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Finisterra - Revista Portuguesa de Geografia

Print version ISSN 0430-5027

Finisterra  no.123 Lisboa Aug. 2023  Epub Aug 30, 2023

https://doi.org/10.18055/finis32230 

Recensão

“Polifemo cegador. La geografia y los modelos del mundo”, por Franco Farinelli

Simone Passalacqua1 

1. Instituto de Geografia e Ordenamento do Território (IGOT), Universidade de Lisboa, Rua Branca Edmée Marques, Cidade Universitária 1600-276, Lisboa, Portugal. E-mail: simonep@edu.ulisboa.pt

Farinelli, F.. 2021. Polifemo cegador. La geografía y los modelos del mundo. Instituto de Geografía, Universidad Nacional Autónoma de México,


Polifemo cegador. La geografia y lo modelos del mundo de Franco Farinelli (2021) corresponde à edição em língua castelhana de Geografia. Un’introduzione ai modelli del mondo. Comparado com o original, publicado pela Editora Einaudi (Farinelli, 2003), esta edição apresenta uma exposição de conteúdos ligeiramente diferente, uma vez que, na versão italiana, cada capítulo está distribuído por duas páginas para que cada unidade do livro possa ser lida como se se estivesse a folhear um atlas. Farinelli, através desse layout original, quis dar ainda mais destaque à centralidade assumida no texto pelo atlas, um instrumento de representação geográfica que contribuiu de forma decisiva para a transformação do globo terrestre em espaço.

O título escolhido para a edição agora lançada pelo Instituto de Geografia da Universidad Nacional Autónoma de México centra-se no episódio considerado focal por Farinelli para a conceptualização de modelos geográficos e a formação de modelos espaciais no mundo ocidental: a cegueira de Polifemo por Ulisses e sua tripulação na Odisseia de Homero. Farinelli argumenta que os factos, para serem "o mundo", devem caber no espaço lógico que é idealizado com Ulisses e Polifemo na Odisseia. De facto, o gigante de um olho representa o pensamento ilógico, enquanto Ulisses e a sua tripulação são a força da lógica contra a natureza. O corpo alongado de Polifemo e a estaca de madeira utilizada por Ulisses e os seus homens tornam-se, segundo a leitura de Farinelli, o arquétipo dos eixos, as linhas desenhadas na quadratura da página. Ulisses e os seus homens, dispostos ao longo da estaca em intervalos regulares, representam uma escala viva, uma matriz métrica que distingue uma representação cartográfica de um simples desenho.

É neste episódio, e na sua transfiguração, que Farinelli afirma o papel primordial que o mapa e a geografia desempenharam na formação da modernidade, antecipando a forma de pensar o mundo em termos espaciais, ou seja, como um mapa ou uma carta. Daí a potência do mapa, mais poderoso que outras formas de representação: este detém a capacidade de antecipar o mundo, ou seja, de prefigurar a conformação do próprio mundo, pois é através do mapa que a realidade terrestre é vista e pensada. Nas palavras de Federico Ferretti, escritas no prólogo a esta edição, o mapa segundo Farinelli “não é uma cópia do mundo, mas o mundo é uma cópia do mapa” (Farinelli, 2021, p. 1). É a partir do papel da cartografia e da representação geográfica do mundo, desenvolvida ao longo dos séculos pelos herdeiros de Ulisses, que o autor explora a construção de sucessivos modelos geográficos, até à complexidade do labirinto global contemporâneo.

O texto está dividido em 99 “atlas”, por sua vez organizados em três partes: a pirâmide e o triângulo; a paisagem e o ícone; a cidade, o mapa, o espaço. Na primeira parte, Farinelli concentra-se nos fundamentos matemáticos e geométricos que permitiram que o mapa se tornasse uma síntese do mundo. Enquanto na Grécia Antiga, com o mapa de Anaximandro, a geografia era utilizada para reduzir o mundo à Terra, na Idade Média os mapas eram a cópia do mundo, razão pela qual as representações mais difundidas eram os isolários, coleções de mapas em que todo o globo era dividido em ilhas, ou seja, lugares. Para se passar de um lugar ao espaço, e ver a Terra verdadeiramente transformada num mapa, teríamos de esperar pela redescoberta, no final do século XIV em Florença, da Geografia de Ptolomeu. Uma revolução que, juntamente com a perspetiva - um conceito emprestado da alquimia -, dará nova vida à época das descobertas e das viagens de exploração europeias.

A estaca que Ulisses espetou no olho de Polifemo torna-se, na segunda parte do livro, o dedo que aponta a direção, criando aquela relação indicativa entre o sinal e o objeto que nos permite distinguir o insider, o habitante do lugar, do outsider, aquele que chega ao lugar, como o viajante ou o turista. É através da diferença de pontos de vista entre os dois que Farinelli introduz o conceito de paisagem, tomando como referência os estudos de Carl Ritter e Alexander von Humboldt. O primeiro introduz a ideia de Eindruck, o mundo como uma totalidade harmoniosa de tipo estético-sentimental, extremamente ligado às faculdades psíquicas do sujeito. Uma complexidade que é racionalizada por Humboldt através do Zusammenhang, a totalidade construída numa relação de interdependência mútua de todos os elementos que compõem a paisagem.

No entanto, na paisagem de Humboldt há ainda uma opacidade no fundo representada pela parte do que observamos que não é claramente visível, mas apenas percetível. As ideias românticas de paisagem e vista serão varridas, juntamente com a névoa, pelo advento da revolução industrial e do progresso técnico. Este traz consigo a fotografia, o meio que reduz em dados instantâneos e objetivos aqueles elementos que antes resultavam de um processo fundado subjetivamente. Este foi um passo fundamental para a geografia moderna, porque a partir deste momento o invisível e o inexistente - no sentido daquilo que não pode ser tocado -, tornou-se visível e existente, e, portanto, ao alcance da visão e do toque do geógrafo. Para os geógrafos do século XX, o objeto torna-se aquele que resulta da forma cartográfica, enquanto para Humboldt o objeto ainda era a expressão visível de um processo que tinha de ser reconstruído. Como disse Lefebvre, está-se perante um "preconceito gráfico", que transformou o campo numa aldeia e os edifícios numa cidade, devido à correspondência biunívoca no mapa entre o nome e o objeto: o nome significa a coisa e a coisa é o seu significado.

É na parte final do livro que a análise de Farinelli se concentra na cidade e nas vias de comunicação, voltando a utilizar como referência a estaca utilizada por Ulisses. Desta vez, a linha reta assume as conotações do caminho-de-ferro: uma estrada ideal, sem atritos, com a sua mecânica de movimento e direção uniforme, que cria o próprio conceito de movimento padrão, base do estado moderno. Numa primeira fase, o caminho-de-ferro é o prelúdio do telégrafo e, depois, do desenvolvimento da generalidade dos meios de comunicação, até à moderna tecnologia da informação. Uma evolução técnica que, num curto período da história, levou à reinicialização do espaço como um facto pensado. No seu texto, Farinelli explica como “a maior ou menor distância entre as coisas no mundo já não tem qualquer referência” dado que a maior ou menor proximidade a que se encontram entre si já não significa nada. O resultado é um mundo em que, pela primeira vez, o domínio da visão quase nada devolve do significado dos mecanismos que regulam a reprodução do mundo. Este é um enorme problema para a cultura ocidental, que durante séculos baseou o seu conhecimento na visão. A era moderna fez com que esta última coincidisse com a certeza da representação. O voo da flecha desaparece, apenas o alvo permanece. Já não é possível qualquer relação e ninguém se lembra do arqueiro ou do seu propósito original. Estas são as conotações da cidade das telecomunicações e da informática, o prelúdio da cidade global, que já não responde à lógica do mapa, mas que se assemelha mais a um labirinto, onde não há linhas retas, nem escala, nem centro ou conjuntos de centros, razão pela qual o labirinto não é representável.

Polifemo cegador. La geografia y lo modelos del mundo (Farinelli, 1992) é um livro complexo e de leitura nem sempre fácil, em que o autor tenta delinear os princípios de uma teoria geográfica em apoio à leitura do mundo contemporâneo. Trata-se de um texto articulado com o caminho de investigação iniciado por Farinelli com I segni del mondo. Immagine cartografica e discorso geografico in età moderna (Farinelli, 2009), publicado pela editora La Nuova Italia, em 1992, e continuado com La crisi della ragione cartografica (Farinelli, 2019), publicado pela Einaudi. Nesta série de textos, Farinelli recorda-nos como - muitas vezes sem termos a exata perceção disso - ainda somos ptolemaicos, porque pensamos em termos cartográficos. Na verdade, pensamos que podemos compreender o mundo, ficando parados e usando o nosso olhar como se estivéssemos diante de um mapa. Mas o mundo funda-se no movimento, nos fluxos, que na cidade global estão principalmente relacionados com dinheiro e informação, e onde a dimensão temporal tomou o lugar da dimensão espacial. No seu auge, com a emergência de metrópoles e megacidades, a organização política, social e económica baseada na cidade entrou numa crise porque já não consegue elaborar uma auto-imagem na qual possa reconhecer e controlar o seu próprio desenvolvimento. Atualmente, a cidade global, com as suas características transnacionais, é “irreduzível na topografia e invisível nos seus mecanismos”. O mundo torna-se uma rede de núcleos ligados globalmente, mas desligados localmente, em que a invisibilidade dos fluxos de informação cria comunidades socialmente fragmentadas e culturalmente desiguais.

Franco Farinelli aponta para a redescoberta do labirinto, a única representação que, segundo ele, capta o carácter autêntico do mundo, como uma solução possível para compreender a contemporaneidade. De facto, o labirinto permite-nos manter juntos os dois conceitos de Terra utilizados pelos gregos antigos: Ge (Γή), aquilo que está acima e visível, e Chton (Χθόν), aquilo que está escondido nas profundezas, invisível. Magistral, neste sentido, é a referência que faz ao Moinho de Hamlet (1969), o livro de Giorgio de Santillana e Hertha von Dechend, que tira a sua referência da antiga saga nórdica que moía as rochas e os membros dos seres vivos em areia. É uma metáfora para falar sobre a Terra, que estilhaça a unidade das formações políticas, sociais e culturais e espalha os corpos dos seres humanos de um lado para o outro. Uma sugestão útil para redescobrir quão ilusória é qualquer visão do mundo que não o tente abarcar na sua unicidade.

Referências bibliográficas

Farinelli, F. (2021). Polifemo cegador. La geografía y los modelos del mundo [Blinding Polyphemus. Geography and the models of the world]. Instituto de Geografía, Universidad Nacional Autónoma de México. [ Links ]

Farinelli, F. (2019). La crisi della ragione cartografica [The crisis of cartographic reason]. Einaudi. [ Links ]

Farinelli, F. (2009). I segni del mondo. Immagine cartografica e discorso geografico in età moderna [The signs of the world. Cartographic image and geographical discourse in the modern age]. Academia Universa Press. [ Links ]

Farinelli, F. (2003). Geografia. Un’introduzione ai modelli del mondo [Geography. An introduction to models of the world]. [ Links ]

Farinelli, F. (1992). I segni del mondo. Immagine cartografica e discorso geografico in età moderna [The signs of the world. Cartographic image and geographical discourse in the modern age]. La Nuova Italia. [ Links ]

Recebido: 10 de Julho de 2023; Aceito: 21 de Julho de 2023; Publicado: 16 de Agosto de 2023

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