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Finisterra - Revista Portuguesa de Geografia

versão impressa ISSN 0430-5027

Finisterra  no.115 Lisboa dez. 2020  Epub 31-Dez-2020

https://doi.org/10.18055/finis20294 

Artigo

Os incêndios florestais em Portugal em tempo de COVID-19

Forest fires in Portugal in times of COVID-19

1 Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Departamento de Geografia, Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Campus de Azurém, Guimarães, Portugal. E-mail: bento@geografia.uminho.pt

2 Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Departamento de Geografia, Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Guimarães, Portugal. E-mail: vieira@geografia.uminho.pt

3 Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Universidade do Minho, Guimarães, Portugal. E-mail: saamoura@gmail.com

4 Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Universidade do Minho, Guimarães, Portugal. E-mail: jmanuelfrocha@sapo.pt


Resumo

A ignição e propagação de incêndios florestais no primeiro quadrimestre de cada ano, em Portugal, constituiu, desde os anos setenta, uma realidade, enquadrada por condicionantes socioeconómicos específicos e apenas atenuada por condições meteorológicas francamente desfavoráveis à sua ocorrência. Com efeito, a observação simples dos dados estatísticos relativos aos incêndios florestais permite a constatação deste fenómeno, sendo que o ano de 2020 é o que menor número de ocorrências regista, em relação aos cinco anos anteriores (2015-2019). Contudo, e ainda que com condições meteorológicas aparentemente favoráveis, no referido período de 2020 assistiu-se a uma redução drástica do número de ignições e da área ardida em todo o território continental. Este facto é apenas justificável por fatores sociais, nomeadamente os associados à pandemia gerada pela COVID-19, pelas condicionantes sanitárias associadas ao mesmo e às consequentes medidas de confinamento impostas pelo governo português, especialmente durante o período do Estado de Emergência.

Palavras-chave: Ignições; áreas ardidas; COVID-19; condições meteorológicas; Portugal

Abstract

The ignition and spread of forest fires in the first four months of each year, in Portugal, has been a reality since the seventies, framed by specific socio-economic conditions and only mitigated by meteorologic conditions that are clearly unfavourable to their occurrence. Indeed, the simple observation of the statistical data related to forest fires allows the verification of this phenomenon, with the year of 2020 having the lowest number of occurrences in relation to the previous five years (2015-2019). However, and even with apparently favourable meteorologic conditions, in the period of 2020 there was a drastic reduction in the number of ignitions and burnt areas throughout the continental territory. This fact is only justified by social factors, namely those associated with the pandemic situation, generated by COVID-19, by the sanitary conditions associated with it and the consequent confinement measures imposed by the Portuguese government, especially during the period of the State of Emergency.

Keywords: Ignitions; burnt areas; COVID-19; meteorological conditions; Portugal

I. Introdução

O ano de 2020 desde cedo se viu ensombrado pelo fantasma de uma possível pandemia oriunda do sudeste asiático. O mês de março concretizou os piores receios da humanidade, com a explosão do contágio pelo Coronavírus na China e sua disseminação pelo sudeste asiático e para a Europa, inicialmente, e depois para todo o globo.

Esta realidade veio obrigar a uma reorganização da sociedade, tal como a conhecíamos, e trouxe restrições à circulação de pessoas, tendo o “Estado de Emergência” implementado em Portugal (de 18/03/2020 a 3/05/2020), implicado restritivas medidas de confinamento.

Uma situação que tem sido percecionada durante a pandemia, é a da drástica redução no número de ignições e da área ardida, nos primeiros 4 meses do ano.

Como se sabe, o desordenamento do território e a falta de gestão das áreas florestais, a par do clima, da meteorologia, do relevo e da eficácia do combate e da primeira intervenção, são algumas das variáveis fundamentais na explicação da dimensão que alguns incêndios atingem, mas a ação humana, quer por negligência, quer de forma intencional, é fulcral para o deflagrar de incêndios (Lourenço, Fernandes, Nunes, Bento-Gonçalves, & Vieira, 2013), mostrando as estatísticas que, entre 2010 e 2019, apenas 1,2% das ignições, não tiveram origem humana.

II. Condições meteorológicas condicionantes dos incêndios florestais no primeiro quadrimestre no quinquénio 2015-2019 e no ano de 2020

Um dos aspetos fundamentais para a propagação dos incêndios florestais em Portugal diz respeito ao clima e às condições meteorológicas existentes (Ferreira-Leite, F., Bento-Gonçalves, A., Vieira, A., Nunes, A., & Lourenço, L., 2016; Ferreira-Leite, F., Ganho, N., Bento-Gonçalves, A., & Botelho, F., 2017). Como referia Rebelo (1980, p. 12), “o clima desempenha um papel preponderante no desenvolvimento dos grandes incêndios na floresta”, pelo que é indispensável ter em consideração os aspetos relacionados com o seu comportamento quando nos propomos a analisar a variabilidade das ocorrências numa determinada área e num determinado período.

Considerando a necessidade de enquadrar esta análise num intervalo de tempo minimamente longo que permitisse discernir a existência ou não de influência meteorológica, decidimos ter em consideração um quinquénio, integrando os anos de 2015 a 2019, e analisando os meses de janeiro a abril, enquadrando o período imediatamente anterior ao início da pandemia em Portugal (meses de janeiro e fevereiro), e os dois primeiros meses em que ocorreu o período de confinamento (março e abril).

Tendo como fonte de informação os boletins climatológicos publicados pelo Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), para o período referido, extraímos os valores médios para Portugal Continental relativos à Temperatura Média Mensal e à Precipitação Média Mensal.

Da análise do comportamento destes elementos no período considerado, podemos constatar que, no que diz respeito à temperatura média, não se observa grande discrepância entre a média dos valores médios registados no período 2015-2019 e a registada em 2020 (fig. 1). No entanto, deteta-se uma diferença de cerca de 2,5º C no mês de fevereiro, com a média da temperatura mais elevada em 2020 (considerado pelo IPMA como o mês de fevereiro mais quente desde 1931), sendo que nos restantes meses a diferença não alcança 1º C de diferença. Uma análise mais pormenorizada permite-nos identificar algumas diferenças interanuais. Ainda que quase todos os anos apresentem um comportamento não muito distinto, o ano de 2016 regista o mês de janeiro com a temperatura média mais elevada, com cerca de 1º C mais elevado que o ano de 2020, também ele com médias superiores aos restantes anos nos dois primeiros meses do ano. O ano de 2018, pelo contrário, apresenta a média mais baixa nos meses de fevereiro e março. Já relativamente ao mês de abril, destaque para a média mais elevada do ano de 2017, cerca de 2º C mais elevada que a de 2020.

Fonte: IPMA

Fig. 1 Precipitação e Temperatura médias mensais (2015-2019 e 2020) em Portugal Continental 

No que diz respeito à precipitação, ainda que nos meses de janeiro, março e abril as discrepâncias entre as médias registadas no período de 2015-2019 e as de 2020 não sejam muito significativas, já no mês de fevereiro a diferença é significativa, tendo-se registado um valor superior a 60mm a menos em 2020, comparativamente com o período de 2015-2019 (fig. 1). De facto, este é um aspeto bastante significativo, uma vez que já no mês de janeiro de 2020 a precipitação ocorrida foi inferior ao valor normal (IPMA, 2020), agravando-se essa situação em fevereiro, registando-se apenas 17% do valor normal (relativo ao período de 1971-2000). Segundo o IPMA, o mês de fevereiro de 2020 foi o quinto mais seco desde 1931, agravando a situação de seca meteorológica que já se vinha a verificar nas regiões a sul do Tejo.

Por outro lado, o ano de 2016 foi particularmente chuvoso nos meses de janeiro e fevereiro, registando no primeiro mês do ano mais do dobro da quantidade observada nos restantes anos em análise. Também em abril, o ano de 2016 foi o mais chuvoso. Em março, o ano mais chuvoso foi o de 2018, registando mais de 250mm (segundo março mais chuvoso desde 1931).

III. Incêndios florestais

O nosso país reúne as condições para se poder afirmar que possui um “piro ambiente”, pois junta às caraterísticas mediterrânicas, que conjugam a época quente com a época seca, a feição atlântica, que lhe permite uma elevada produtividade vegetal (Pyne, 2006).

Os espaços florestais são uma construção social, lugar de confronto, de tensões, de conflitos de uso, de apropriação e transformação, ou seja, estão sujeitos a múltiplos interesses, na sua maioria legítimos, mas muitas vezes antagónicos (Bento-Gonçalves, 2019).

Esses confrontos, tensões e conflitos (ex: baldios, caça, etc.) dependentes de fatores de ordem pessoal, social, económica e ambiental, resultam muitas vezes em incêndios florestais, aqui entendidos como o conjunto de todos os incêndios em vegetação, exceto o fogo prescrito e os incêndios agrícolas, que, pelas suas caraterísticas e dinâmicas, os autonomiza.

Com efeito, no período de 2015 a 2019, 98,4% dos incêndios tiveram mão humana, e desses, 33,8% tiveram na sua origem “queimadas extensivas para gestão de pasto”, “queimadas extensivas de sobrantes florestais ou agrícolas” e “queimas de amontoados de sobrantes florestais ou agrícolas”, ou seja, uso do fogo em atividades relacionadas com criação de gado, pastorícia, silvo-pastorícia e agricultura.

No primeiro quadrimestre do ano, em séries temporais longas (2010-2019), o mês de março destaca-se pelo elevado número de ocorrências que normalmente regista, fruto, precisamente, do tipo de uso do fogo referido anteriormente, enquanto que o mês de abril, com menos ocorrências do que o de março, se destaca dos de janeiro e fevereiro, como o segundo com maior número de ignições (fig. 2).

Fonte: ICNF

Fig. 2 Número médio de ocorrências nos meses de janeiro a abril nos períodos de 2010-2019 e 2015-2019 e total de ocorrências nos meses de janeiro a abril, no ano de 2020, em Portugal Continental 

O mês de março de 2020 seguiu a tendência geral, embora, com valores muito inferiores aos das médias do quinquénio ou da década anterior. Já o mês de abril apresentou um comportamento diferente do habitual, com um valor inferior ao do mês de fevereiro e pouco superior ao do mês de janeiro.

Relativamente ao primeiro quadrimestre do ano, verifica-se que o ano de 2020 apresenta um total de ocorrências inferior a todos os anos em análise, inclusive, em relação a 2016, ano particularmente chuvoso nos meses de janeiro, fevereiro e abril. Já no que respeita às áreas ardidas, fruto das condições climáticas muito favoráveis à ocorrência e propagação de incêndios, o ano de 2020 ultrapassou o de 2016, ficando muito abaixo dos restantes anos (2017, 2015, 2019 e 2018) [figs. 3ª) e b)].

Fonte: ICNF

Fig. 3 a) Número de ocorrências; b) Área ardida nos meses de janeiro a abril no período 2015-2020, em Portugal Continental 

Com efeito, as medidas de confinamento refletiram-se diretamente no número de ocorrências e, indiretamente na extensão das áreas ardidas. No mês de março, após a instauração do Estado de Emergência, no dia 18 de março, verificou-se uma abrupta descida no número de ocorrências, a qual recuperou após uma semana, mas com uma significativa alteração de comportamentos, pois o sábado deixou de ser o dia da semana com o mais elevado número de ignições, e assistiu-se a um expressivo aumento das eclosões em horário noturno (das 20h às 04h).

IV. Discussão e conclusões

A leitura dos dados apresentados, ainda que necessariamente ligeira por se tratar de uma realidade bastante recente e limitada pelos dados pouco abundantes e ainda provisórios, não deixa de nos confirmar a perceção da realidade que se vive na atualidade, significativamente condicionada pela pandemia da COVID-19, que afeta todos os setores da atividade humana e da nossa sociedade.

Dada a relação que se tem vindo a estabelecer entre a ocorrência de incêndios florestais e a intervenção humana (Lourenço et al., 2012), parece-nos relevante ter em consideração que o estabelecimento de um confinamento obrigatório à generalidade da população e o próprio estado emocional e sociológico que enquadra a situação possa ser fator suficiente para explicar a redução de incêndios florestais e da consequente área ardida.

Esta interpretação parece-nos ainda mais verosímil quando acompanhada por condições de ordem meteorológica, ocorridas durante o período de confinamento e o que o antecedeu, que facilmente se poderiam considerar favoráveis à deflagração de incêndios florestais e num período tradicional de renovação de pastagens. A observação de condições semelhantes no primeiro quadrimestre de anos anteriores revelou um número bastante superior de ocorrências, facto que reforça a nossa perspetiva.

Obviamente que, independentemente da atual pandemia, esta breve reflexão também mostra, de forma inequívoca, a relação entre o uso do fogo no mundo rural e parte substancial da ocorrência de incêndios florestais, demonstrando a causalidade destes por ação humana.

Neste sentido é necessário e urgente repensar o mundo rural, apoiando as populações que, com grande esforço e sacrifício, se mantêm nas áreas montanhosas e no interior e que, com a desestruturação do mundo rural e a extrema litoralização do nosso país, se sentem, muitas vezes, à margem das estratégias de desenvolvimento, sendo, no entanto, cruciais na manutenção das nossas paisagens e de boa parte dos serviços ecossistémicos gerados em Portugal (Bento-Gonçalves, Vieira, Ferreira-Leite, Martins, & Costa, 2010).

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Recebido: 01 de Junho de 2020; Aceito: 01 de Setembro de 2020

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