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Finisterra - Revista Portuguesa de Geografia

Print version ISSN 0430-5027

Finisterra  no.115 Lisboa Dec. 2020  Epub Dec 31, 2020

https://doi.org/10.18055/finis20311 

Artigo

COVID-19, turismo e sustentabilidade: tudo está interligado

COVID-19, tourism and sustainability: everything is connected.

Eduardo Brito-Henriques1  , Investigador Efetivo, Professor Associado
http://orcid.org/0000-0002-2225-869X

1 Investigador Efetivo, Professor Associado, Centro de Estudos Geográficos, Instituto de Geografia e Ordenamento do Território, Universidade de Lisboa, Rua Branca Edmée Marques, Cidade Universitária, 1600-276, Lisboa, Portugal. E-mail: eduardo@edu.ulisboa.pt


Resumo

A COVID-19 e a crise devastadora que por sua causa se anuncia no turismo justificam uma reflexão. Neste ensaio proponho uma leitura da relação COVID-19/turismo a partir de uma perspetiva mais-do-que-humana e de ecologia integral. Após um breve enquadramento em que a COVID-19 é apresentada como um evento socionatural, é discutida a relação entre a pandemia, o sobreturismo e a crise turística mundial atual. Termino com uma breve reflexão sobre o turismo pós-COVID-19.

Palavras-chave: COVID-19; turismo; sustentabilidade; teoria do ator-rede; ecologia integral

Abstract

The COVID-19 pandemic and the devastating crisis that is unfolding in tourism justify a reflection. This essay proposes an interpretation of the COVID-19/tourism nexus from a more-than-human approach and through the lens of integral ecology. After a brief overview in which COVID-19 is presented as a socio-natural event, the relationship between the pandemic, overtourism and the current global tourism crisis is discussed. It will end with a brief reflection on tourism post-COVID-19.

Keywords: COVID-19; tourism; sustainability; actor-network theory; integral ecology

I. Um evento nada natural

A pandemia de COVID-19 vai certamente figurar na lista dos grandes desastres naturais pois é nessa categoria que as epidemias costumam ser catalogadas. Contudo, não é um evento puramente natural. A ilusão de uma “natureza” à parte da “sociedade”, e vice versa, é uma criação ficcional da modernidade sem verificação na realidade e que teve consequências desastrosas para a habitabilidade da Terra (Latour, 1991). Sociedade e natureza interpenetram-se e o que por todo o lado prolifera é a hibridade socionatural (Whatmore, 2002).

A COVID-19 é a confirmação. Na sua eclosão exprime-se bem a interligação do natural, do cultural e do político, e de como é crítica e interdependente a coabitação de humanos e não-humanos no Planeta. Ao que sabemos, a infeção humana pelo SARS-CoV-2 terá começado num local muito particular em Wuhan, China: no mercado de pescado e carne selvagem de Huanan, onde animais de pelo menos 75 espécies diferentes, algumas em perigo e protegidas por convenções internacionais, eram vendidos como iguaria de luxo (O’Callaghan-Gordo & Antó, 2020), ou “marisco”. Os primeiros casos reportados de pneumonia severa pelo novo coronavírus foram de vendedores desse mercado. A infeção terá ocorrido a partir de um animal infetado de espécie ainda incerta (talvez um pangolim), que por sua vez terá sido infetado a partir do morcego, reservatório natural dos coronavírus. Mercados deste tipo, onde animais selvagens de várias espécies, não raro resultantes de caça ilegal e circulados através de correntes de tráfico internacional, são mantidos vivos promiscuamente, proliferam na China e já foram focos de outras epidemias zoonóticas no passado, nomeadamente da SARS em 2002 (O’Callaghan-Gordo & Antó, 2020). Não só na China como em outros países do Sudeste Asiático, o consumo de animais selvagens e a curiosidade neófila por carnes exóticas, sustentada por tradições que lhes atribuem propriedades medicinais e afrodisíacas, tornaram-se sinais de estatuto para os novos milionários e para as classes médias urbanas que prosperaram com o crescimento económico das últimas décadas, e são hoje inclusive razão de turismo gastronómico (Ying, Wang, Liu, Wen, & Goh, 2020). Wuhan é um dos principais polos industriais e tecnológicos da China central, uma metrópole regional com 11 milhões de habitantes, onde estão sedeadas fábricas de empresas como a Siemens, Microsoft, Honda, Renault e General Motors, onde lojas da Prada, YSL e Dolce & Gabanna estão estabelecidas, e onde uma elite de engenheiros, gestores, e consultores financeiros floresceu. A infeção humana pelo SARS-CoV-2 está imbricada nesta trama de conexões com mercado, urbanização, consumo conspícuo e caça furtiva, e, portanto, seria mais adequadamente descrita como um evento socionatural. É-o também pela forma como a pandemia que causou se entrelaça no turismo.

II. Sobreturismo, pandemia, crise turística

O turismo é dos setores que, mundialmente, mais está a ser afetado pela COVID-19 (Gössling, Scott, & Hall, 2020). O turismo implica mobilidade e interação, e na ausência de instrumentos farmacêuticos de prevenção e combate da doença, as políticas de imobilidade são a única forma possível de mitigação da pandemia. Estima-se que possam estar em risco, só em empregos diretos, mais de 100 milhões de postos de trabalho em todo o mundo (WTTC, 2020). Talvez menos notado, porém, é que o turismo não está só do lado das consequências da pandemia, mas também do lado das causas.

A teoria do ator-rede (TAR) não assume propriamente que os atores possuam poder. Fala de agência e vê essa capacidade de agir e produzir efeitos dispersa ao longo das múltiplas associações heterogéneas de atores humanos e não-humanos que constituem a sociedade. Assume que parte dessa agência está adstrita a entidades particulares nesses coletivos híbridos que formam a vida social, mas vê-a sobretudo como agência distributiva, fluindo e circulando entre os diferentes elementos da rede: “Um ator é aquele que muitos outros fazem atuar” (Latour, 2005, p. 46). Cito isto para lembrar que um vírus é uma entidade tão elementar e tão limitada nas suas faculdades que não chega a merecer a categoria de microrganismo. A ciência coloca-o no limiar entre o vivo e o inerte. Sem uma célula que o acolha, é vulnerável e nada pode. Portanto, o SARS-CoV-2 não opera isolado. É o híbrido transitório formado pelo humano-mais-vírus o actante da propagação, mas mesmo este ator híbrido precisa de uma rede com outros atores e intermediários para que a agência distributiva potencie a sua atuação. A assemblagem do turismo - o coletivo de viajantes, aviões, tripulações, aeroportos, hotéis, navios de cruzeiro, bagagens, rececionistas, etc. - foi o ator-rede que se formou e permitiu a amplificação da COVID-19 à escala de pandemia. Há indícios de que o principal vetor de propagação inicial da infeção foram as correntes de turismo de lazer e de negócios entre Wuhan e as megacidades chinesas, e não - contrariamente ao que pretendeu uma certa narrativa de culpabilização surgida na China - os migrantes internos de visita às terras de origem por ocasião do Ano Novo Chinês (Shi & Liu, 2020). No Japão, o primeiro caso não importado de COVID-19 foi de um condutor de autocarro turístico. Em Itália, o primeiro óbito desta nova doença foi de um turista chinês. Na Austrália, o navio de cruzeiros Ruby Princess, cujos passageiros foram autorizados a desembarcar sem serem testados, esteve na origem de centenas de cadeias de transmissão e foi um dos principais focos de disseminação da infeção no país (Iaquinto, 2020).

A forma como se processam as mobilidades turísticas explica que o turismo tenha sido tão crucial na propagação da doença (Iaquinto, 2020). As mobilidades fazem-se com a encapsulação dos corpos em espaços fechados móveis - aviões, autocarros, cruzeiros, etc. - e os fluxos convergem e comprimem-se ao passar através de nós - aeroportos, hotéis, centros de congressos, museus, etc. - que estimulam interações e contactos de humanos entre si e com diversas formas de materialidades. Por outro lado, a hipermobilidade veio ampliar a capacidade performativa do turismo como ator-rede na ativação da pandemia. Desde que ocorreu o surto da SARS, em 2002, o número de viagens internacionais realizadas anualmente mais do que duplicou, disparando de cerca de 703 milhões para quase 1,5 mil milhões em todo o mundo. A Ásia-Pacífico foi a região de crescimento mais intenso. Enquanto em 2002 viajavam para o estrangeiro 16 milhões de chineses, em 2019 viajaram mais de 150 milhões. Diferenças na transmissibilidade das infeções pelos dois coronavírus explicam a propagação mais fácil da COVID-19, mas esta variável também releva e não deve ser descartada se queremos entender cabalmente as proporções que a pandemia atingiu e a crise global que gerou.

Dito isto, encontro aqui um nexo entre a pandemia e o sobreturismo (overtourism). Poderá parecer estranho quando, à data em que escrevo, o que se observa é falta de turistas. Todavia, o sobreturismo não é sobrelotação (overcrowding). É um conceito mais amplo que pretende descrever um crescimento excessivo do turismo gerador de externalidades negativas: danos ambientais, injustiças e privações no acesso a recursos, diminuição do bem-estar das populações (Milano, Cheer, & Novelli, 2019). O sobreturismo tem sido usado maioritariamente para descrever situações críticas pontuais em territórios específicos, mas creio que se pode usar num sentido mais amplo e universal - e é nesse sentido que o emprego aqui - para designar um crescimento turístico que, globalmente, ao ritmo com que se vinha a processar, e com as conhecidas pressões ambientais que estava a colocar no Planeta (Gössling & Peeters, 2015), era manifestamente excessivo. A pandemia será assim, até certa medida, um resultado também desse sobreturismo global.

Encontro depois ainda outro nexo entre o sobreturismo e a crise turística que a pandemia desencadeou. A excessiva dependência da economia de visitação também é uma expressão de sobreturismo (Milano et al., 2019). Territórios onde essa dependência era maior são os que mais vulneráveis se apresentam agora diante de uma crise que todas as previsões antecipam como de proporções inauditas. É o caso dos países da Europa do Sul e Mediterrâneo, onde previsivelmente o desemprego irá explodir, sobretudo nas regiões mais turísticas, e as situações de carência material se irão agravar, mas mais perigosa ainda será a situação em que ficam os frágeis territórios insulares do Pacífico, do Índico e do Caribe, onde nações inteiras podem ser empurradas para a pobreza dada a monodependência do turismo e a debilidade dos sistemas de proteção social do Estado. Mais dispersas, menos visíveis, há em África e em outras regiões do Sul Global comunidades de povos indígenas que abandonaram nos últimos anos os modos de vida tradicionais para se envolverem no turismo (ecoturismo, turismo de natureza, turismo étnico, etc.), e que agora se veem privadas desses meios de sobrevivência. Essas populações não podem ser esquecidas.

III. Um momento de bifurcação

Com o turismo praticamente reduzido a zero, alguns autores e algumas autoras têm notado que estamos em face de uma oportunidade única para a sua refundação (Ateljevic, 2020; Brouder, 2020; Higgins-Desbiolles, 2020; Ioannides & Gyimothy, 2020). Naturalmente, só fala em “refundar” quem encontra defeitos no modelo que tem sido seguido e sente urgência na necessidade de abrir caminhos de progresso alternativos. Estou entre os que alinham com esta visão. Demasiadas evidências mostram que é insustentável prosseguir um modelo que priorize o crescimento. Um turismo norteado não pelo critério do lucro das empresas, mas antes pelo interesse e benefício das comunidades visitadas, pela qualidade do emprego, e pela reconciliação ecológica e o respeito das fronteiras planetárias tem de ser o caminho.

Embora por razões que não são felizes, estão criadas condições excecionais para que um turismo renovado e recalibrado possa emergir: um turismo mais leve (menos turistas), talvez mais lento (deslocações mais demoradas, permanências mais longas), certamente mais próximo (turismo doméstico, de curta distância), menos dependente do transporte aéreo. Outros micróbios no passado foram actantes de inovações improváveis que mudaram o estado de coisas (Latour, 2005). Não é impossível que suceda de novo. Aliás, é isso que vai acontecer no futuro imediato, temporariamente, enquanto se mantiverem restrições à mobilidade. A possibilidade desse turismo recalibrado se efetivar como uma tendência futura dependerá da força que houver para cortar com o passado e decidir trilhar um caminho de maior sustentabilidade, assumindo os custos de redimensionamento do setor. A alternativa a isso será a indesejável narrativa da “retoma”. As experiências do passado mostram que as crises comportam riscos grandes de desencadearem formas agressivas de regresso ao business as usual, que na verdade radicalizam os aspetos predatórios do crescimento - o “capitalismo do desastre” - sacrificando ao lucro e aos resultados das empresas a qualidade do emprego, a justiça social, e a saúde do Planeta (Klein, 2020). É este o momento de bifurcação em que nos encontramos.

Agradecimentos

Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito dos Projetos UIDB/00295/2020 e UIDP/00295/2020.

Referências bibliográficas

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Recebido: 01 de Junho de 2020; Aceito: 01 de Setembro de 2020

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