SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número114Mujeres, casas y ciudades. Más allá del umbral: Zaida Muxí Martínez índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Finisterra - Revista Portuguesa de Geografia

versão impressa ISSN 0430-5027

Finisterra  no.114 Lisboa ago. 2020

https://doi.org/10.18055/Finis19764 

COMENTÁRIO DE AUTOR

Em que casa fico? Reflexões acerca do direito à cidade e à habitação em tempo de COVID-19

Fabiana Pavel1

1Investigadora, Grupo de Estudos Sócio-Territoriais, Urbanos e de Ação Local (Gestual), Centro de Investigação em Arquitetura, Urbanismo e Design, Faculdade de Arquitetura, Universidade de Lisboa, Rua Sá Nogueira, Pólo Universitário, Alto da Ajuda, 1349-055, Lisboa, Portugal. E-mail: fa.pavel@gmail.com


 

I. Introdução

A crise capitalista de 2008-2009 veio impor, em Portugal, a adoção de novos modelos de gestão e ordenamento do território que favoreceram, entre outros, a financeirização do ambiente construído, processos de gentrificação e privatização do espaço público bem como a expulsão direta ou indireta da população residente, levando a uma crise no setor da habitação (Mendes, 2017). Neste contexto, seguindo o pensamento de David Harvey (2005), o valor de uso e a função social da habitação foram substituídos pelo valor de troca.

A chegada da Covid-19 e a declaração do estado de emergência vieram enfatizar as desigualdades socio-espaciais que já há alguns anos vêm sendo denunciadas por diversos movimentos sociais como, por exemplo, a associação Habita, o Movimento Morar em Lisboa (MeL) ou a plataforma Stop Despejos (Mendes, 2020). Paralelamente às denúncias dos movimentos sociais, estudos recentes (Pavel, 2015; Mendes, 2017; Viegas, 2019; entre outros) têm demonstrado como o modelo de crescimento da matriz neoliberal atualmente vigente em Portugal, baseado no turismo e no imobiliário, tem gerado processos de exclusão socio-espacial e habitacional.

Enquanto se assistia a uma certa romantização da quarentena por parte dos media, pouco se falava da relação entre espaço urbano, habitação e saúde e das dificuldades enfrentadas por aquela parte da população para a qual ‘ficar em casa’ não era uma opção ou não era a melhor opção do ponto de vista sanitário. Este texto, através de uma metodologia hipotético-dedutiva e da observação direta, pretende efetuar breves reflexões acerca do direito à cidade e à habitação em tempo de Covid-19 na Área Metropolitana de Lisboa (AML).

II. Em que casa fico?

Com o fecho progressivo das fronteiras, o centro de Lisboa tem-se esvaziado dos turistas que, nos últimos anos, se apropriaram do espaço público e de muitos apartamentos que foram transformados em alojamento local (AL). Ao mesmo tempo, a queda abrupta e repentina do turismo evidenciou a precariedade laboral no setor da indústria turística, colocando muitas pessoas em situação de desemprego.

Se as propriedades listadas na plataforma Airbnb nas freguesias do centro de Lisboa estivessem todas ocupadas na sua capacidade máxima, haveria mais visitantes que residentes (Rio Fernandes, Carvalho, Chamusca, Gago, & Mendes 2019). Essa realidade foi evidente durante a quarentena, quando nos bairros históricos de Lisboa se tornou visível a existência de edifícios completamente vazios e a presença de uma quantidade reduzida de moradores, em grande parte uma população envelhecida. Isso tem levado a problemas de segurança e de saúde devidos ao isolamento, em particular no que diz respeito à saúde mental. Vale a pena recordar também que as dificuldades no abastecimento de bens essenciais que esta população já sofria pela escassa existência de comércio local, aguçaram-se devido às limitações de circulação. Por outro lado, apesar do despovoamento, através da observação direta foi possível notar um fortalecimento dos laços de vizinhança e entreajuda e uma certa reapropriação dos bairros, agora sem turistas, por parte dos residentes.

Nos últimos anos, tem-se assistido ao aumento exponencial dos preços de compra e arrendamento dos imóveis e à criação, por parte do Estado, de legislação que favorece a iniciativa privada e o despejo de habitantes e comerciantes locais, com consequentes fenómenos de gentrificação (Pavel, 2015; Mendes, 2017). Esta vaga de despejos levou à marginalização dos moradores de parcos recursos económicos em áreas periféricas e colocou parte da população em situações habitacionais de sobrelotação e insalubridade, entrando assim numa espiral de crescente marginalização.

Durante a quarentena, e já em período de desconfinamento, têm vindo a público alguns casos de surto epidémico em pensões sobrelotadas onde residem centenas de pessoas, entre refugiados e migrantes, em situações de falta de higiene e habitabilidade (Silva, 2020). Diversas são também as dificuldades enfrentadas pelos moradores dos bairros precários ou autoconstruídos sem saneamento básico, com as consequentes contradições ligadas ao fazer a quarentena numa habitação que não proporciona condições de salubridade e higiene e que, portanto, leva a problemas de saúde física e psicológica (Esquerda.net, 2020). Importa recordar que parte desta população vive de trabalhos precários ou informais (empregadas domésticas, construção civil, feirantes, entre outros) e encontrou-se repentinamente sem meios de sustento, com o consequente agravamento das suas condições de vida. Ao mesmo tempo, trata-se de uma população que a pandemia veio excluir ulteriormente do resto da sociedade, por não ter acesso a alguns meios, como foi o caso das crianças que não tiveram acesso ao ensino à distância.

Algumas destas situações foram denunciadas pelos media, provocando uma certa estupefação por parte do público e preocupação pela propagação do vírus, causando, em alguns casos, a estigmatização dos moradores de algumas áreas ou de algumas comunidades, como a cigana. Todavia, trata-se de realidades menos conhecidas, mas que não são novas e que têm vindo a aumentar nos últimos anos no seguimento dos modelos de gestão e de desenvolvimento do território neoliberais adotados nas duas últimas décadas (Viegas, 2019).

Em contexto de pandemia foram promulgadas as Leis nº1-A/2020 de 19 de março e nº4-C/2020 de 6 de abril que, entre outras medidas, suspendem os despejos, as denúncias de contrato de arrendamento, criam o recurso ao empréstimo junto do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) por parte dos arrendatários habitacionais com quebras de rendimentos e o diferimento do pagamento da renda por parte dos inquilinos não habitacionais, medidas válidas até final de setembro de 2020.

Estas providências foram acolhidas com algum entusiasmo por serem a favor da defesa do direito à habitação. Todavia, importa recordar que se trata de medidas excecionais e temporárias e este fator levanta muitas questões acerca do que acontecerá após 30 de setembro, vislumbrando-se uma retomada abrupta dos casos de despejo, bem como o endividamento das famílias que recorreram ao empréstimo, juntamente com uma crise económica que é transversal à maioria da população. Neste contexto, sublinha-se que, apesar da promulgação destas leis extraordinárias, os despejos não pararam de facto, tendo sido denunciados casos de despejos ilegais[i].

Paralelamente, não parece existir uma vontade política clara no sentido de regulamentar o mercado imobiliário para garantir uma habitação condigna para todos. Em particular, o Programa Renda Segura (Deliberação nº 68/CM/2020) lançado pela Câmara Municipal de Lisboa (CML) pretende arrendar casas a proprietários de alojamento local, imóveis desocupados ou prédios livres, e subarrendá-los através do Programa Renda Acessível (Decreto-Lei nº 68/2019). No lugar de utilizar o erário público para reabilitar ou criar habitação pública e/ou celebrar contratos a preços inferiores aos do mercado, o Programa Renda Segura preocupa-se principalmente em salvaguardar os proprietários, aos quais será garantida uma renda a preços de mercado e incentivos fiscais.

III. Conclusão

Segundo Naomi Klein (2009), o choque nos cidadãos provocado por desastres, como é o caso do surto da Covid-19, cria a oportunidade para a implementação de medidas de cariz neoliberal que favorecem os interesses das elites em detrimento das camadas mais desfavorecidas da população. Por outro lado, pode ser uma oportunidade para que a sociedade civil reclame e conquiste reformas que, até então, não pareciam possíveis.

Viu-se como o surto pandémico veio evidenciar as fraquezas de um modelo económico baseado na hiperespecialização no setor do turismo e na financeirização do ambiente construído que levaram a condições de vulnerabilidade e segregação habitacional de diversos grupos sociais (idosos, migrantes, trabalhadores precários, pessoas sem abrigo, ciganos, entre outros). “Ficar em casa” não foi viável ou não foi a melhor opção para todos.

Por outro lado, foi possível notar o fortalecimento dos laços de entreajuda dentro das comunidades e o empenho dos movimentos sociais em dar voz e apoio a situações de injustiça e segregação espacial e não só. Por exemplo, a associação Habita e a Stop Despejos denunciaram casos de despejos ilegais e deram apoio às pessoas afetadas na procura de soluções, ou o MeL, que organizou diversos debates online com associações locais e membros da academia, procurou dar voz a situações específicas e traçar soluções (a exclusão das comunidades ciganas, a situação dos migrantes e a das pessoas sem abrigo, a violência doméstica, entre outros)[ii]. Isso traz a esperança de que a atual tempestade seja transformada pela sociedade civil, pelos movimentos sociais e pela academia numa oportunidade para exigir um diálogo mais estruturado com os órgãos públicos que leve à conceção de soluções na direção de um modelo de gestão e ordenamento do território que crie uma cidade mais justa e inclusiva.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

A angústia do vírus em quem mora nos bairros sociais da Grande Lisboa. (2020, abril). Esquerda.net. Retrieved from https://www.esquerda.net/artigo/angustia-do-virus-em-quem-mora-nos-bairros-sociais-da-grande-lisboa/66833

Harvey, D. (2006). A Produção Capitalista do Espaço [Spaces of capital: Towards a critical geography], 2nd Edition. São Paulo: Annablume.

Klein, N. (2009). A Doutrina do Choque. A Ascensão do Capitalismo de Desastre [The Shock Doctrine: The Rise of Disaster Capitalism], 2nd Edition. Lisboa: SmartBook.

Mendes, L. (2020). Luchas urbanas y derecho a la vivienda. Lisboa en la pos-crisis capitalista 2008-2009 [Urban struggles and the right to housing. Lisbon in the post-capitalist crisis 2008-2009]. Crítica Urbana - Revista de Estudios Urbanos y Territoriales, III(12), 13-16.

Mendes, L. (2017). Gentrificação, financeirização e produção capitalista do espaço urbano [Gentrification, financialization and capitalist production of urban space]. Cadernos Poder Local - Revista de Administração Democrática, 8, 56-86.

Silva, R. (2020, abril). O caso das “pensões” sobrelotadas. Depois de tamanha surpresa, que implicações? [The case of overcrowded "pensions". After such a surprise, what implications?]. Público. Retrieved from https://www.publico.pt/2020/04/23/opiniao/opiniao/caso-pensoes-sobrelotadas-tamanha-surpresa-implicacoes-1913499#        [ Links ]

Pavel, F. (2015). Transformação urbana de uma área histórica: o Bairro Alto. Reabilitação, identidade e gentrification. (Tese de Doutoramento). Retrieved from http://hdl.handle.net/10400.5/11767        [ Links ]

Rio Fernandes, J. A., Carvalho L., Chamusca P., Gago A., & Mendes, T. (2019). Lisboa e a AirBnB [Lisbon and the AirBnB]. Porto: Book Cover Editora.

Viegas, S. L. (2019). Acesso à habitação por todos e para todos? Paradigmas e paradoxos da actualidade portuguesa [Access to housing by all and for all? Today’s paradigms and paradoxes in Portugal]. Forum Sociológico, (34), 71-80. DOI: 10.4000/sociologico.4864

 

Documentos legais

Decreto-Lei nº 68/2019, de 2019/05/22 - Cria o Programa de Arrendamento Acessível.

Deliberação nº 68/CM/2020, de 2020/03/19 - Lançamento do Programa Municipal Renda Segura.

Lei nº 1-A/2020, de 2020/03/19 - Medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19.

Lei nº 4-C/2020, de 2020/04/06 - Regime excecional para as situações de mora no pagamento da renda devida nos termos de contratos de arrendamento urbano habitacional e não habitacional, no âmbito da pandemia COVID-19.

 

Recebido: junho 2020. Aceite: julho 2020.

 

Notas

[i] Ver as denúncias feitas pela plataforma Stop Despejos e pela Associação Habita em: https://stopdespejos.wordpress.com/ e https://habita.info/

[ii] Os debates organizados pelo MeL estão disponíveis em: https://www.youtube.com/channel/UCEM8pmCNnVl_OcURSrKZIqg

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons