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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.26 no.1 Braga  2012

 

Da Estrutura Argumental dos Inergativos Causativizados no Português Brasileiro

Christiane Miranda Buthers*, Maria José De Oliveira**

*UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos (Poslin) – Belo Horizonte (MG) – Brasil.
**UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos (Poslin) – Belo Horizonte (MG) – Brasil.

Cmbuthers@yahoo.com.br; zezemutum@yahoo.com.br

 

RESUMO

Nosso objetivo neste trabalho é propor uma estrutura mais articulada no nível vP em construções inergativas causativizadas no Português Brasileiro. Nessas estruturas, dois DPs agentes são licenciados e, portanto, para alocá-los, duas posições de argumento externo têm de ser projetadas, quais sejam Spec-VoiceP (DP agente) e Spec-vP (DP agente afetado). Para legitimar o estatuto agentivo dos dois argumentos em questão, valemo-nos do teste com modificadores adverbiais orientados para agente, tal como proposto por Pylkkänen (2002). Quando submetidas ao teste, as estruturas apresentam uma leitura ambígua, pois os advérbios podem ter escopo sobre os dois agentes. Ainda segundo esta autora, Causeo encontra-se presente em todas as construções causativas, apresentando variabilidade quanto ao tipo de argumento que seleciona, podendo ser (i) raiz, (ii) verbo ou (iii) fase. Assumimos que, em contextos com inergativos causativizados, Causeo seleciona um vP fásico.

Palavras-chave: causativas, inergativos, agente, ambiguidade, vP fásico.

 

ABSTRACT

Our objective in this study is to propose a more articulated vP level in causativized inergative sentences in Brazilian Portuguese. In these structures, two DPs agents are licensed and, therefore, to allocate them, two external argument positions must be designed, namely Spec-VoiceP (DP agent) and Spec-vP (DP affected-agent). To legitimize the status of two agentive arguments in question, we used the test agent-oriented adverbial modifiers, as proposed by Pylkkänen (2002). When subjected to the test, the structures have an ambiguous reading, because adverbs can be scoped on the two agents. Still according to this author, Causeo is present in all causative constructions, with variability in the type of argument that selects and may be (i) root, (ii) verb, or (iii) phase. We assume that, in settings with causativized inergative, Causeo selects a phasic-vP.

Keywords: causatives, inergatives, agent, ambiguity, phasic-vP.

 

0. Introdução

Um fenômeno não trivial nas línguas é a causativização de predicados inergativos. No entanto, observa-se que, no Português Brasileiro (doravante PB), construções com predicados inergativos causativizados têm se tornado cada vez mais frequentes, principalmente em contextos de oralidade, como: “O pai casou as filhas”, “Eu estudei meu filho”, “O professor chegou o aluno pra frente”, “Espera que eu subo você aí”, “A menina pulou o cachorro”, “A mãe almoçou os filhos”, entre outros. Um fato curioso nesses dados é a ocorrência de dois argumentos com traços de agentividade. Em “A menina pulou o cachorro”, por exemplo, tanto “a menina” quanto “o cachorro” podem ser considerados agentes, o que se torna mais evidente quando fazemos uma leitura desenvolvida da construção – “A menina fez o cachorro pular”. Ressalte-se que, se a língua oferece a possibilidade de causativização de determinados inergativos, a tendência é que este fenômeno se estenda, igualmente, a todos os predicados desse tipo.

Frente a esse fenômeno, nossa proposta é apresentar uma estrutura mais articulada no nível vP – Voiceo-Causeo-vo –, a qual possibilitará alocar os dois DPs agentes que são licenciados nesse contexto. A consequência direta dessa análise é que teremos de assumir que, em inergativos causativizados no PB, o tipo de argumento selecionado pelo núcleo Causeo é um vP-fásico (ou seja, um vP que já possui um argumento externo).

Para alcançar tal objetivo, revisitamos algumas propostas relacionadas à emergência do núcleo vo, bem como do seu espraiamento. Nossa análise ancora-se, principalmente, no quadro teórico de Pylkkänen (2002), que postula a existência dos núcleos Causeo e Voiceo em todas as línguas.

Este estudo está organizado da seguinte forma: na seção 1, apresentamos o percurso teórico da categoria v-zinho[1] e seu espraiamento; na seção 2, fazemos uma revisão da proposta de Pylkkänen (2002) sobre os núcleos Voiceo e Causeo; na seção 3, explicitamos nossa proposta de que Causeo seleciona um vP-fásico em construções inergativas causativizadas; e, por fim, na seção 4, encontram-se nossas considerações preliminares.

1. Da categoria v-zinho: definição e “espraiamento”

A categoria v-zinho surgiu na literatura na década de 80, e, a partir de então, vários autores a rotulam de maneira diversificada, no intuito de definir suas propriedades mais relevantes. Nesta seção, revisitamos alguns desses autores a fim de expor, sucintamente, o enfoque dado por cada um.

1.1. Percurso teórico

- Larson (1988) – VP shells:

A proposta de uma estrutura mais articulada surgiu com Larson (1988) para dar conta de certas propriedades das construções com objeto duplo. Essa intuição pode ser formulada como em 1:

(1)

A estrutura em 1 é a representação dos dois níveis do sintagma verbal: o nível vP e o nível VP. Ao nível vP, relaciona-se o evento da causação e a projeção do argumento externo. Essa estrutura bipartida, assumida em trabalhos recentes, é composta de um verbo leve localizado em vº e de um verbo lexical localizado em Vº.

- Hale e Keyser (1993):

Para Hale e Keyser (1993), estão em primeiro plano o movimento do núcleo mais baixo (V, N ou A) e sua adjunção ao verbo matriz.[2] Também está aí a proposta de que todos os verbos, mesmo os inergativos, são constituídos de dois núcleos diferentes (V e N):

(2)

No caso dos verbos transitivos, os dois núcleos que estão em jogo pela proposta dos autores são o verbo mais baixo, que introduz o que é seu argumento interno e projeta o VP; e o verbo matriz, que, coincidindo com o v-zinho, introduz o argumento externo em seu especificador e toma o VP como seu complemento, tal como em 3:

(3)

Para Hale e Keyser (1993), a estrutura argumental do predicado é ela própria uma sintaxe, ou seja, uma sintaxe aplicada a entradas lexicais individuais. Nesse ponto reside a diferença entre a análise desses autores e a de Chomsky (1995), que considera que todas as palavras saem prontas do léxico.

- Chomsky (1995, 1998):

Conforme Chomsky (1995, 1998), v-zinho é um núcleo funcional transitivo que introduz o argumento externo (sujeito) e é ainda responsável pela valoração do traço de Caso correspondente ao argumento interno, como em 4:

(4)

Para o autor, v-zinho funciona como um predicado secundário, sendo responsável adicionalmente pelo papel temático de agente do argumento externo. Nesse sentido, então, em construções passivas e inacusativas, v-zinho está ausente.

Diante das diferentes propriedades de v-zinho apresentadas pelos autores, poderíamos assumir que, de fato, essa categoria se expande, podendo receber, inclusive, rotulações variadas.

1.2 Múltiplos v-zinhos?

A categoria v-zinho é tratada na literatura sob diferentes nomenclaturas e, por vezes, é perceptível a sua dissociação em categorias funcionais distintas.

- Harley (1995, 2002, 2006):

A autora propõe a existência de dois núcleos v-zinhos distintos – v-zinho que não seleciona argumento externo, no caso de construções intransitivas inacusativas:

(5) a.

E v-zinho CAUSA, morfologicamente manifesto ou não, que seleciona um argumento externo:

(5) b.

Em 5b, o v-zinho CAUSA introduz um argumento externo no interior do vP, diferenciando-se do v-zinho que não o faz, como em 5a.

A proposta de Harley é inovadora pelo menos em dois sentidos: (i) a existência de mais de um tipo de v-zinho; (ii) a possibilidade de v-zinho CAUSA selecionar como seu complemento um sintagma raiz. A seleção do sintagma raiz é o que permite a Harley diferenciar as causativas lexicais e as causativas sintáticas (produtivas) do japonês:

(6) a.

Taro-ga tenoura-o kae-s...

Taro-N palm-A return-CAUS

“Taro changed his attitude suddenly” (“Taro mudou sua atitude de repente”)

(6) b.

Taroo-wa Hanako-ni hanasi-o tutae-sase-ta

Taro-T Hanako-D story-A convey-CAUS-PASS

“Taro made Hanako convey a story” (“Taro fez Hanako transmitir uma história”)

- Kratzer (1996):

Na visão de Kratzer, o argumento externo é introduzido por um núcleo separado, Voiceo. Os argumentos externos são gerados na base, em Spec de VoiceP:

(7)

- Pylkkänen (2002):

Conforme Pylkkänen, há dois núcleos funcionais distintos em que se desdobra v-zinho: Voiceo e Causeo. Na seção subsequente, abordamos de maneira mais detalhada a proposta da autora em relação a tais núcleos, uma vez que nossa análise apoia-se neste quadro teórico.

2. Pylkkänen (2002): sobre Voiceo e Causeo

Pylkkänen (2002) alarga a proposta de Kratzer (1996) ao estudar as construções causativas – um fenômeno de alternância da estrutura argumental que está presente, possivelmente, em todas as línguas, como afirma a autora. Ela propõe que o núcleo Voiceosedivide em dois núcleos distintos: Voiceo e Causeo.

2.1 Evidências

As evidências para assumir a cisão de Voiceo e Causeo vêm de causativas do inglês, do japonês e do finlandês. Para Pylkkänen, os dois núcleos estariam presentes em todas as línguas, podendo variar interlinguisticamente quanto à realização deles em núcleos distintos (por exemplo, no japonês e no finlandês) ou fundidos (como no inglês). Quando fundidos, são sintaticamente iguais, porém, semanticamente diferentes.

Segundo a autora, o núcleo Causeo tem um estatuto relacional. Numa análise bieventiva, ele introduz o evento da causação e funciona como uma ponte, ligando este ao evento causado. A combinação disso com a hipótese de que argumentos externos são introduzidos por Voiceo resulta em uma estrutura, conforme a configuração em 8:

(8) a. John melted the ice.

b.

A estrutura acima representa a análise bieventiva adotada por Pylkkänen (2002), na qual o predicadoCauseo primeiro se junta ao VP, descrevendo o evento causado melt the ice “derreter o gelo” e, depois, Voiceo relaciona um agente (John) ao evento introduzido por Causeo.Considerando que o argumento externo não é uma projeção do verbo (Kratzer, 1996), mas, sim, de Voiceo,isso se torna possível.

Segundo Pylkkänen (2002), existem dois tipos de parametrização nas línguas: (i) Cause – Voice-bundling; (ii) Seleção.

Quanto à primeira parametrização, algumas línguas exibem uma estrutura sem adição de argumento externo. Por essa razão, Pylkkänen (2002) postula a possibilidade de Causeo e Voiceo se realizarem em núcleos distintos. Segundo a autora, pelo menos no japonês e no finlandês, há a existência de construções causativas inacusativas, as quais envolvem um evento da causação, mas não um argumento externo; isto é dizer que o núcleo Voiceo não estaria ativo. A estrutura seria como segue:

(9)

Essa divisão poderia ser universal, porém, há línguas que não se realizam sem a projeção de Voiceo. Como argumentação, a autora cita o inglês, que, segundo ela, não exibe construções do tipo das causativas inacusativas do japonês e finlandês. Para dar conta dessa variação, Pylkkänen (2002) propõe a junção de Causeo e Voiceo em línguas nas quais o núcleo Voiceo sempre é ativado; e a separação deles em línguas em que Voiceopode não se realizar. Contudo, essa junção seria somente no nível sintático, permanecendo como núcleos semanticamente distintos.

Pylkkänen (2002) assume que, em inglês, Causeo e Voiceosão fundidos em um núcleo:

(...) while Cause and Voice are separate pieces in the universal inventory of functional heads, they can be grouped together into a morpheme in the lexicon of a particular language. In such language, Voice and Cause form a feature bundle similar to the one formed by Tense and Agreement in languages that not have a split Infl. In the English causative head, for example, the causative relation and the external ?-role are “packaged” into one morpheme and consequently into one syntactic head. In other words, the English Cause is “Voice-bundling.” (Pylkkänen,2002: 99-100).

A fusão de Voiceo e Causeoorigina uma estrutura que pode ser representada como 10:

(10)

O nódulo Voice em 10 possui dois núcleos que são sintaticamente distintos. Nesse sentido, o núcleo Causeo, primeiramente, relaciona o significado causativo ao VP, compondo o evento causado. Em seguida, Voiceo relaciona o argumento externo ao evento da causação mediado por Causeo. Sendo assim, as causativas-zero do inglês diferem das causativas do japonês e do finlandês apenas estruturalmente, visto que, no inglês, o núcleo Voiceo sempre adiciona um argumento externo. Já nas outras duas línguas, não há núcleo Voiceo ativo, portanto não há a adição do argumento externo. No entanto, ambas se assemelham semanticamente, pois possuem significado causativo.

Neste artigo, detemo-nos ao segundo tipo de parametrização,[3] que envolve o tipo de seleção feito por Causeo: raiz, verbo ou fase. A nossa análise prevê que, em português brasileiro, Causeo seleciona um vP do tipo fásico.

- Seleção de Raiz, Verbo e Fase

Seleção de Raiz

O elemento funcionalCauseo toma diretamente uma raiz categorial neutra como seu argumento:

(11)

Nessa estrutura, o núcleo causativo é v-zinho; isto é, apresenta categoria verbal, portanto deriva um verbo de raiz categorial neutra. A estrutura em 11 contém apenas um verbo, e, por conter apenas um verbo, há apenas um ponto na derivação ao qual um modificador verbal pode se ligar, isto é, após a raiz ser amalgamada dentro de um verbo. Mas, então, o constituinte já é um causativo, e o modificador apenas será capaz de modificar o evento da causação. Portanto, apenas um possível escopo é previsto para modificadores de VP, como se vê em 12:

(12) a. Bill awoke grumpily.

b. John awoke Bill grumpily.

(Falso se John não estava “com mau humor”)

Seleção de Verbo

O elemento funcional Causeo toma um VP como seu complemento. A estrutura de tal causativa envolveria dois VPs:

(13)

Nesse tipo de estrutura, um modificador verbal exibe ambiguidade de escopo (isto é, com dois possíveis lugares de ligação) porque seleciona um constituinte que é, no mínimo, um verbo – isto é, VP.

Entretanto, se nós assumimos que agentes são introduzidos por Voiceo e que Voiceo não é tão-somente outro verbo, mas de fato tem um estatuto especial, então, a causativa que seleciona verbo exibe ambiguidade de escopo apenas com modificadores verbais que não são orientados para agente. Quando os modificadores são agentivos, a ambiguidade não ocorre, como apresentam os dados da causativa Bemba[4], em 14 e 15:

(14) Naa-butwiish-ya Mwape ulubilo.

1sg-PAST-run-CAUSE Mwape fast.

a. I made Mwape run quickly.

b. *I quickly made Mwape run.

(Givón, 1976: 343, (120))

(15) Naa-mu-fuund-ishya uku-laanda iciBemba ku-mufulo.

1sg-PAST-him-learn-CAUSE to speak Bemba on-purpose.

a. I, on purpose, made him learn to speak Bemba.

b. *I made him on purpose learn to speak Bemba.

(Givón, 1976: 329, (18))

Seleção de Fase

O elemento funcional Causeopode ainda tomar uma fase como seu complemento:

(16)

Nesse tipo de seleção, o núcleo causativo é capaz de encaixar um argumento externo com o qual modificadores orientados para agente exibem ambiguidade de escopo, como nos dados das línguas Bantu a seguir:

Venda:

(17) Muuhambadzi o-reng-is-a Katonga modoro nga dzangalelo.

Salesman 3sg-PAST-buy-CAUSE-FV Katonga car with enthusiasm.

The salesman made Katonga buy the car eagerly.

Luganda:

(18) Omusomesa ya-wandi-s-a Katonga ne obu nyikivu.

Teacher 3sg-PAST-write-CAUSE-FV Katonga with the dedication.

The teacher made Katonga write with dedication.

Em relação à modificação adverbial, as causativas parametrizam três tipos de seleção:

(i) Aquelas que não exibem ambiguidade de escopo com modificador verbal (raiz);

(ii) Aquelas que exibem ambiguidade de escopo com modificador verbal não orientado para agente (verbo);

(iii) Aquelas que não possuem restrições quanto à modificação verbal (fase).

Na próxima seção, arrolamos dados de construções inergativas causativizadas no PB, a fim de testar nossas hipóteses iniciais, quais sejam: (i) a projeção vP deve ser estendida, derivando uma estrutura mais articulada – Voiceo-Causeo-vo; (ii) o núcleo Causeo seleciona um vP do tipo fásico.

3. Inergativos no PB: evidências a favor de seleção de vP-fásico

Como exposto na introdução deste artigo, a causativização de predicados inergativos não é um fenômeno trivial. Entretanto, apesar de não tão frequente, algumas línguas exibem construções desse tipo e, por isso, há necessidade de investigação. Além disso, contextos com inergativos causativizados engatilham uma mudança estrutural na língua, que deverá adequar-se para possibilitar o devido posicionamento dos DPs com semelhança quanto aos traços de agentividade.

Nas subseções seguintes, apresentamos evidências que comprovam a existência do fenômeno, bem como delineamos nossa proposta teórica de análise dos dados do PB.

3.1 Pressupostos teóricos

- Duarte e Castro (2010)

Para Duarte e Castro (2010), em Tenetehára, o prefixo {mu-} é a realização morfológica do verbo causativo no núcleo da estrutura vP. Esse morfema pode juntar-se a verbos inacusativos, inergativos, descritivos e até mesmo a nomes para formar verbos transitivos.

Interessa-nos, neste contexto, sobretudo, o fenômeno da causativização dos verbos inergativos. Esse tipo de causativização não é recorrente nas línguas: o inglês, por exemplo, não permite o aumento de valência dos inergativos (cf. Hale & Keyser, 1993); e o PB, à primeira vista, também não.

No Tenetehára, a transformação de predicados inergativos em transitivos por meio do morfema causativo {mu-} pode ser vista nos dados a seguir:

(19) a. ae         w-awak

          3              3-acenar

          Ele acena.

b. ae       u-mu-awa-awak                 u-kw

    3          3-CAUS-acenar-acenar       CORR-dedo

[Lit.: “Ele fez o dedo (dele mesmo) acenar”]

[Harrison, (2007); apud Duarte & Castro (2010)]

Segundo os autores, em 19b, o verbo inergativo (intransitivo) tem aumento de valência, tornando-se transitivo, com a inserção do D/NP kwdedo’.

Essa transformação foi viabilizada por meio da inserção do morfema {mu-}, cuja função é de introduzir o evento da causação. A configuração sintática com a realização morfológica do verbo causativo, para os autores, é a que segue:

(20)

Nos termos de Pylkkänen (2002), a configuração seria a seguinte:

(21)

- Silva (2009)

O trabalho de Silva (2009) apresenta dados contendo verbos inergativos causativizados no PB. Essa previsão contraria Hale e Keyser (1993), que defendem a impossibilidade de causativização de inergativos.

Conforme Silva (2009), pelo menos no dialeto mineiro, são recorrentes construções com inergativos causativizados, como os que seguem:

(22) a. Eu almocei os meninos e depois levei eles pra escola.

b. O pai casou a filha com um negociante.

c. O pai estudou os dez filhos.

d. A professora correu o menino pra fora da sala.

e. A diretoria do Atlético estreou Éder.

f. Ela viajou o noivo pro Rio e caiu na gandaia.

As estruturas causativas acima surgem a partir da causativização de verbos inergativos. Nelas, há duas posições argumentais preenchidas por dois DPs carregando a mesma propriedade semântica de [+DESENCADEADOR]:[5] o DP mais alto, que é introduzido pelo verbo leve; e o DP mais baixo, que é introduzido, na base, pelo verbo inergativo.

A estrutura argumental de um verbo inergativo causativizado, consoante a autora, será semelhante à de outros verbos transitivos, pois contará com uma estrutura bipartida do sintagma verbal, como em 23:

(23)

A autora assume que a estrutura argumental dos verbos inergativos causativizados deve ser mais complexa do que normalmente as teorias sobre a estrutura argumental pressupõem. Assim sendo, vP formador do verbo inergativo, que inicialmente tem como núcleo um vo causativo quando participa de estruturas causativas, deve assumir a estrutura de um predicado transitivo, com núcleo Vo de natureza não causativa projetando uma posição de Spec e selecionando um argumento interno, em geral um NP que se incorpora ao núcleo Vo durante a derivação sintática.

3.2 Causeo–Voiceo–vo: da estrutura bipartida em inergativos do PB

Consoante a possibilidade de causativização de inergativos no PB, proporemos, diferentemente de Hale e Keyser (1993) e Silva (2009), que a estrutura desses inergativos deve ser mais articulada.

Nossa análise prevê o espraiamento do núcleo vo, nos moldes de Pylkkänen (2002). Dessa forma, assumimos que, para inergativos causativizados, é necessário lançar mão dos núcleos Voiceo e Causeo. Como essas estruturas apresentam dois DPs agentes, duas posições ficam viabilizadas para alocá-los – uma em Spec de Voice e outra dentro do vP selecionado por Causeo –, como veremos a seguir.

- Seleção de Causeo: vP fásico

Quanto ao tipo de complemento selecionado por Causeo, Pylkkänen (2002) argumenta que as línguas variam em três tipos:

(i) Línguas em que Causeo seleciona raiz (causativas-zero do inglês e causativas lexicais do japonês);

(ii) Línguas em que Causeo seleciona verbo (causativo eshya do Bemba e causativo –tta do finlandês);

(iii) Línguas em que Causeo seleciona fase (causativas do Luganda e Venda).

Para identificar o tipo de seleção de uma língua, a autora propõe testes. Dentre os quais, é o da modificação adverbial que evidencia a seleção de vP fásico em inergativos causativizados no PB. Esse teste sugere o seguinte:

Quando Causeo seleciona um vP-fásico, todos os tipos de modificação adverbial abaixo deste núcleo são possíveis.

Os dados do PB abaixo deixam entrever que modificadores adverbiais orientados para agente têm escopo tanto sobre o evento causado quanto sobre o evento da causação:

(24) a.

(Eu fiz, com má vontade, os meninos almoçarem. / Os meninos almoçaram com má vontade.

b.

(O pai fez, com entusiasmo, a filha se casar. / A filha se casou com entusiasmo.)

c.

(A mãe fez, com dedicação, os dez filhos estudarem. / Os dez filhos estudaram com dedicação.)

d.

(A professora fez, com raiva, os meninos correrem. / Os meninos correram com raiva.)

e.

(Ela fez, com rapidez, o noivo viajar. / O noivo viajou com rapidez.)

Nos dados acima, o modificador adverbial tem dois lugares de ligação possíveis – abaixo ou acima de Causeo – e, por isso, resultando numa leitura ambígua. Essa ambiguidade ocasionada pelos diferentes escopos dos advérbios é que corrobora que, em contextos com inergativos causativizados, há, sim, a presença de dois argumentos agentes.

Além das construções apresentadas no PB, outra que confirma a possibilidade de ocorrência de dois argumentos agentes numa mesma estrutura vem da língua indígena Shanenawa (Pano):

(25) wa-n   fak-n   unu-φ   t-ma-a-ki

Mãe-ERG menino-ERG cobra-ABS matar-CAUS-PAS-DECL

“A mãe fez o menino matar a cobra”.

(Cândido, 2004: 120).

No dado em 25, tanto o DP wa-n ‘mãe’ quanto o DP fak-n ‘menino’ são agentes, haja vista serem marcados morfologicamente com o mesmo Caso inerente[6] – Ergativo. Em consonância com Woolford (2004: 5), “Caso Ergativo é o Caso inerente associado a agentes”.[7]

Dadas as evidências, como já dissemos alhures, uma estrutura mais articulada dá conta de alocar os dois DPs com traços de agentividade:

(26)

A nossa proposta de uma estrutura mais articulada das construções com inergativos causativizados oferece contribuições para o estudo da estrutura argumental. Tais construções representam um problema para a Hipótese de Uniformidade de Atribuição Teta (UTAH).[8] Segundo a UTAH, cada argumento é projetado numa dada posição, na qual o papel temático lhe é atribuído. Considerando que há um argumento adicional não previsto em construções com inergativos, uma posição extra deverá ser disponibilizada para alocar tal argumento que, nesta posição específica, receberá papel temático com traços de agentividade e de afetação. Dessa maneira, uma estrutura mais articulada, como a que estamos propondo, oferece não só as condições para o posicionamento de todos os DPs, mas também para a devida atribuição de papel temático a cada um, resolvendo o problema acima exposto.

Outra contribuição refere-se ao que é tradicionalmente assumido por alguns linguistas quanto ao fenômeno da valência verbal e as construções causativas [Perini (2008), Duarte e Castro (2010), Duarte e Camargos (2010), dentre outros]. Consoante os autores, a causativização de predicados prevê o aumento de valência dos verbos. Contrariamente a essa postura, assumimos que o argumento agente que é acrescido quando da causativização dos predicados não é um argumento do verbo [cf. Kratzer (1996); Pylkkänen (2002)], mas um argumento do evento. Assim sendo, teremos:

(i) o núcleo vo introduz o argumento agente (afetado) ao evento causado;

(ii) o núcleo Causeo introduz o evento da causação;

(iii) o núcleo Voiceo introduz o argumento agente do evento da causação.

Nesse sentido, não há como falar em aumento de valência quando predicados são causativizados.

Uma questão que ainda carece de investigação tem a ver com a valoração do Caso: há aparentemente, na estrutura, dois núcleos potenciais capazes de valorar o traço de Caso Acusativo do DP agente afetado – vo e Voiceo. Seguindo Kratzer (1996), é o núcleo Voiceo o responsável por essa função. Portanto, nossa hipótese é a de que vo é defectivo para Caso. Mas essa é uma questão que permanece em aberto para investigação futura.

4. Conclusões

Diante do fenômeno atestado da causativização de inergativos no PB, propomos, nesse contexto, uma estrutura mais articulada de vP (Voiceo-Causeo-vo), capaz de alocar os dois DPs com traços de agentividade selecionados pelos núcleos vo e Voiceo. Para tanto, ancoramo-nos em Pylkkänen (2002), que propõe, para estruturas causativas, dois núcleos funcionais – Causeo e Voiceo. Ainda segundo a autora, quando modificadores adverbiais possuem escopo tanto sobre o evento causado quanto sobre o evento da causação, resultando numa leitura ambígua, é evidência de que o núcleo Causeo seleciona um vP-fásico. Ao realizar esse teste com dados de inergativos causativizados do PB, comprovamos que há, sim, dois lugares em que os modificadores adverbiais se conectam. Por isso, concluímos que, nessas construções, o PB parametriza a seleção de uma fase.

 

Referências

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Notas

[1] Optamos por usar a nomenclatura “v-zinho” em detrimento de “v-pequeno”, uma vez que “v-zinho” é um termo já relativamente consagrado nos estudos gerativos do português brasileiro.

[2] A adjunção do núcleo mais baixo ao verbo matriz é denominada por Hale e Keyser (1993, 2002) por Conflation. “Conflation pode ser um tipo de incorporação (...), segundo a qual a matriz fonológica de um complemento substitui a matriz vazia do núcleo regente.” No original: “Conflation may be a specific kind of incorporation (...), according to which the phonological matrix of a complement replaces the empty matrix of the governing head.” (Hale & Keyser, 2002: 11).

[3] Não é intenção neste artigo atestar se o PB parametriza Cause ou Voice-bundling. No entanto, a nossa intuição, para pesquisa futura, é de que, em PB, Voiceo realiza-se separadamente de Causeo. Como evidência, citamos uma construção com um verbo inacusativo causativizado: A menina morreu o passarinho. (Bittencourt, 2001).

[4] Algumas das línguas citadas em Pylkkänen pertencem à família bantu. A língua venda é uma das onze línguas oficiais da África do Sul. A língua bemba, também conhecida como chibemba, chiwemba e wemba, é falada principalmente na Zâmbia. A língua luganda é falada na região de Buganda, em Uganda.

[5] Para Cançado, os papéis temáticos são definidos em termos de feixes de propriedades semânticas: desencadeador, afetado, estativo e controle. “Quando uma proposição acarreta para um determinado argumento ter papel no desencadeamento do processo, este será um acarretamento que compõe o seu papel temático, e a esse argumento é associada a propriedade de desencadeador.” (Cançado, 2005: 10).

[6]“Inherent Case is more regular, associated with particular -positions: inherent dative Case with DP goals, and ergative Case with external arguments.” (Woolford, 2006: 1).

[7]Tradução nossa. No original: “(…) ergative Case is the inherent Case associated with agents.” (Woolford, 2006: 5).

[8]“UTAH: Identical thematic relationships between items are represented by identical structural relationships between those items at the level of D-structure.” (Baker, 1988: 46; citado por Baker, 1996). Tradução: “Uniformidade de Atribuição de Papéis Temáticos: relações temáticas idênticas entre itens são representadas por relações estruturais idênticas entre os itens no nível de estrutura profunda.”