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Finisterra - Revista Portuguesa de Geografia

versão impressa ISSN 0430-5027

Finisterra  no.115 Lisboa dez. 2020  Epub 31-Dez-2020

https://doi.org/10.18055/finis20187 

Artigo

Apartamentos turísticos, COVID-19 e capitalismo de plataformas

Tourist apartments, COVID -19, and platform capitalism

Agustín Cocola-Gant1  , Investigador Efetivo
http://orcid.org/0000-0003-3395-4233

1Investigador Efetivo, Centro de Estudos Geográficos, Instituto de Geografia e Ordenamento do Território, Universidade de Lisboa, Edifício IGOT, Rua Branca Edmée Marques, Cidade Universitária, 1600-276, Lisboa, Portugal. E-mail: agustincocolagant@campus.ul.pt


Resumo

Para entender como o mercado de apartamentos turísticos está a responder à pandemia, é necessário analisar a maneira como esse mercado se foi reorganizando nos últimos anos. Este texto baseia-se no estudo que realizámos deste mercado em Portugal no âmbito do projeto SMARTOUR, e destaca dois pontos fundamentaisi. O primeiro é perceber a flexibilidade e o controlo sobre a casa que este mercado oferece aos proprietários e investidores. O segundo ponto refere-se às agências de gestão de apartamentos turísticos e como elas se posicionam no capitalismo das plataformas digitais. O texto explica como estes dois aspetos permitem que os proprietários especulem sobre ativos por alguns meses enquanto esperam o ressurgimento do mercado turístico, o que significa um aumento na vulnerabilidade dos inquilinos como nunca visto, a tal ponto que a habitação perde a sua função social.

Palavras-chave: Apartamentos turísticos; capitalismo de plataformas; Covid-19; financeirização da habitação; neoliberalismo

Abstract

To understand how the short-term rental market is responding to the pandemic, we need to analyse how this market has been reorganized in recent years. This text is based on the study we carried out of this market in Portugal within the scope of the SMARTOUR project, and highlights two fundamental points. The first is to grasp the flexibility and control over the property that this market offers to owners and investors. The second point is the rise of short-term rental management agencies and how they position themselves in the current digital platform capitalism. The text explains how these aspects allow property owners to speculate on assets for a few months while waiting for the tourist market to come back, which means an increase of the vulnerability of tenants like never before to the point that housing loses its social function.

Keywords: Short-term rentals; platform capitalism; Covid-19; housing financialisation; neoliberalism

I. Introdução

Sabemos que a pandemia da Covid-19 paralisou a mobilidade nacional e internacional e, com ela, a atividade turística. Neste novo contexto, parece que o negócio dos apartamentos turísticos também parou, que houve uma suposta transferência desse tipo de apartamentos para o mercado residencial, que há agora uma oportunidade de aumento da oferta de casas para arrendamento e que, assim, se irá equilibrar de alguma forma um mercado que viu milhares de casas serem alugadas a turistas. Embora essa oportunidade exista, acredito que na situação atual a maioria dos apartamentos turísticos não vão voltar ao mercado residencial. Mesmo que haja uma transferência de apartamentos turísticos para as plataformas de arrendamento tradicionais como a Idealista, resta saber se essa transferência é para arrendamento estável ou não. É altamente improvável pensar que devido à falta de procura, proprietários e investidores turísticos começarão a fazer contratos de longo prazo. Neste texto, tento explicar as razões desta situação, bem como propor a necessidade de uma profunda mudança no atual domínio da ideologia neoliberal em relação ao mercado da habitação.

II. Reorganização do mercado de apartamentos turísticos

Para entender como o mercado de apartamentos turísticos está a responder à pandemia, é necessário analisar em primeiro lugar a maneira como esse mercado se foi reorganizando nos últimos anos, e, nesse sentido, destacarei dois pontos que me parecem fundamentais. Baseio as minhas observações no estudo que realizámos deste mercado em Portugal no âmbito do projeto SMARTOURii. Realizámos 32 entrevistas em profundidade a agências de gestão de apartamentos turísticos em Lisboa e no Porto e a outros agentes do mercado imobiliário, nomeadamente investidores, imobiliárias e consultores internacionais como a JLL e a CBRE.

Em primeiro lugar, é preciso entender os benefícios que este mercado oferece aos proprietários e investidores. O sucesso dos apartamentos turísticos é explicado não apenas porque a propriedade pode obter mais rentabilidade alugando a turistas do que a residentes permanentes (Barata-Salgueiro, 2017), mas também - e em alguns casos especialmente - devido a uma série de vantagens inerentes à flexibilidade deste mercado. Para proprietários e investidores, a flexibilidade oferecida pelos apartamentos turísticos significa ter controlo sobre a casa. O mercado turístico permite obter lucros com o arrendamento e, ao mesmo tempo, vender o imóvel, utilizá-lo ou sair facilmente do mercado quando necessário. Outra vantagem desse controlo sobre o ativo é que a manutenção do imóvel é constante, dado que é possível verificar semanalmente as condições dos apartamentos; que o turista paga antecipadamente; e que a alta rotatividade de “inquilinos” permite especular constantemente sobre o preço. Por outras palavras, os proprietários veem o mercado de arrendamento tradicional como “demasiado rígido” pelo simples fato de ter inquilinos de longo prazo. Essa é uma visão compartilhada por proprietários locais e investidores internacionais. E, nesse sentido, a flexibilidade dos apartamentos turísticos é um ponto-chave no contexto atual, em que a habitação é vista como um ativo financeiro. Como em muitos outros países, em resposta à crise de 2008 em Portugal foram aprovados vários programas para atrair capital internacional, fornecendo benefícios fiscais ao investimento imobiliário (Montezuma & McGarrigle, 2019). Nestes casos, o principal motivo para investir em habitação é depositar capital e depois decidir sobre o uso a ser feito na casa ou deixá-la simplesmente vazia.

No nosso trabalho (Cocola-Gant & Gago, 2019), verificámos existir consenso sobre a ideia de que colocar a casa no mercado turístico é sempre a melhor opção para esse tipo de investidor, dado que pode usar a casa quando visita o destino ou vendê-la sem inquilinos quando encontra uma boa oportunidade. Deste modo, o mercado de apartamentos turísticos aumenta a possibilidade de especulação sobre a habitação. Este facto representa uma utopia neoliberal - mercado altamente flexível e desregulado - que significa outra reviravolta na vulnerabilidade e insegurança de grupos para os quais o arrendamento é a única opção para aceder à habitação. Embora a flexibilização e a desregulação do mercado de arrendamento tenham sido políticas neoliberais fundamentais para dar mais “garantias” aos proprietários e supostamente para melhorar a eficiência do mercado, o mercado de arrendamento turístico simplesmente ignora qualquer lei de arrendamento, por mais flexível que seja, reforçando o paradigma neoliberal e fortalecendo a assimetria de poder entre proprietário e ocupante. A propriedade deixa de precisar de inquilinos para obter benefícios, a menos que se aceitem contratos de curto prazo. É paradoxal ver - e esse é o principal problema - como nesta utopia neoliberal o mercado imobiliário não funciona da maneira mais eficiente, mas sim que a habitação perde a sua função social.

Voltando ao contexto da pandemia, um benefício central para os proprietários proporcionado pela flexibilidade desse mercado é a possibilidade de se ajustarem os preços e a duração do arrendamento à procura existente. Por exemplo, muitas das agências entrevistadas explicaram que uma estratégia recorrente em Lisboa foi alugar a turistas durante o verão e mudar para o mercado de estudantes internacionais durante o período académico. Aqui, flexibilidade significa mudar para outras formas de arrendamento nos períodos em que essas formas são mais lucrativas, e essa transição para um setor diferente não é muito difícil. A mudança de arrendamento de curto para médio prazo é o que parece estar a acontecer com a atual pandemia. No relatório How Mid-Term Stays May Rescue Short-Term Rentals, a consultoria AirDNA (2020) mostra que mais de 50% das noites reservadas em todo o mundo na Airbnb em abril de 2020 foram para estadias de mais de 2 semanas. Essa consultora também aconselha a oferta de descontos para estadias superiores a um mês, com a intenção de alugar imóveis por alguns meses e, eventualmente, retornar ao mercado de arrendamento turístico. No entanto, a AirDNA só possui dados sobre a atividade da Airbnb, e isso está longe da realidade total do mercado. A situação é mais complexa, como explicarei.

O segundo aspeto a destacar são as agências de gestão de apartamentos turísticos e como elas se posicionam no capitalismo das plataformas digitais (Srnicek, 2017; Shaw, 2018). São empresas que gerem apartamentos de terceiros. A atividade profissionalizou-se e, por isso, tornou-se muito difícil para um proprietário não profissional competir no mercado; portanto, existe uma certa pressão para entregar a gestão dos apartamentos a essas agências. O crescimento destas empresas foi exponencial - no trabalho de campo identificamos 41 em Lisboa - sendo que muitas delas se tornaram multinacionais devido à ajuda financeira fornecida por fundos de investimento (Benhaddou, 2017). Por exemplo, empresas como a Hostmaker, a Sweet Inn e a Guest Ready contam com portfólios de milhares de apartamentos em toda a Europaiii. O ponto importante em relação à situação atual é como a estrutura de gestão dessas agências permite anunciar os apartamentos em diferentes plataformas digitais simultaneamente. Para fazer isso, elas usam programas informáticos de gestão de propriedades, que são conhecidos em inglês como channel manager, e que é uma tecnologia usada há anos pela indústria hoteleira para poder comercializar o mesmo produto on-line (neste caso apartamentos) em diferentes canais como a Airbnb, a Homeaway e a Booking.com. Embora essas sejam as três plataformas mais conhecidas no mercado de apartamentos turísticos, existem empresas como a Rentals United que oferecem programas de gestão que permitem comercializar cada apartamento em mais de 60 plataformasiv. Quando uma reserva é feita numa delas, o programa bloqueia o apartamento nas outras plataformas. A verdade é que esses programas de gestão já incluíam, antes da pandemia, a possibilidade de anunciar os apartamentos em plataformas de arrendamento de médio prazo, como a Soptahome (mínimo de 30 dias de arrendamento) ou a Uniplaces (focada no mercado de estudantes internacionais). A expansão deste tipo de plataforma reforça ainda mais a utopia neoliberal, uma vez que os arrendamentos com contratos estáveis deixam de ser necessários, e, consequentemente, a habitação perde a sua função social. Inspiradas pela Airbnb, todas estas empresas trabalham com pagamento antecipado; sem a possibilidade de visitar o apartamento; geralmente sem contrato de arrendamento; são para estadias de curta ou média duração; e os preços são exorbitantes. A pandemia atual está a acelerar essa permuta dos apartamentos entre diferentes plataformas e a novidade é que as agências de gestão de apartamentos turísticos agora estão a usar os seus channel managers para anunciar propriedades em plataformas que, em teoria, eram para arrendamento de longo prazo. Por exemplo, a Hostmaker incluiu no seu channel manager a Idealista em Espanha e em Portugal, ou empresas similares em outros países, como a Rightmove no Reino Unido, mas os anúncios indicam que o arrendamento é por um curto período. A consequência é que a flexibilidade intrínseca dos apartamentos turísticos, as plataformas digitais e o uso de tecnologias para gestão imobiliária permitem que os proprietários especulem sobre ativos por alguns meses enquanto esperam o ressurgimento do mercado.

III. Reflexões finais

Dada a atual crise no mercado de arrendamento (Pavel, 2020; Slater, 2020), que será reforçada pelas consequências económicas da pandemia, não podemos simplesmente esperar que o mercado se ajuste à procura e que apartamentos turísticos retornem ao mercado residencial. Os rentistas profissionais desejam, por todos os meios, evitar arrendamentos estáveis, de modo que uma suposta transferência de casas para arrendamento de longa duração não acontecerá, ou ocorrerá apenas em poucos casos.

A utopia neoliberal de apartamentos turísticos e plataformas digitais para consumidores que estão de passagem aumentou a vulnerabilidade dos inquilinos como nunca visto, a tal ponto que a habitação perdeu a sua função social. A única maneira de alcançar um equilíbrio entre propriedade e inquilino é com a intervenção da administração pública e, tendo em vista que a “eficiência” desse mercado é unicamente a oportunidade que ele oferece para especular, essa intervenção deve ser imediata. Por outras palavras, embora exista uma oportunidade aberta pela pandemia, é hora de agir.

Por exemplo, em Espanha os arrendamentos de curto e médio prazo estão cobertos pela Lei de Arrendamento Urbano, que permite arrendamentos para “outros usos que não sejam habitação”, com habitação definida como residência habitual ou permanente. Ou seja, a lei permite “arrendamentos sazonais” e desta forma os proprietários evitam fazer contratos permanentes. Esta lei deve ser redefinida imediatamente. Em Portugal a situação é similar porque a lei de arrendamento, embora estipule um mínimo temporal de um ano para os contratos de arrendamento, permite aos proprietários abrir exceções para arrendamentos temporários, o que na prática significa que arrendamentos de um mês são permitidos.

Para evitar estas situações, deveria ser criado um marco legal que garantisse arrendamentos estáveis e que rompesse com a atual assimetria de poder entre proprietário e ocupante. É certo que a iniciativa tomada pelo capitalismo de plataformas evita e invalida os regulamentos existentes, mas diante dessa ofensiva especulativa o Estado não pode simplesmente observar como o mercado se está a reorganizar. Estamos perante uma crise sem precedentes e são necessárias medidas corajosas para recuperar a função social dos milhares de apartamentos turísticos que hoje aguardam com expectativa o retorno a uma suposta normalidade.

Referências bibliográficas

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Barata-Salgueiro, T. (2017). Alojamentos Turísticos em Lisboa [Short-term rentals in Lisbon]. Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales, XXI(578), 1-43. DOI: https://doi.org/10.1344/sn2017.21.18587 [ Links ]

Benhaddou, A. (2017, may). Le Airbnb du luxe, Sweet Inn, lève 20 millions d’euros [The luxury Airbnb, Sweet Inn, raises 20 million euros]. Les Echos. Retrieved from https://business.lesechos.fr/entrepreneurs/financer-sa-croissance/le-airbnb-du-luxe-sweet-inn-leve-20-millions-d-euros-309918.phpLinks ]

Cocola-Gant, A., & Gago, A. (2019). Airbnb, buy-to-let investment and tourism-driven displacement: A case study in Lisbon. Environment and Planning A: Economy and Space, Epub, 0(0), 1-18. DOI: https://doi.org/10.1177/0308518X19869012 [ Links ]

Montezuma, J., & McGarrigle, J. (2019). What motivates international homebuyers? Investor to lifestyle ‘migrants’ in a tourist city. Tourism Geographies, 21(2), 214-234. DOI: https://doi.org/10.1080/14616688.2018.1470196 [ Links ]

Pavel, F. (2020). Em que casa fico? Reflexões acerca do direito à cidade e à habitação em tempo de Covid-19. Finisterra - Revista Portuguesa de Geografia, LV(114), 203-206. DOI: https://doi.org/10.18055/Finis19764 [ Links ]

Shaw, J. (2018). Platform real estate: Theory and practice of new urban real estate markets. Urban Geography. Epub, 0(0), 1-29. DOI: https://doi.org/10.1080/02723638.2018.1524653 [ Links ]

Slater, T. (2020). Rent control and housing justice. Finisterra - Revista Portuguesa de Geografia , LV(114), 59-76. DOI: https://doi.org/10.18055/Finis19772 [ Links ]

Srnicek, N. (2017). Platform Capitalism. Cambridge: Polity Press. [ Links ]

Recebido: 01 de Maio de 2020; Aceito: 01 de Setembro de 2020

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