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Finisterra - Revista Portuguesa de Geografia

Print version ISSN 0430-5027

Finisterra  no.115 Lisboa Dec. 2020  Epub Dec 31, 2020

https://doi.org/10.18055/finis20360 

Artigo

Rever a geografia do quarteirão e da casa: vários usos no mesmo espaço

Reviewing the geography of the quarter and the dwelling: several uses in the same space

Maria da Graça Moreira1  , Professora Auxiliar
http://orcid.org/0000-0001-9501-877X

1 Professora Auxiliar, Faculdade de Arquitetura, Universidade de Lisboa, Rua Sá Nogueira, 1349-063, Lisboa, Portugal. E-mail: gmoreira@fa.ulisboa.pt


Resumo

A organização do habitar nas cidades tem tido grandes alterações nos últimos 100 anos, quer pela introdução de novas teorias do urbanismo que discutiram a estrutura e a morfologia urbana, quer pela forma da implantação dos blocos residenciais, quer ainda pela organização interna da habitação. As condições sociais e culturais foram adequando os espaços às suas necessidades, que foram agora, bruscamente postas em causa pela Covid-19. Este texto faz uma breve reflexão sobre a cidade existente, a sua morfologia, a habitação e as necessidades que se fizeram sentir quando uma parte significativa da população activa e estudantil teve de permanecer por várias semanas em casa. Reflecte ainda sobre as características que a planta da casa deve contemplar para se adequar ao teletrabalho, em simultâneo, de vários membros da família.

Palavras-chave: Morfologia do Bairro; tipologias da habitação; tipologias do quarteirão; salubridade urbana; Covid-19

Abstract

The organization of dwelling in cities has undergone major changes in the last 100 years, whether by the introduction of new theories of urbanism that discussed urban structure and morphology, by the form of the implantation of the residential blocks or by the internal organization of the housing. Social and cultural conditions adapted the spaces to their needs, which have now been abruptly called into question by COVID-19. This text reflects briefly on the existing city, its morphology, housing and the needs that were felt when a significant part of the active and student population had to stay at home for several weeks. It also reflects on the characteristics that the house plan must contemplate to adapt to the teleworking of several family members simultaneously.

Keywords: Neighbourhood morphology; housing typologies; block typologies; urban health; Covid-19

I. Introdução

1. Da organização tradicional da cidade e da casa

A organização do habitar nas cidades tem sofrido grandes alterações nos últimos 100 anos, quer pelas novas teorias do urbanismo que discutiram a morfologia urbana, quer ao nível da implantação dos blocos residenciais, quer ainda da organização interna da habitação.

O urbanismo teve como um dos seus pressupostos a promoção da salubridade urbana, preocupado entre outras coisas como a organização e implantação das infraestruturas de água e esgotos, muito importantes para o controlo bacteriológico de algumas doenças de que não havia cura farmacológica, bem como com a insolação e o arejamento dos alojamentos também reconhecidamente relevantes para a saúde dos habitantes; objectivos vertidos num conjunto de normas de localização dos edifícios e organização interna dos fogos. A saúde pública e os estudos epidemiológicos têm-se relacionado estreitamente com a evolução urbana (Merlin & Choay, 2010).

O desenvolvimento de novas áreas para habitar ao redor da cidade tradicional, tanto as novas expansões urbanas (novos bairros) ou os novos aglomerados ou ainda os subúrbios, tiveram objetivos de melhorar a saúde dos seus habitantes (Mumford, 2011) e promover relações de vizinhança mais fortes; o seu traçado e ocupação possibilitaram muitas formas diferentes de viver, para os vários grupos sociais.

A organização dos edifícios de habitação em quarteirões com diferentes características e tipologias, fechados ou abertos, com a manutenção de espaço livre privado ou blocos implantados em vastos espaços públicos foram opções de organização espacial e de rentabilidade económica do solo urbano, que criaram opções de uso sem problemas para a saúde pública.

A organização interior da casa é muito variada de acordo com a cultura e a organização social de cada território. Em Portugal, nas áreas urbanas evoluiu de vários compartimentos (salas e quartos) ligados entre si por portas, passando para o desenvolvimento de um corredor que distribui para as várias divisões, aumentando a privacidade do uso de cada compartimento, com a separação muito marcada entre áreas sociais, como as salas e escritórios e áreas privadas ou de serviço, como os quartos de dormir e a cozinha, até mais recentemente, em que os grandes espaços abertos centrados na sala/cozinha têm acompanhado a evolução do uso da casa e do tipo de família.

A construção de varandas em alguns andares hierarquizava verticalmente o uso dos edifícios; o primeiro andar com uma varanda corrida os segundo e terceiro andar com pequenas varandas e os últimos andares só com janelas até às janelas de sacada no sótão ou esconso; ou a construção de varandas potencialmente transformáveis em marquises que denotavam alguma falta de espaço nos apartamentos são também aspectos interessantes para reflexão.

2. O desafio do confinamento

A recente pandemia da COVID-19 e a necessidade de confinamento na habitação durante várias semanas da maior parte da população urbana, vem levantar um número significativo de questões sobre o habitar em meio urbano e as necessidades que se fizeram sentir.

A percepção que o espaço público pode favorecer a propagação da doença, e por isso a sua utilização deve ser limitada; que os transportes públicos não são muito recomendados, pelo pouco espaço entre os passageiros; que a proximidade entre indivíduos não é aconselhada. Ao mesmo tempo, estar dentro de quatro paredes é limitativo, não ter acesso ao sol e ao ar ser estranho num território com um clima temperado, e suscita a quem estuda e intervém no espaço urbano um conjunto de reflexões.

Até agora a discussão, nomeadamente com os jovens arquitectos, sobre a planta da casa estava muito relacionada com o papel que os moradores, organizados em várias tipologias de família, teriam na sociedade e na vida doméstica, quais os espaços obsoletos que tendiam a desaparecer e como a tecnologia e a internet das coisas iria alterar esta organização. Mas com esta pandemia, outras questões sobre a planta da casa estão a surgir, a partir da vivência de cada um.

II. Novas Necessidades, velhos modelos

1. Da sustentabilidade da forma urbana

A problemática do urbanismo ecológico, materializada nos Eco-quarteirões construídos com preocupações de sustentabilidade ambiental desde os anos 90 do século passado, já vem sendo estudada e discutida há várias décadas, mas nunca como em 2020 a questão teve um impacto prático tão forte sobre as pessoas (Merlin & Choay, 2010). A alteração do uso da cidade provocou uma grande alteração sobre a poluição do ar, o consumo de energia e o uso do espaço urbano.

A sustentabilidade da cidade passa, neste momento, pela necessidade de se poder usufruir desta, sem o perigo iminente da contaminação por um vírus que se transmite pela proximidade entre os indivíduos.

Agora, o percurso a pé é preferível ao transporte público, por isso o comércio e serviços de proximidade são privilegiados. Contudo, as ruas não devem ter demasiada densidade de pessoas para que o distanciamento seja o recomendado.

A mais valia de ter comércio perto da habitação, de não haver ajuntamentos no espaço público, de haver espaço livre disponível e de a habitação permitir a coexistência de várias atividades durante as 24h, passou a ser muito relevante.

Qual a forma urbana que melhor responde à necessidade de percorrer a rua sem muita interação entre os peões, mas com atividades económicas necessárias ao dia a dia? Qual a densidade de habitação e de comércio melhor percecionada como segura?

Quais as condições climáticas de vento e calma que menos propiciam o contágio e que por isso, se devem favorecer no espaço público?

Qual o melhor desenho dos bairros e dos quarteirões, para permitir espaço livre de fruição, mas seguro em termos sanitários (fig. 1)? Serão os quarteirões total ou parcialmente impermeáveis, aqueles que criam espaços livres de uso privado pelos habitantes de cada edifício, onde se podem ter pequenas hortas e onde é menor a interação e por isso mais seguros? Ou as torres isoladas, em espaço público onde se podem criar uma multiplicidade de percursos individuais que minimizam os contactos interpessoais, em oposição aos quarteirões fechados?

Ou ainda as habitações unifamiliares com áreas livres perto do modelo dos bairros de casas económicas tão em voga nos anos 40-50 do século passado em Lisboa e no Porto?

Ou o modelo de baixa densidade mais próprio das áreas periurbanas?

Fonte: Moreira (2016)

Fig. 1 Quarteirões fechados e semi abertos versus blocos isolados. Figura a cores disponível online 

É necessário avaliar os modelos existentes, e são muitos, tendo em consideração a realidade específica da transmissão deste vírus, que é diferente de tudo o que se conhece do passado, em que os contextos relacionados com a saúde tinham outras variáveis.

2. Da geografia da casa

A organização interna dos apartamentos urbanos tem uma relação estreita com as técnicas construtivas que permitem, por exemplo, vãos maiores e paredes mais finas, bem como com os contextos socias e culturais das cidades onde estão construídos.

No caso da cidade de Lisboa, coexistem várias plantas de apartamentos nos prédios de rendimento, que surgem no pós terramoto; com as divisões relativamente pequenas, ligadas entre si, passando depois a ter um corredor de distribuição mas com quartos sem luz direta, os designados quartos interiores, ou a existência de uma divisão quase independente com entrada directa a partir da escada do edifício, até à obrigação de todas as divisões terem arejamento, com a introdução de janelas para o exterior ou para um saguão (Acciaiuoli, 2015).

A planta apresentava salas com paredes de tabique, que foram desaparecendo com a introdução do betão armado e a maior liberdade construtiva de criar espaços mais amplos.

A casa estava organizada entre o universo feminino muito centrado no espaço doméstico e privado, e o espaço masculino com maior pendor social o que reproduzia as linhas mestras da matriz normativa da família instituição (Pereira, 2016).

As necessidades da família nuclear evoluíram para um apartamento hierarquizado nas suas divisões, em particular nos quartos de dormir, com o quarto do casal com maior dimensão e o quarto dos filhos de menor dimensão. A sala comum junta as funções de sala de jantar e sala de estar num único espaço e nas últimas décadas agrega-lhe a cozinha.

Estes modelos relacionam-se com a organização social, o trabalho fora de casa, o uso ativo da habitação durante poucas horas e a cada vez menor especialização funcional dos membros da família.

Quando o confinamento foi imposto, a casa precisou de acomodar durante as 24h um conjunto de actividades e pessoas para as quais não estava preparada.

A nova necessidade de espaços de trabalho para todos os elementos da família, desde as crianças aos adultos; as condições acústicas de várias pessoas a trabalhar na mesma sala, ou a desempenhar funções diferentes como cozinhar e trabalhar ou ainda a privacidade necessária para alguns tipos de trabalho, fizeram-se sentir.

Qual a desenho do apartamento e características internas que melhor responde à necessidade de teletrabalho de várias pessoas? Até agora esta questão quando se colocava, não pressupunha reuniões em teleconferência, nem várias pessoas a partilhar o mesmo espaço.

Será que o quarto independente é um modelo interessante devidamente reinterpretado nas novas plantas dos apartamentos? A existência de um sótão transformado, também surge como hipótese nos últimos andares dos edifícios. Qual a geografia da casa que resolve os múltiplos desafios postos? Como é que estas necessidades se relacionam com a dimensão dos edifícios e a forma dos quarteirões?

III. Conclusão

Da análise feita à forma urbana e observando outras realidades encontram-se exemplos interessantes, que podem ser adaptados à realidade de menor interação no espaço público.

A malha ortogonal, que parece distribuir de forma mais homogénea a vida urbana, deverá, no entanto, ter em consideração a altura dos edifícios, para não promover densidades muito elevadas de indivíduos no espaço público envolvente.

A menor densidade edificada, com um comércio de rua mais disperso, pode promover a deslocação a pé, com percursos diversificados de modo a diminuir a proximidade física e consequentemente dificultar contágios, enquanto a promoção de percursos seguros para modos de transporte como a bicicleta, possibilita um transporte individual e não poluente.

A privatização de alguns espaços públicos pela criação de hortas urbanas que são espaços de lazer e de produção de proximidade, pode permitir a estadia ao ar livre com distanciamento físico e sem interação social.

A promoção de varandas de dimensões mais generosas para fruição do ar livre (fig. 2), quando as condições climáticas o permitam, para funcionarem como pequenas estufas de lazer no inverno ou para a criação de pequenas hortas e jardins verticais que criam um ambiente natural percecionável do interior do apartamento, são outras possibilidades de fruição do verde em segurança.

Fonte: Moreira (2018)

Fig. 2 Bloco de apartamentos com varandas/marquises reversíveis. Figura a cores disponível online 

A planta da casa mais compartimentada, com a separação de espaços de trabalho de espaços de lazer para todos os grupos etários, com preocupações de acústica, mas também de acesso wifi à internet, é um novo paradigma a ter em conta.

Em resumo uma cidade mais sustentável sobre todos os pontos de vista, é uma cidade mais saudável.

Referências bibliográficas

Acciaiuoli, M. (2015). Casas com Escritos - Uma História da Habitação em Lisboa [Houses with Writings - A History of Housing in Lisbon]. Lisboa: Bizancio. [ Links ]

Merlin, P., & Choay, F. (2010). Dictionnaire de l’urbanisme et de l’aménagement [Dictionary of town planning and development]. Paris: Presses universitaires de France. [ Links ]

Mumford, L. (2011). La cité à travers l’histoire [The city through history]. Marseille: Agone. [ Links ]

Pereira, S. M. (2016). Casa e Mudança Social - uma leitura das transformações da sociedade portuguesa a partir da casa [House and Social Change - a reading of the transformations of Portuguese society from the house]. Lisboa: Caleidoscópio. [ Links ]

Recebido: 01 de Junho de 2020; Aceito: 01 de Setembro de 2020

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