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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.26 no.1 Braga  2012

 

Contributos para uma análise semântico-pragmática das concessivas de enunciação no Português europeu contemporâneo

Ana Cristina Macário Lopes*

*CELGA, Universidade de Coimbra.

acmlopes@fl.uc.pt

 

RESUMO

Este trabalho tem como objetivo central contribuir para a caracterização semântica das concessivas de enunciação no Português europeu contemporâneo (doravante PEC), evidenciando a sua especificidade face às concessivas de conteúdo. Partindo da distinção, já avançada por Latos 2009, entre concessivas epistémicas e concessivas ilocutórias, avança-se uma nova proposta de caracterização semântico-pragmática das primeiras, que envolve a negação de um nexo explicativo/justificativo entre as duas proposições conectadas. No âmbito das concessivas ilocutórias, estabelece-se, partindo dos dados empíricos, uma subtipologia entre (i) concessivas ilocutórias que modificam o ato ilocutório realizado na subordinante, explicitando circunstâncias que tipicamente impediriam a sua realização e (ii) concessivas ilocutórias que funcionam como comentários do locutor acerca do conteúdo proposicional ou de fragmentos subproposicionais da frase com que se articulam.

Palavras-chave: concessivas de conteúdo, concessivas epistémicas, concessivas ilocutórias.

 

ABSTRACT

This paper aims to contribute to the semantic characterization of utterance concessive constructions in contemporary European Portuguese (henceforth PEC), highlighting its specificity by contrasting them with content concessive constructions. Assuming the distinction between epistemic concessives and illocutionary concessives (cf. Latos 2009, a.o.), a new proposal for the semantic-pragmatic characterization of the former is put forward: it will be argued that epistemic concessive constructions are equivalent to the negation of a justification relation between the two connected propositions. Concerning the illocutionary concessive constructions, a more fine-grained sub-typology, requested by our empirical data, will be proposed: it involves a distinction between (i) illocutionary concessives that modify the speech act expressed in the main clause, expliciting background circumstances that typically might have prevented its performance, and (ii) illocutionary concessives whose discourse function is to add a speaker’s comment on the propostional content (or part of it) of the main clause.

Keywords: content concessive constructions, epistemic concessive constructions, illocutionary concessive constructions.

 

Introdução

O estudo semântico das construções de subordinação adverbial tem conhecido um forte incremento nos últimos anos, graças, sobretudo, à progressiva tomada de consciência, por parte dos linguistas, de que os modelos que contemplam diferentes domínios de significação discursiva são descritiva e explicativamente mais adequados para dar conta da heterogeneidade e consequente complexidade dessas construções (cf. Sweetser 1990, Hengeveld 1993, Kortmann 1996, Sanders et al. 1992, Couper-Kuhlen & Kortmann 2000, entre outros).[1]

O quadro teórico que preside a esta investigação assume justamente, na esteira de muitas abordagens funcional ou cognitivamente orientadas, que há diferentes domínios pelos quais se distribui a significação construída e expressa no discurso, isto é, na linguagem em uso (cf. Halliday 1970, Schiffrin 1987, Mann & Thompson 1988, entre outros). Trata-se de uma assunção fundamental, familiar para os linguistas que ancoram as suas descrições em dados empíricos (“data-driven approaches”) e não escamoteiam as diversas funções que a linguagem verbal pode assumir ao ser socialmente usada. Como afirmam de forma lapidar Levinson & Evans (2010:2746), “language bridges the mental and the social, the psychological and the historical, the ideational and the behavioural.” Assim, assume-se uma distinção fundamental entre o domínio ideacional ou do conteúdo, tradicionalmente explorado no âmbito das teorias semânticas denotacionais ou referenciais, e o domínio interpessoal da significação, explorado no âmbito das abordagens pragmático-funcionais do discurso. O primeiro domínio mencionado prende-se com os usos da linguagem em que é dominante a função de representação do mundo sócio-físico; o segundo envolve os usos que modelizam raciocínios do falante e plasmam as dimensões sócio-interacionais da comunicação humana.

O presente estudo propõe-se contribuir para uma caracterização das propriedades semântico-pragmáticas das concessivas de enunciação no PEC, uma área que, tanto quanto é do nosso conhecimento, não foi ainda objeto de análise.

Os materiais empíricos utilizados neste trabalho envolvem dados recolhidos no CETEMPúblico (www.linguateca.pt), bem como alguns exemplos construídos.

A estrutura do artigo é a seguinte: na secção 1, faz-se uma breve referência às propriedades semânticas e sintáticas das concessivas de conteúdo, ou concessivas factuais,[2] de modo a poder delimitar-se, por contraste, a especificidade das concessivas de enunciação, objetivo central da secção 2. Nesta secção, partindo da tipologia de Latos 2009, que estabelece um distinção entre concessivas epistémicas e concessivas ilocutórias, aprofunda-se a caracterização semântico-pragmática das concessivas epistémicas e avança-se uma proposta de subtipologia das concessivas ilocutórias, partindo de dados empíricos recolhidos no corpus. Na secção 3, sintetizam-se as conclusões mais relevantes do estudo.

1. Concessivas de conteúdo

Consideram-se concessivas de conteúdo as orações concessivas factuais (cf. Mateus et al. 2003: 718), que exprimem a ocorrência de uma situação não expectável relativamente a outra, dado o nosso conhecimento do mundo ou a nossa perceção do curso normal dos acontecimentos no mundo. Atente-se nos exemplos 1 a 3, construídos, que ilustram paradigmaticamente concessivas deste tipo[3]:

(1) Embora o Rui fume muito, não tem problemas de saúde.

(2) Embora estivesse cheio de trabalho, foi ao cinema.

(3) Embora não tenha estudado nada, o Rui vai fazer o exame.

Para além do conector ‘embora’, também ‘apesar de’ pode ser mobilizado para sinalizar o mesmo nexo semântico, como se atesta em 1a a 3a:

(1a) Apesar de fumar muito, o Rui não tem problemas de saúde.

(2a) O Rui foi ao cinema, apesar de ter muito trabalho.

(3a) Apesar de não ter estudado nada, o Rui vai fazer o exame.

A caracterização semântica do nexo concessivo proposta por König 1991 e König & Siemund 2000 parece-nos a mais adequada e rigorosa. Assim, numa construção ‘embora p, q’, assere-se p e q, e pressupõe-se que p implica normalmente ~q. Em esquema:

Embora p, q

p ® ~q (pressuposição)

p & q (asserção)

Voltando ao exemplo 1, o locutor assere p e q (O Rui fuma muito e não tem problemas de saúde) e pressupõe uma relação de implicação entre fumar muito e ter problemas de saúde.[4] Assim, a construção estabelece um contraste entre o que se pressupõe e o que se verifica/verificou na realidade.[5] Por outro lado, nas concessivas de conteúdo a informação contida em p é dada também como pressuposta, ou seja, informação conhecida que o falante assume como dado a

O facto de p ser assumido pelo falante como informação dada/conhecida explica a impossibilidade de focalização da concessiva, quer por construções de clivagem, quer pela negação de foco, quer ainda por operadores como , como se prova em 1b, 1c e 1d:

(1b)*É embora o Rui fume muito que não tem problemas de saúde.

(1c) *O Rui não tem problemas de saúde embora fume muito (mas sim embora coma muito pouco).

(1d) *O Rui não tem problemas de saúde embora fume muito.

Em Lobo 2003, as concessivas de conteúdo são consideradas orações adverbiais periféricas, dado que respondem negativamente a um conjunto de testes de natureza sintática que permitem caracterizar as adverbiais integradas, nomeadamente os que acabaram de ser explicitados. O seu estatuto periférico relativamente à subordinante é ainda reforçado pelo comportamento das concessivas no que toca aos seguintes parâmetros: não funcionam nunca como resposta a uma interrogativa QU-, não ocorrem em interrogativas e negativas alternativas (1e, 1f) e, quando em posição final, ocorrem após pausa ou quebra entoacional, sinalizada na escrita por vírgula (1g):

(1e) *O Rui não tem problemas de saúde embora fume muito ou embora coma desalmadamente?

(1f) *O Rui não tem problemas embora fume muito, mas embora coma desalmadamente.

(1g) O Rui não tem problemas de saúde, embora fume muito.

Partilham, no entanto, com outras construções de subordinação adverbial, a propriedade de poderem retomar anaforicamente a subordinante, como se ilustra em 4[6]:

(4) O Rui foi ao cinema, embora ISSO lhe tivesse atrasado o trabalho.

Tal como outras construções subordinadas adverbiais que operam no plano do conteúdo, também as construções concessivas podem ser reformuladas ou parafraseadas através de construções paratáticas, como se atesta em 5 e 6:

(5) O Rui foi ao cinema. Fê-lo embora tivesse muito trabalho.

(6) O Rui não tem problemas de saúde. Isso acontece embora ele fume muito.

Tanto em 5 como em 6, o segundo enunciado retoma anaforicamente o primeiro. Esta manipulação linguística permite evidenciar, a meu ver, que o domínio em jogo é, de facto, o domínio do conteúdo, já que a retoma se faz através de um propredicado que denota uma situação do mundo, eventiva ou estativa[7], com um estatuto factual.[8] Note-se que o sujeito deste propredicado é sempre correferente com o da oração principal entretanto autonomizada.

Não parece haver restrições quanto à classe aspectual das predicações expressas nos dois membros da construção concessivas em apreço. Por outro lado, as relações temporais entre as situações descritas podem ser de sobreposição, anterioridade ou posterioridade, em função dos tempos verbais utilizados, das classes aspectuais e do nosso conhecimento do mundo.[9]

Por último, importa referir as afinidades entre as concessivas de conteúdo e as causais. Como sublinham König & Siemund (2000: 355), a negação externa de uma construção causal (~( p porque q)) é equivalente à negação interna de uma construção concessiva (embora p, ~ q). Concretizando, o exemplo (1) é equivalente à negação da relação causal entre os conteúdos proposicionais que a seguir se destacam:

NEG ([O Rui fuma muito] CAUSA [o Rui tem problemas de saúde])

2. Concessivas de enunciação

Segundo a tipologia de Latos 2009, que retoma criticamente a proposta de Crevels 2000, para além das concessivas que operam no domínio do conteúdo (ou domínio representacional, na terminologia da autora) e que negam, como vimos, que a situação descrita na concessiva, obstáculo potencial para a realização da situação representada na oração principal, o seja de facto, é possível discriminar um outro tipo de concessivas, que operam no domínio interpessoal da significação discursiva.[10] Neste último domínio, Latos propõe ainda uma subdivisão entre concessivas epistémicas (cf.7) e concessivas que operam no domínio dos atos de fala (cf. 8)[11]:

(7) Embora sejam prejudicias à saúde, os telemóveis não são dispensáveis.

(8) Podes ajudar-me, embora eu saiba que estás cansado?

Em 7, a concessiva apresenta um argumento que poderia impedir a inferência da conclusão asserida pelo falante na oração subordinante. Noutros termos, o falante assere p e q e pressupõe que ‘normalmente, a partir de p, deveria concluir-se ~q’. Assim, 7 admite uma paráfrase expressa através da seguinte construção paratática:

(7a) Os telemóveis não são dispensáveis; penso e digo isto embora eles sejam prejudiciais à saúde.

Contrariamente ao que acontece com as concessivas de conteúdo (cf. exemplos 5 e 6), a paráfrase da construção concessiva epistémica envolve um verbo sentiendi (penso) e um verbo dicendi (digo).

Em 8, estabelece-se uma relação entre um ato ilocutório e uma circunstância de ‘background’ suscetível de impedir a sua realização. Noutros termos, o falante realiza um determinado ato ilocutório (no caso vertente, um pedido) e articula-o com uma asserção que expressa uma circunstância tendencialmente bloqueadora da realização do ato em apreço. Assim, a construção pressupõe que, ‘normalmente, dado p, o falante não deveria afirmar/perguntar/pedir…q’. Neste sentido, 8 admitiria a paráfrase (8a):

(8a) Podes ajudar-me? Peço-te isto embora saiba que estás cansado.

Como se verifica em 8a, a paráfrase é feita por meio de um verbo performativo que identifica o ato ilocutório relevante (pedir), havendo correferência entre o sujeito da oração adverbial e o sujeito da enunciação. A paráfrase demonstra que a concessiva estabelece uma relação entre a situação descrita em p e o ato discursivo realizado em q. Mais rigorosamente, a concessiva modifica o dizer e não o dito: o ato ilocutório de pedido realiza-se, apesar de se verificar o conteúdo proposicional expresso na subordinada concessiva, potencialmente bloqueador da realização desse mesmo ato.

Apresentada a tipologia de Latos, que ancora basicamente em testes de reformulação coerente das construções em apreço, através de substituições anafóricas, importa agora analisá-la criticamente, no sentido de um aprofundamento. Centremo-nos, num primeiro momento, nas concessivas epistémicas.

Nem sempre é óbvia a distinção entre uma concessiva de conteúdo e uma concessiva epistémica.[12] O enunciado 7, por exemplo, poderia ser interpretado como uma concessiva de conteúdo, já que a asserção das duas proposições p e q (que podem ser extensionalmente interpretadas) cancela a pressuposição segundo a qual a situação descrita na frase subordinada implicaria a não ocorrência da situação descrita na principal. Nesta interpretação, o falante nega que algo que expectavelmente seria um obstáculo para a ocorrência da situação representada na subordinante o seja de facto. No entanto, 7 pode igualmente ser interpretada como uma concessiva epistémica, na esteira de Latos 2009. Aliás, já em König 1994 (apud Latos 2009:100) se defende que há construções concessivas que podem ser usadas com propósitos argumentativos. São as ‘concessivas retóricas’, na terminologia do autor, que correspondem justamente às concessivas epistémicas, na terminologia de Latos. Significa isto que o falante recorre à subordinada concessiva para adiantar um potencial argumento desfavorável à conclusão que se propõe defender, conclusão essa que é asserida na oração principal. Nesta perspetiva, estaríamos perante uma estratégia discursiva através da qual o falante visa demonstrar que todas as possíveis objeções foram consideradas e rejeitadas, reforçando e enfatizando assim a sua conclusão.

Coloca-se, então, a seguinte questão: trata-se apenas de uma questão de ambiguidade pragmática, ou há, de facto, distintos domínios da significação envolvidos nas construções concessivas? Do meu ponto de vista, e embora admitindo a existência de casos ambíguos em contexto zero, julgo que é possível argumentar a favor de uma distinção mais fundamentada entre concessivas de conteúdo e concessivas epistémicas. Para além da evidência recolhida em Crevels 2000[13], parece-me possível convocar outros argumentos. É o que me proponho fazer nas linhas que se seguem.

Desde logo, a oração subordinante, numa construção concessiva com leitura epistémica, admite sempre uma paráfrase com modalização epistémica (creio que q), o que não acontece nas concessivas de conteúdo, dada a sua natureza factual[14]. Por outro lado, como já foi dito, as pressuposições ativadas são distintas num e noutro caso. Com efeito, numa concessiva de conteúdo, a pressuposição será ‘normalmente, p causa/implica q’. Já numa concessiva epistémica, a pressuposição será ‘normalmente, a partir de p concluir-se-ia ~q’, ou seja, p é rejeitado como potencial contra-argumento para q, não sendo de todo pertinente a noção de “causa inoperante” (cf. Flamenco-García 1999) associada à caratcterização das concessivas de conteúdo. Para além disso - e este parece-me ser um argumento decisivo - a negação externa de uma construção com um nexo causal não é equivalente à negação interna de uma construção concessiva com leitura epistémica[15] Senão vejamos, retomando o exemplo 7, aqui reproduzido de novo:

(7) Embora sejam prejudiciais à saúde, os telemóveis não são dispensáveis.

Este enunciado não é semanticamente equivalente à negação de uma relação causal entre p e q, a seguir esquematizada:

NEG ([os telemóveis são prejudiciais à saúde] CAUSA [os telemóveis são dispensáveis])

Do meu ponto de vista, 7 é equivalente à negação externa de um nexo explicativo ou justificativo, como a seguir se esquematiza:

NEG([os telemóveis são prejudiciais à saúde] EXPLICAÇÃO/JUSTIFICAÇÃO [os telemóveis são dispensáveis]).

De forma mais precisa, defendo que numa construção como 7, com leitura epistémica, equivale à negação da validade de um nexo explicativo entre dois conteúdos proposicionais. Concretizando: a validade da conclusão de que os telemóveis são dispensáveis, dado o argumento expresso de que são prejudicias à saúde (articulado com uma premissa genérica implícita segundo a qual ‘normalmente, o que é prejudicial à saúde é dispensável’) é negada pela construção concessiva com leitura epistémica. Assim, 7 parece corresponder efetivamente à negação externa de uma construção explicativa - ‘os telemóveis são dispensáveis, pois são prejudiciais à saúde’-, e não à negação externa de uma construção causal- ‘os telemóveis são dispensáveis porque são prejudiciais à saúde’.

Naturalmente, a argumentação desenvolvida pressupõe uma distinção entre duas relações discursivas, a relação de CAUSA e a relação de EXPLICAÇÃO/JUSTIFICAÇÃO, distinção essa assumida por muitos linguistas (cf., entre outros, Mann & Thompson 1988, Sanders et al 1992, Peres & Mascarenhas 2006, Lopes 2009).[16]Se se aceitar esta análise, faz todo o sentido incluir as concessivas epistémicas nas concessivas de enunciação, uma vez que, através delas, o falante bloqueia um raciocínio inferencial, asserindo uma conclusão contrária à que seria expectável. Ou seja, não se expressa uma relação entre situações do mundo, mas entre argumentos e conclusões, que são sempre estados de conhecimento/crenças do falante.

Um fator que seguramente favorece a interpretação epistémica das concessivas é a sua inserção em discursos mais amplos, de natureza argumentativa. Por outro lado, uma interpretação epistémica é automaticamente ativada em enunciados que facilmente licenciam uma leitura intensional das proposições envolvidas na subordinante, como se atesta nos exemplos seguintes, retirados do corpus:

(9) Acho que a maioria dos clubes está satisfeita com os resultados que saíram de Lisboa, embora saiba que, entre os clubes, existem diversos pontos de vista.

(10) Julgo (…) pertinente, embora o que é pedido seja um comentário acerca da concordância, tratar a questão de um ponto de vista simultaneamente gramatical e pragmático (…)

(11) E, embora eu não partilhe da nova cartilha anti-intelectual que tende a renascer, penso seguramente que alguns dos maiores intelectuais do Ocidente (…) foram responsáveis por enormes embustes intelectuais.

(12) (…) o Plano Estratégico de Lisboa está muito bem feito, embora eu ache tímidos os objetivos fixados para a cidade (…)

(13) (…) embora eu tenha muitas dúvidas sobre o significado preciso desta iniciativa, parece-me positivo que o governo afirme esta posição (…)

Nos exemplos 9 a 11, ocorrem, na subordinante, verbos epistémicos na 1ª pessoa do singular (acho, julgo), que ativam ipso facto uma leitura intensional da proposição que encabeçam. O falante assere q como conclusão pessoal e pressupõe que ‘normalmente, a partir de p, deveria concluir ~q’. Em todos os outros exemplos, a subordinante admite uma paráfrase com explicitação de verbos epistémicos (os mesmos ou outros, como considerar, pensar). Nos exemplos 12 e 13, a ocorrência de predicadores avaliativos (estar muito bem feito, parecer positivo) inscrevem no enunciado um juízo por parte do sujeito da enunciação, o que induz uma leitura intensional da subordinante, e, consequentemente, uma interpretação epistémica da construção: o falante formula uma conclusão de matiz avaliativo, negando que o argumento expresso na subordinante possa constituir um obstáculo para essa conclusão.

Centremo-nos agora nas concessivas ilocutórias, retomando aqui o exemplo 8, adaptado de Latos 2009, e a respetiva paráfrase 8a:

(8) Podes ajudar-me, embora eu saiba que estás cansado?

(8a) Podes ajudar-me? Faço-te este pedido embora saiba que estás cansado.

Como a paráfrase ilustra, a subordinada concessiva modifica o dizer, o ato ilocutório de pedido. O falante realiza um ato ilocutório (indireto) de pedido e sinaliza, através da concessiva, que as circunstâncias em que o ato discursivo está a ser realizado deveriam bloquear a sua realização. Assim, a pressuposição associada a 8 será ‘normalmente, sabendo p, o falante não pediria q’. Por outras palavras, o que seria expectável, dado p, seria a não realização do ato ilocutório a que corresponde a enunciação da oração subordinante. Mas o que se verifica, de facto, é a realização desse ato nas circunstâncias que deveriam/poderiam constituir um obstáculo à sua efetivação.

Vejam-se alguns exemplos retirados do corpus e respetivas paráfrases:

(14) Tenho seguido com interesse a polémica entre realizadores de cinema e Zita Seabra e, (…) embora eu seja uma medíocre espectadora de cinema, venho por este modo louvar a coragem e a frontalidade destes realizadores…

(14a) …Venho por este modo louvar a coragem e a frontalidade destes realizadores; expresso este louvor embora seja uma medíocre espectadora de cinema.

(15) Não ignoremos as nossas realizações, embora eu saiba que necessitamos de mais, melhor e mais rápido (…)

(15a) Não ignoremos as nossas realizações; recomendo-vos isto embora saiba que necessitamos de mais, melhor e mais rápido.

Estes exemplos ilustram claramente as concessivas ilocutórias. Em 14, o locutor realiza, na subordinante, um ato ilocutório expressivo de louvor/congratulação, sinalizando através da construção concessiva que o ato se realiza independentemente da verificação de circunstâncias que poderiam bloqueá-lo. Em 15, o ato realizado na subordinante é um ato diretivo de recomendação ou exortação, e a concessiva, uma vez mais, sinaliza que a realização do ato ocorre em circunstâncias potencialmente bloqueadoras da sua realização.

Até aqui, foram analisados exemplos retirados do corpus que oferecem evidência empírica suscetível de validar a distinção entre concessivas epistémicas e concessivas ilocutórias. Mas o corpus disponibiliza-nos ainda exemplos que não se enquadram facilmente em nenhuma destas classes. Atente-se nos seguintes enunciados:

(16) O mesmo responsável indicou que todos os expatriados estão bem, embora eu não saiba exatamente o que isso significa.

(17) No nosso mundo, o poder e o dinheiro são os senhores, embora eu não os queira para meus senhores.

(18) Muitas estão já consagradas na prática quotidiana, aproveitando palavras já existentes no léxico português, como ficheiro (embora eu até goste mais do brasileiro arquivo) para file…

Em 16, a predicação introduzida por embora funciona como um um comentário que o locutor acrescenta à sua asserção inicial. Embora pode ser substituído por mas (com as alterações requeridas em termos de modo verbal), sem que se altere o valor semântico da construção[17]:

(16a) O mesmo responsável indicou que todos os expatriados estão bem, mas eu não sei exatamente o que isso significa.

Neste sentido, a predicação introduzida por embora não parece modificar o ato ilocutório expresso na subordinante, nos moldes atrás referidos (cf. exemplos 8, 14 e 15), antes configura um novo ato discursivo que se articula sequencialmente com o primeiro, sendo retrospectivamente interpretado como um comentário sobre a predicação anterior (‘todos os expatriados estão bem’), através do qual o locutor se distancia do ponto de vista previamente expresso. Note-se que a frase introduzida por embora, com esta função discursiva, ocorre tipicamente posposta. Em 17, a concessiva funciona igualmente como comentário, através do qual o locutor marca a sua posição, demarcando-se do ponto de vista expresso na asserção prévia. A substituição de embora por mas é igualmente aceitável e, mais uma vez, a função discursiva condiciona a posposição da concessiva. Também aqui parece verificar-se uma articulação sequencial de atos ilocutórios, sendo o segundo interpretado retrospectivamente como comentário. Em ambos os casos, a estrutura concessiva parece marcar um contraste entre o ponto de vista do locutor e um outro. Em 18, a concessiva volta a funcionar como comentário (parentético) do locutor, desta feita intercalado na frase hospedeira. O comentário recai, não sobre a predicação na sua totalidade, mas sobre um dos seus elementos. Mais uma vez, o comentário inscreve no discurso o ponto de vista do falante, desta feita de natureza avaliativa.

Neste tipo de contextos, constata-se que não é ativada a pressuposição subjacente às concessivas ilocutórias previamente analisadas, a saber: ‘normalmente, dado p, o falante não realizaria o ato discursivo concretizado em q’. Estamos, pois, perante uma conexão que se afasta das concessivas ilocutórias prototípicas, que envolvem uma negação de expectativas. Face aos dados, parece relevante propor uma subtipologia mais fina no âmbito das concessivas que envolvem o domínio ilocutório da significação. Assim, destacam-se, por um lado, (i) as concessivas ilocutórias prototípicas, que modificam o ato discursivo realizado na subordinante, explicitando circunstâncias que normalmente bloqueariam a sua realização, e, por outro, (ii) as concessivas que configuram comentários do falante sobre o enunciado (ou parte do enunciado) que as hospeda. Neste último subconjunto, as concessivas podem ocorrer em adjacência à frase com que se articulam ou interpolados na frase hospedeira, com função de comentário que o falante acrescenta à asserção inicial (ou a informação subproposicional aí contida) para dela se distanciar.

Mantemos a designação genérica de concessivas ilocutórias para os dois subtipos discriminados pelo facto de, em ambos os casos, a concessiva operar no domínio ilocutório da significação: no primeiro, como modificadora de ato ilocutório (“speech act modifier”), no segundo, como ato ilocutório subordinado ao ato principal, com o qual mantém uma relação discursiva pragmático-funcional de comentário.

3. Conclusões

Neste trabalho, defendeu-se uma distinção básica entre concessivas que operam no domínio do conteúdo (“they identify (…) an unfavourable circunstance for an event or state” (König 1991:192)) e concessivas de enunciação, que mobilizam o domínio interpessoal da significação discursiva. No âmbito das concessivas de enunciação, defendeu-se, na esteira de Latos 2009, uma subdivisão entre concessivas epistémicas e concessivas ilocutórias. Avançou-se uma proposta de caracterização semântico-pragmática das concessivas epistémicas, evidenciando que este tipo de concessivas equivale à negação externa de um nexo explicativo entre p e q, e não à negação externa de um nexo causal, como acontece nas concessivas de conteúdo. Tanto quanto é do nosso conhecimento, trata-se de um contributo original para o estudo das construções concessivas.

Finalmente, propôs-se uma subtipologia no âmbito das concessivas ilocutórias, partindo dos dados empíricos recolhidos no corpus. Assim, estabeleceu-se uma distinção entre (i) as concessivas ilocutórias prototípicas, que modificam o ato discursivo realizado na subordinante, explicitando as circunstâncias que potencialmente poderiam bloquear a sua realização, e (ii) as concessivas que configuram comentários do falante, podendo esses comentários recair sobre todo o conteúdo proposicional da asserção prévia, com um propósito de distanciamento por parte do locutor, com eventual reconfiguração do rumo argumentativo do discurso, ou ter no seu escopo apenas um segmento subproposicional.

 

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Sweetser, E. (1990) From etymology to pragmatics. Cambridge: Cambridge University Press.         [ Links ]

 

Agradecimentos

Agradeço os comentários dos revisores, que me permitiram precisar alguns aspectos do presente texto.

 

Notas

[1] Esta linha de investigação pode cruzar-se, a meu ver, de forma muito produtiva com propostas surgidas no âmbito da sintaxe, que contemplam diferentes graus de integração das subordinadas adverbiais na frase matriz (cf. Lobo 2003, para o Português).

[2] Não se abordam, neste trabalho, as concessivas impróprias (cf. Flamenco-García 1999), que são construções híbridas, nas quais um nexo concessivo se alia a um nexo condicional (cf. Lopes 1989, Peres et al. 1999, Mateus et al 2003, Costa 2010, e.o.).

[3] Note-se a estreita afinidade semântica entre estas construções e as chamadas construções adversativas: (i) O Rui fuma muito, mas não tem problemas de saúde; (ii) O Rui tinha muito trabalho, mas foi ao cinema. Sobre afinidades e diferenças entre concessivas e adversativas, veja-se Flamenco García 1999.

[4] Como afirmam König & Siemund (2000:353), “ The background assumtion against which the two clauses of a concessive construction are asserted [pà~q] seems to involve some kind of generalization over the two specific situations asserted. (…) All the attempts at capturing the relevant presupposition involve some kind of quantification and generalization of the specific propositions p and q.”

[5] Quando a situação descrita na oração subordinante está localizada na esfera do futuro, como em (3), o locutor expressa uma atitude de certeza relativamente à sua ocorrência.

[6] Cf. Peres e Mascarenhas (2006: 135-136), que avançam o teste a que chamam “subordinating clause anaphora” (SCA) para estabelecer uma diferença entre subordinação livre, que admite SCA, e subordinação presa (frases completivas, relativas, consecutivas e comparativas), que a rejeita.

[7] Em Português, o propredicado fazer retoma anaforicamente predicações eventivas, ao passo que o propredicado acontecer retoma predicações estativas.

[8] Quando a situação descrita na subordinante está localizada na esfera do futuro, como já se assinalou na nota 3, a sua ocorrência é apresentada pelo falante como certa. Ou seja, o falante expressa a sua convicção de que a situação se verificará no futuro.

[9] Cf. Silvano 2010, para uma análise mais aprofundada das classes aspectuais e das relações temporais que podem ocorrer nas concessivas de conteúdo em Português.

[10] Importa salientar que a reflexão Crevels e Latos é largamente tributária das propostas de Lyons 1977 e Hengeveld 1988 sobre distintos tipos semânticos de orações adverbiais: as que denotam estados de coisas ou situações do mundo, as que denotam conteúdos proposicionais (representações mentais, pensamentos, ou, segundo Lyons (1977:445), “entities of the kind that may function as the objects of such so-called propositional attitudes as belief, expectation and judgement”) e as que configuram modificadores ilocutórios, funcionando como atos de fala autónomos.

[11] Exemplos adaptados de Latos 2009. Note-se que em português as concessivas epistémicas e ilocutórias podem ser introduzidas por apesar de, tal como as de conteúdo.

[12] Note-se que, sintaticamente, concessivas epistémicas e de conteúdo se comportam da mesma forma.

[13] Crevels 2000 demonstra de forma convincente, numa perspetiva tipológica que parte de dados extraídos de um némero bastante alargado de línguas, que há uma correlação entre o domínio em que opera a concessive e as propriedades formais da construção, nomeadamente os diferentes conetores que a introduzem e os diferentes tipos de organização sintática (de natureza paratática ou hipotática) que são mobilizados para exprimir a relação concessiva.

[14] Veja-se a inaceitabilidade de (i): *Provavelmente o Rui foi ao cinema, embora tivesse muito trabalho.

[15] Esta equivalência verifica-se nas concessivas de conteúdo, como foi evidenciado por König & Siemund (2000) e já mencionado na secção 1 deste trabalho (p.5).

[16] A relação causal opera ao nível do plano do conteúdo, contribuindo para a coerência semântica do texto: interliga duas situações do mundo, sendo que uma delas é interpretada como causa real de uma outra, ou como razão ou motivo subjacente à realização de uma ação intencional. Nas construções causais, o falante assere ‘p porque q’. Já a relação de justificação opera nos planos epistémico e ilocutório, contribuindo para a coerência pragmático-funcional do texto. Envolve (i) um esquema inferencial defetivo e (ii) duas asserções, uma asserção principal na qual se plasma a conclusão defendida pelo falante, e uma asserção subordinada que avança o argumento (ou a premissa) que sustenta/justifica essa conclusão.

A distinta natureza destas duas relações reflete-se no seu comportamento sintático e prosódico, e é marcada, em algumas línguas, pelo uso de distintos conectores (cf. parce que vs. car, em francês, because vs. for/since, em inglês, weil vs. denn, em alemão). Para uma análise mais aprofundada das construções de justificação, em português, veja-se Lopes 2009.

[17] Note-se que nas concessivas até aqui analisadas tal substituição não é possível ((i)*/??O Rui foi ao cinema, mas tem muito trabalho; (ii) *Podes ajudar-me, mas eu sei que estás cansado?) ou dá origem a enunciados com distintas interpretações ((iii) Os telemóveis não são dispensáveis, mas são prejudiciais à saúde).