrescente-se ainda que Muxí não é alheia ao modo como a vida pessoal se interliga com a vida profissional, e nos resultados e impactos de uma na outra.

Em suma, Mujeres, casas y ciudades lança um importante contributo para os estudos de género e espaço, reforçada por outras iniciativas das quais Muxí faz parte, como a plataforma online ibero-americana “Un día, una arquitecta” (https://undiaunaarquitecta.wordpress.com ), onde diariamente é apresentada a biografia de uma arquitecta, realizado em colaboração com Inés Moisset, Florencia Marciani e Daniela Arias, também elas mobilizadas academicamente para estes estudos. A recente tese de Arias (2018), é disso prova, centrada na reflexão crítica dos mecanismos historiográficos oficiais da arquitectura e na omissão das contribuições de arquitectas entre a década de 1920 e 1940, leitura complementar a Muxí. Este tema tem sido aliás, alvo de um crescente e merecido interesse. Também o projecto europeu MoMoWo - Women`s Creativity since the Modern Movement, co-financiado pelo Creative Europe no âmbito do sub-programa da Cultura é destinado a mapear o contributo das mulheres profissionais arquitectas e urbanistas, mas também nas áreas da engenharia civil, design de produto e de interiores, desde o início do movimento moderno até à contemporaneidade (1918-2018). A publicação de MoMoWo coordenada por Caterina Franchini e Emilia Garda (2018) complementa, sem esgotar, o livro de Muxí.

Em Portugal, Mujeres, casas y ciudades foi apresentado em Maio de 2019, no ciclo de conversas “Espaços para Arquitectas”, a convite da Associação Mulheres na Arquitectura. Muxí partilhou também a sua experiência como Directora de Urbanismo, Habitação, Meio Ambiente, Ecologia Urbana, Espaço Público, Via Pública e Civismo da Câmara de Santa Coloma de Gramenet, cidade vizinha a Barcelona. Com os exemplos trazidos, Zaida Muxí conseguiu, em duas partes, juntar teoria e prática, mostrando com exemplos concretos, que é hoje possível desenhar e aplicar políticas urbanas mais igualitárias.

Em tempos tão desafiantes como os de hoje, este livro, que está longe de servir apenas a académicos e académicas, repõe e identifica o reconhecimento e contributos de muitas mulheres numa leitura clara e necessária para uma mais justa compreensão da História da Arquitectura.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Arias, D. (2018). La construcción del relato arquitectónico y las arquitectas de la modernidad: Un análisis feminista de la historiografia [The construction of the architectural narrative and the female architects of modernity: A feminist analysis of historiography]. (Tese de Doutoramento). Retrieved from http://hdl.handle.net/2117/123109        [ Links ]

Franchini, C., & Garda, E. (2018). MoMoWo· Women`s Creativity Since the Modern Movement. An European Cultural Heritage. Turim: Politecnico di Torino.         [ Links ]

Montaner, J. M., & Muxí, Z. (2011). Arquitectura y politica: Ensayos para mundos alternativos / Architecture and Politics: / Essays for Alternative Worlds. Barcelona: Editorial Gustavo Gili.

Muxí, Z. (2004). La arquitectura de la ciudad global [The architecture of the global city]. Barcelona: Editorial Gustavo Gili.

Muxí, Z. (Ed.). (2013). Postsuburbia: Rehabilitación de urbanizaciones residenciales monofuncionales de baja densidade [Postsuburbia: Rehabilitation of low density monofunctional residential developments]. Barcelona: Editorial Comanegra

 

Recebido: junho 2020. Aceite: julho 2020.

 

[i] Muxí, Z. (2018). Mujeres, Casas y Ciudades. Más Allá del Umbral [Women, Houses and Cities. Beyond the Threshold]. Barcelona: dpr-barcelona.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons