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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.26 no.2 Braga  2012

 

De Pandora a Eva: fontes antigas da misoginia ocidental

From Pandora to Eva: ancient sources of Western Misogyny

Maria José Ferreira Lopes*

*Faculdade de Filosofia da Universidade Católica Portuguesa, Braga, Centro de Estudos Filosófico-Humanísticos, Portugal

mlopes@braga.ucp.pt

 

RESUMO

Este texto analisa as origens helénicas da Misoginia, apresentando as principais contribuições para um repertório ideológico e literário que a cultura de Roma acrescentará com um impacto mais próximo. Abordar-se-á depois a forma como, no seio do Cristianismo nascente, a herança judaica, presente na Bíblia, se relaciona com a retórica misógina clássica, e o mito de Pandora é sistematicamente misturado com o de Eva. Observar-se-á como a palavra escrita e a sua exegese foram marcantes na continuidade de ideias e fórmulas, sempre presentes, mas a que a herança cultural dá maior fundamento.[1]

Palavras-chave: Misoginia, Hesíodo, Atenas Clássica, Bíblia, Pandora e Eva, Exegese, Herança Cultural.

 

ABSTRACT

This paper analyses the Hellenic sources of Misogyny, introducing the main contributions to an ideological and literary repertoire to which Roman culture would add with a closer impact. Then, we examine the way, within the budding Christianity, Jewish heritage, present in the Bible, relates with the classical misogynistic rhetoric, and Pandora’s myth is systematically mixed with that of Eve. We will observe how written word and its exegesis contributed decisively towards the continuity of ideas and formulae, always present, but deeply founded on cultural heritage.

Keywords: Misogyny, Hesiod, Classical Athens, Bible, Pandora and Eve, Exegesis, Cultural Heritage.

 

Introdução

A desvalorização e o vitupério da mulher são uma realidade comum a inúmeras civilizações de todos os tempos e lugares. No entanto, a origem da sua “retórica” situa-se no berço da civilização ocidental. Foi Antípatro de Tarso, filósofo estóico, que, já na época helenística, introduziu a palavra μισογυνία para designar o “ódio, desagrado, desconfiança pelas mulheres”, curiosamente numa obra em defesa do casamento (c.150 a. C.). O contexto é a referência à reputação misógina da escrita (“τὴν μισογυνίαν ἐν τῷ γράφειν”) do tragediógrafo Eurípides (480-406 a.C.). [2]

Contudo, nem o aparecimento por escrito de considerações misóginas coincidira com a entrada em cena da literatura grega, nem o seu aparente domínio na época clássica – concretizado socialmente no confinamento ao oikos e no silêncio oficial da mulher – está isento de ambiguidades e excepções.

A atitude misógina foi também objecto de reflexão, nomeadamente quanto às causas. Cerca de cem anos depois do grego Antípatro, o romano Cícero defini-la-á com clareza, nas Tusculanae Disputationes (IV, 25),[3] como “odium mulieris” e classificá-la-á como uma “aegrotatio animi” – uma doença do espírito –, equiparável a outras que poderiam parecer mais graves, como a misantropia e a negação da hospitalidade. Cícero vai mais longe, ao afirmar que, subjacente a estas doenças do espírito humano, está o medo – “metu”– de coisas de que se foge e odeia: “omnes aegrotationes animi ex quodam metu nascuntur earum rerum quas fugiunt et oderunt”.

O grande orador e político romano não seria certamente o primeiro nem o único a pensar desta forma, que afinal resulta da análise racional da questão. No entanto, foi na Grécia Antiga que se estabeleceram, com os alicerces da razão e da incipiente ciência, sob a esplendorosa luz do Mediterrâneo – que durante séculos iluminou mais a beleza do efebo que a do “beau sexe” –, os tópicos fundamentais de um retrato negativo da mulher que gozará de um porvir florescente: criatura frágil, irracional, luxuriosa, instável, perversa e ignorante.

O discurso misógino grego, corroborado e continuado pelos romanos, acabou por ser fortalecido pela auctoritas de sábios de outras origens culturais e religiosas, nomeadamente judaico-cristãs. A aparente hostilidade para com o Paganismo não impediu a nova ideologia dominante de ser profundamente influenciada pela cultura clássica, por vezes a ponto de as tradições se confundirem.

De facto, a história da misoginia e do vitupério da mulher é também a história da herança cultural e, em última instância, da palavra escrita. Domínio secularmente exclusivo do homem, a palavra foi sendo também um inimigo, por acção e até supressão, da mulher, votada ao silêncio tanto por imposição, como por falta de cultura.

Assim, as figuras de Pandora e Eva, além de mitos que simbolizam a misoginia e o peso do verbo no masculino – a primeira, no mundo clássico, a segunda no judaico-cristão –, exemplificam também o peso da herança clássica na vertente judaico-cristã da cultura ocidental.

As filhas de Pandora

Homero, o primeiro autor grego conhecido, terá cristalizado, pelo século VIII a. C., e com o olhar do seu tempo, o fascinante ambiente da Grécia Micénica de quase meio milénio antes. No mundo de Ulisses – onde se combatia dez anos por uma mulher e se errava pelo Mediterrâneo outros dez para regressar aos braços de uma esposa – a misoginia não transparece. Homem e mulher equiparam-se na forma como são joguetes dos caprichos dos deuses, num tempo mítico em que mortais e imortais se misturavam. Ainda assim, a fragilidade e a impotência da mulher face à brutalidade dos heróis – recordem-se os kakà érga de Aquiles (King 1987: 25) –, sedentos de glória e poder e dominados pelas paixões mais abjectas, eram gritantes: recorde-se a causa da ira de Aquiles (Ilíada, I, 180-187), tema da Ilíada, e a angústia de Heitor perante o futuro de Andrómaca (Ilíada, VI 450-465).

Mas Homero usa como ninguém as palavras quer para expor os excessos masculinos (King 1987: 13-28), quer para transformar as suas personagens femininas em verdadeiras deusas: imortaliza-as como símbolos encantadores de diversas virtudes e sentimentos tão profundamente humanos e intemporais que continuam a emocionar-nos três milénios depois.

Na Odisseia, Penélope simboliza, além da beleza, ciência doméstica e fidelidade, a sensatez absoluta e uma inteligência que chega à astúcia, como admite o pérfido Antínoo (II, 115). Na Ilíada, Andrómaca, por exemplo, protagoniza as primeiras representações do afecto e da dor humana mais profunda: (VI, 407-413 e 429-430).

Sempre cortês, Homero nunca critica abertamente as mulheres aparentemente culpadas, como Helena, antes sublinhando a beleza espantosa que a tornava irresistível (os velhos de Tróia, Ilíada III, 155), e a sua dimensão de vítima dos caprichos divinos (Ilíada, III, 426).

É de facto na Odisseia que o poder da mulher se mostra mais ostensivamente: Ulisses está não tanto à mercê da ira de Poseidon, quanto dos caprichos das deusas que o tentam reter; é Atena que o guia e protege, chegando a infundir-lhe beleza para que caia nas boas graças das mulheres; a sua incansável errância resulta do desejo de voltar para junto de Penélope, cuja mortalidade é mais fascinante que as ofertas da magnífica Calipso; junto dos Feácios, na sua última paragem, está à mercê da esplendorosa Nausicaa e da sua poderosa mãe, Aretê, que é quem realmente manda no reino; enfim, é Penélope que, nos seus próprios termos, testa e aceita Ulisses, mesmo depois da brutal exibição de força masculina no massacre dos pretendentes.

O mundo homérico e os seus belos mitos sofrerão numerosas alterações e interpretações na posteridade. Os poetas seguintes, sobretudo os trágicos, elaborarão novas versões e interpretações de acordo com o gosto pessoal e as preocupações do seu tempo; o Helenismo construirá paródias e atomizará as análises, culminando numa teia complexa e confusa, apenas dominada por mitógrafos envolvidos em discussões herméticas. Algumas das personagens homéricas – como Helena – serão sujeitas a juízos pouco favoráveis, mas o seu poder evocativo continua a despertar interpretações novas, provando a inesgotável riqueza do divino aedo. Não deixa entretanto de ser curioso que o Ulisses de Eça de Queirós seja muito mais machista que o original…

Entre o séc. VIII e o VII a. C., ocorreram na sociedade grega mudanças profundas que levaram a um afastamento radical do mundo de Ulisses: deixara de ser possível ir para a guerra por causa de uma mulher. O arauto da mudança, através do poder lapidar da palavra, foi Hesíodo, um camponês da Beócia que recusava a sociedade aristocrática e heróica de Homero e as suas encantadoras e poderosas mulheres.[4] Transparece pela primeira vez o receio masculino face ao fascínio inexorável que elas exercem sobre a força e a razão. O poeta verbaliza este medo algo insconscientemente: além de caracterizar as mulheres como desavergonhadas, manipuladoras, mentirosas, interesseiras e curiosas – zângãos predatórios que atormentam o laborioso e sofredor abelha-homem (Teogonia, 590-595[5]) –, apresenta-as como irresistivelmente sedutoras, pela beleza, ornamentos e palavra, para o indefeso homem (Teogonia, 585-589). E tem uma justificação imbatível: tal poder foi-lhes dado pelos deuses.

A mulher é, como Hesíodo não se cansa de repetir, um belo mal – kalón kakón –,disfarçado de bem (Teogonia, 585; Os trabalhos e os dias, 83); acima de tudo, uma punição, uma praga contagiosa (Os trabalhos e os dias, 753-755), para a qual o homem não está preparado. Pior: a segunda parte do castigo de Zeus é ser igualmente impossível viver sem ela (Teogonia, 602-605).

Mas o impacto das concepções de Hesíodo na posteridade grega e futura será muito mais fundamental do que um retrato negativo, por mais lapidar que fosse: o poeta criou um mito sobre a criação da mulher que a diferenciou do homem, ao denominá-la como outra “estirpe e raça” (Teogonia, 591); e ainda vai mais longe ao subverter mitos antigos, de índole matriarcal, sobre a benfazeja deusa Pandora e atribuir-lhe a responsabilidade pelo sofrimento humano, quer devido à sua própria existência, quer pela curiosidade insaciável que a leva a soltar todos os males contidos no vaso que trazia de presente.

O novo mito, que assinala a dimensão mitopoiética na sua realização máxima e terá repercussões extraordinárias fora do Paganismo, é apresentado em duas versões com ligeiras variações em Os trabalhos e os dias e na Teogonia. O ponto de partida de ambas é a vingança de Zeus, furioso por ter sido enganado por Prometeu, que conseguira arranjar forma de lhe roubar o fogo, de modo a ajudar os humanos. A índole caprichosa e vingativa dos deuses arcaicos é patente, chegando o deus supremo a dar a gargalhada que todos estamos habituados a associar aos vilões de caricatura, quando antecipam o sucesso de um plano maléfico…

Em Os trabalhos e os dias, Zeus prepara uma praga que, paradoxalmente, será vista pelo homem como uma oferta agradável: “dar-lhes-ei um mal com que todos se vão regozijar em seu coração, ao rodear de amor o mal” (57-58). É, portanto, desde o princípio, um engano. Zeus dá ordens precisas a Hefesto, Atena, Afrodite e Hermes: Hefesto forma uma jovem com barro; Atena e outras deusas vestem-na e adornam-na irresistivelmente; Atena dá-lhe instrução em lavores; Afrodite infunde-lhe sedução que causará dor ao homem – “graça em torno da cabeça/ e o desejo irresistível e os cuidados que devoram os membros” (65-66); Hermes transmite-lhe uma natureza desavergonhada e manipuladora – “cínica inteligência e carácter volúvel” (67). O poeta insiste repetidamente no poder da palavra – “mentiras”, “palavras sedutoras”, “insuflou-lhe a voz” (78-79) –, mas aqui um verbo perverso, que brota paradoxalmente da divindade. Realça deste modo a dimensão enganadora da fala, só solucionável pela imposição do silêncio.

No final da construção da nova criatura, é-lhe atribuído o nome de Pandora, explicado pelo facto de todos os deuses terem contribuído com algo: é um dom de todos, embora uma “ruína para os homens” (83). Pandora é oferecida por Hermes ao pouco perspicaz Epimeteu (“o que pensa depois”), que esquece a recomendação do seu previdente irmão Prometeu e aceita, rendido, o belíssimo dom. Com ela vem um outro presente: um pithos – jarro fechado –, que não uma caixa, imprecisão resultante de um erro de tradução de Erasmo com tremendos efeitos na representação verbal e iconográfica do mito. Pandora abre, acto contínuo, a tampa, deixando escapar os males a que a humanidade tinha sido poupada antes da entrada em cena da criatura maléfica e curiosa: fome, doenças, guerra, trabalho árduo, velhice... Restou a esperança, porque Zeus não a deixou sair, o que se presta a várias possibilidades interpretativas.

Na Teogonia o relato é bem mais breve e concentra a construção do instrumento de vingança de Zeus em Hefesto e Atena – a deusa dos olhos brilhantes que, apesar de mulher, saiu diretamente da cabeça do pai, sem qualquer intervenção feminina –, o que não deixa de ser simbólico. Sem nomear a bela criatura, nem relatar o modo como ela chega aos homens, Hesíodo passa para a definição da mulher nos seus traços mais terríveis, e apresenta o segundo castigo com que Zeus puniu o homem: se tentarem fugir à desgraça do casamento, morrerão abandonados e os parentes, antes indisponíveis, ficarão com os bens. Assim, a mulher é um duplo castigo, porque se sofre com ela e sem ela.

A influência de Hesíodo na Grécia Clássica foi avassaladora devido ao seu prestígio, e condicionou quer a imagem e direitos da mulher, quer os costumes do casamento.

Foi amplamente aceite a ideia da necessidade de controlar totalmente a mulher, impondo-lhe o recolhimento e o silêncio, para não poder exercer os seus dotes de sedutora quer pela aparência, quer pela palavra; e tirando-lhe qualquer direito civil, para que não tivesse capacidade económica e de intervenção pública: era controlada por um tutor, o kyrios. Todavia, continua a ser ela a transmitir a linhagem dos cidadãos.

Na senda do kalón kakón de Hesíodo, começam a surgir escritos lapidares que vão constituir o repertório misógino que a posteridade glosará até à caricatura, como é norma numa cultura centrada na palavra escrita. O primeiro é o obscuro Semónides de Amorgos, poeta jâmbico que viveu entre Hesíodo e o dealbar da época clássica. Dos fragmentos da sua obra destaca-se o famoso Jambo das Mulheres. Enquadrada pelo ambiente popular e jocoso típico da poesia jâmbica, a obra é uma lista de tipos – e portanto defeitos – femininos associados a um animal ou elemento específico. São eles: porca, raposa, cadela, terra, mar, burra, gata, égua, macaca, abelha. Veja-se o primeiro:

Diferente o deus fez o carácter da mulher,

no início. Uma fê-la da porca de longa cerdas;

em sua casa tudo está repleto de imundice,

em desordem ou a rolar pelo chão.

Ela própria, suja, com roupas não lavadas, 5

sentada no meio do esterco, engorda. (Brasete 2005, vv.1-5)

Apesar de tudo, aparece um animal bom – a abelha, símbolo masculino para Hesíodo –, correspondendo a um tipo de mulher positivo.

Nos finais do Período Arcaico, inicia-se uma transformação na cultura grega com efeitos extraordinários: o pensamento mítico é substituído pelo domínio da Razão; e a primazia de Homero como fonte de todo o conhecimento foi ocupada pela Filosofia, enorme guarda-chuva que abrangia todas as áreas do saber, incluindo a balbuciante ciência. O homem é o centro das preocupações intelectuais e morais; a mulher é penalizada pela sua diferença em relação à nova medida de todas as coisas. Mais ainda: foi também afastada da posição central que ocupara como símbolo de beleza e causa de paixão. O “amor grego” tornara-se a suprema forma de afecto. A concepção da filosofia do séc. V segundo a qual a contemplação da beleza masculina levava a emoções sublimes subalternizou ainda mais a mulher.

A extraordinária grandeza dos filósofos gregos teve efeitos profundos, e as suas ideias sobre a mulher, agora fundadas numa alegada análise científica, ficarão gravadas por milénios. É o caso das famosas afirmações de Aristóteles sobre a inferioridade da mulher em obras como o De Generatione Animalium ou Historia Animalium – títulos latinos que dizem tudo quanto ao impacto futuro.

No âmbito literário, a preocupação pelo homem e suas circunstâncias afirmou a Tragédia como a expressão artística fundamental. Embora as mulheres estivessem proibidas de representar, muitas das personagens principais eram femininas – precisamente as encantadoras e infelizes heroínas homéricas, agora analisadas noutros pontos de vista. Na realidade, a tragédia expõe as perspectivas morais sobre a mulher, nomeadamente mostrando os excessos que poderiam ocorrer se não houvesse um forte controlo legal e social sobre ela.

Na Grécia Clássica, e sobretudo em Atenas, [6] a mulher era definida por oposição ao homem, sobretudo em três dicotomias: escravidão vs. liberdade; incontinência vs. autocontrolo; apetites e emoções corporais vs. racionalidade. Consequentemente, ele era livre e cidadão, enquanto ela era escrava das paixões e não usufruía de quaisquer direitos políticos, sendo os direitos legais e económicos reduzidos.

Na tragédia clássica, segundo Roger Just, os perigos femininos são enquadrados em dois apartados fundamentais: o Inimigo Interno – “the enemy within” –, manifesto na ferocidade vingativa que resulta da insegurança e da impotência (Eurípides, Íon); passando pela excessiva expressão da dor e da fraqueza que ameaçam a cidade (Ésquilo, Sete contra Tebas); até à obediência a leis divinas que leva à desobediência às leis humanas e à desgraça (Sófocles, Antígona). E a Selvagem Externa – “the savage without”–: das figuras míticas monstruosas, normalmente femininas, às potnia theron (bruxas da Odisseia) de matriz mediterrânica; passando pela loucura bárbara (Eurípides, Medeia), ébria (Eurípedes, Bacantes, Ésquilo, Ménades) e amorosa (Eurípides, Hipólito, Ésquilo, Agamémnon).

Fora dos dramas extremos e catárticos da skene, que aconselhavam o controlo absoluto, na vida diária, a mulher acabava por assumir um papel e um poder algo consideráveis, patentes em figuras como Aspásia e no relato de Iscómaco a Sócrates no Oikonómicos de Xenofonte.[7] Porém, mesmo neste caso, mantém-se a perspectiva paternalista: Iscómaco, na linha do uso de inspiração hesiódica, casara, aos trinta anos, com uma jovem de cerca de quinze, saída directamente do gineceu materno; depois, “instruíra-a” durante alguns anos até a deixar capaz de, na prática, tomar conta da administração da res familiaris, de modo a que ele se dedicasse completamente à vida política. Será com este mesmo paternalismo que, quinhentos anos mais tarde, os contemporâneos de Trajano apreciarão o seu casamento com a muito mais jovem Plotina.[8]

Iscómaco descaíra-se, vítima da técnica socrática, pois a opinião oficial dos homens do seu tempo está patente nas duras recomendações de Péricles – o mesmo que nunca saía de casa sem abraçar Aspásia (Plutarque, Vie de Périclès, 24, 2-12.) – às viúvas da Guerra do Peloponeso, pelo menos na versão do aristocrático e conservador Tucídides (2, 45, 2).

Contudo, há estudiosos que afirmam a existência, precisamente à volta e na senda de Sócrates,[9] de um movimento se não feminista, pelo menos defensor de uma certa igualdade de capacidades entre os sexos. Esta perspectiva terá sido sobretudo defendida por discípulos menos célebres de Sócrates, como Antístenes, fundador da escola Cínica, e Ésquines de Sfetos,[10] grandes admiradores de Aspásia. O par filosófico modelo é constituído por Crates de Tebas e Hipárquia, pregadores itinerantes da escola (Flacelière 1971: 700-701).

Mesmo Aristóteles, alguns anos mais tarde, acabará por valorizar o casamento como philia, encetando um processo que só no tempo de Plutarco atingirá o seu termo, equiparando-se ao eros. Nas artes plásticas, com Praxíteles (395 – 330), a beleza do corpo feminino recomeça a ombrear com o masculino, num processo que só no tempo de Plutarco atingirá o seu termo.

No âmbito da tragédia, as palavras de Medeia e do coro das Coríntias na Medeia de Eurípides também assinalam algo – quanto mais não seja, e à semelhança das famosas obras aristofânicas (Lisístrata e Assembleia das Mulheres), que a condição feminina era um tema relevante. Medeia, se bem que de credibilidade diminuída por ser bárbara e bruxa e estar fora de si como uma leoa[11] – uma selvagem externa –, ousou fazer um retrato objectivo da condição da mulher:

De tudo o que tem vida e pensamento, somos nós, mulheres, as criaturas mais miseráveis. Em primeiro lugar necessitamos, gastando mais dinheiro do que ele merece, comprar um marido e conceder um dono ao nosso corpo – mal ainda mais forte do que o outro. […] Quando a vida doméstica se torna pesada a um marido, ele vai procurar lá fora alívio para o seu coração e volta-se para um amigo ou camarada da sua idade. Nós, porém, não podemos ter olhos senão para um único ser. Dizem que vivemos uma existência sem perigos, dentro de casa, ao passo que eles combatem com a lança. Pobre raciocínio! Antes queria lutar três vezes debaixo do broquel que dar à luz uma única vez. (Eurípides s/d: p. 23)

Embora um pouco mais à frente assuma que as mulheres eram por natureza incapazes de praticar o bem,[12] as Coríntias imediatamente lhe apontam uma luz ao fundo do túnel da condição feminina:

Os homens têm agora desígnios pérfidos, já não é duradoira a fé jurada aos deuses. O nosso comportamento terá bom renome por um desvio de opinião. Virá um dia em que será honrado o sexo feminino: sobre as mulheres já não pesará uma fama injuriosa. (Eurípides s/d: Estrofe I, p. 30)

O progresso na condição feminina que atravessa o Helenismo e atinge o auge no séc. II da nossa era, é patente nos Moralia de Plutarco, nomeadamente nas Condutas meritórias das mulheres, um repertório de heroínas enquadráveis num continuum encetado por Homero (Plutarque 2002: pp. 10 e passim).

Pelo tema, esta antologia tem traços de elogio fúnebre e de tratado filosófico. De facto, a obra é justificada como uma consolação de uma amiga, Clea, pela morte de outra, Leontis: “se consoler à l’aide de la philosophie […] et surtout louer les qualités de la défunte”, inspirando-se nas inscrições masculinas gregas, de acordo com o costume romano da laudatio funebris. A conversa de Plutarco e Clea, partindo do elogio das qualidades da falecida, desemboca na “idée que le sexe féminin, du point de vue de l’άρετή, n’a rien à envier aux hommes”. De facto, numa civilização “imbuée de la supériorité masculine”, que melhor forma de “louer une femme que de l’égaler aux hommes?” (Plutarque 2002: pp. 10 e passim).

Plutarco voltará (nas Histórias e em outras obras, como o Amatorius) ao tema da igualdade dos sexos no que diz respeito aos méritos. A άρετή é uma designação genérica que inclui uma série de virtudes: σύνεσις – inteligência ao serviço do bem; φρόνημα – nobreza de sentimentos; άνδρεϊος – coragem e valentia; φρόνησις – prudência; δίκαιος – sentido da justiça; φίλανδρος – fidelidade no amor; μεγαλόφρων – grandeza de ânimo; φιλάνθροπος – piedade/bondade.

Todavia, este “feminismo” do moralista de Queroneia continua muito fiel à concepção tradicional dos gregos sobre o que deveria ser uma mulher honesta: a reserva, a fidelidade e a bondade continuam a ser as suas virtudes cardeais. A mulher pode apresentar virtudes masculinas como o sangue-frio, a inteligência (política, inclusive), mas só em circunstâncias excepcionais, pois são apanágio do homem. A atitude ideal da mulher, a mais conveniente “à sua natureza” é sobretudo mostrar modéstia e “apagamento”.

As atitudes misóginas persistiram ao longo da época helenística, glosando alguns dos tópicos dos poetas arcaicos. Pense-se na famosa citação de Menandro que coloca a mulher, o mar e o fogo no mesmo nível como três males: "ΘΆΛΑΣΣΑ ΚΑΙ ΠΫΡ ΚΑΙ ΓΥΝΉ ΤΡΊΤΟΝ ΚΑΚΌΝ" (Fragmenta Comicorum Graecorum, t. iv, p. 340). Mas a manifestação máxima, pela quase abjecção da personagem e sobretudo pelo enorme impacto na Idade Média e no Renascimento, ocorrerá no tempo de Plutarco: são os Oxímoros escritos pelo filósofo silencioso (Taciturnus) Secundus. Vejam-se algumas definições de mulher: “uma depravação que controla o corpo”; “uma leoa na vossa cama”; “uma víbora vestida”; “um castigo quotidiano”; “um entrave à tranquilidade”; “o saque da nossa vida”; “uma guerra muito dispendiosa”; “uma besta maldosa”; “um instrumento para a procriação”; “um mal necessário” (Philonenko 1991: 377-378). Acima de todas as frases do Taciturnus reinará na posteridade o notório “πασα γυνή πόρνη” (Philonenko 1991: 374), que Jean de Meung fará ecoar na Idade Média Ocidental.[13]

Pandora Matrona

A forma como os romanos dos primeiros tempos definiam e enquadravam a mulher na sociedade assemelhava-se em muito à dos atenienses. Os maiores – antepassados – consideravam que, em paralelo com a fragilidade física, a mulher sofria de infirmitas consili – fragilidade de espírito –, pelo que precisava de se submeter a um tutor (Cícero, Pro Murena XII, 27). Catão, o Censor, representante máximo das tendências conservadoras do mos maiorum – costumes dos antepassados –, expressou-se com uma clareza brutal no seu discurso no âmbito do processo de revogação da Lex Oppia (195 a. C.),[14] reproduzido e, naturalmente, retocado, por Tito Lívio: a mulher é “indomitum animal, impotens natura”– animal indomável, natureza descontrolada[15] –que era capaz de tudo, pelo que tinha de ser dominado – “frenari” (Ab Vrbe condita, XXXIV, 2, 12).

O imperium viri – poder do varão –, quer do pai, quer sobretudo do marido, permitiu, pelo menos até ao século I a. C., um controlo de vida e morte sobre a mulher. Como em Atenas, era a cidadã que transmitia o direito de cidadão, mas gozava de uma posição mais elevada graças ao estatuto de matrona, que conferia sanctitas. Por outro lado, a romana não estava confinada ao lar e, mesmo com a imposição de um tutor, os seus direitos económicos eram bem mais amplos que em Atenas.

Sendo a civilização romana eminentemente moral, e apesar de a beleza ser muito importante, instituiu-se um sistema de virtudes correspondentes ao ideal feminino da mulher de estatuto mais elevado, a matrona: grauitas (compostura e autoridade) e comitas (afabilidade), industria (donde o “lanam fecit” – fiou lã – repetido nos epitáfios), parsimonia, sobrietas são acompanhadas pela hierática sanctitas (inviolabilidade), mas as mais relevantes eram as pudicitia/castitas (modéstia/castidade) (Ratti 1996: pp. 119-124), como não se cansam de assinalar autores como Juvenal e Séneca.

Apesar das numerosas demonstrações de empenho pelo bem comum, narradas em tom solene por Tito Lívio, e exemplificadas pela dádiva das jóias para ajudar na luta contra Aníbal – como recordou um dos tribunos proponentes da revogação de Lex Oppia –, a marca negativa persistia, reflectindo-se nas palavras. Desde logo, as que designam a mulher são também imbuídas de um tom pejorativo: mulier (além do correspondente adjectivo muliebris e do advérbio muliebriter) e femina são vistas como sinónimos de fraqueza física, emotividade excessiva e ligeireza nas opiniões. Mais marcante ainda foi o facto de os autores mais conceituados da cultura latina reflectirem este parecer em personagens, retratos e sobretudo frases que se tornaram antológicas, como “Mulier es, audacter iuras” (Plauto, Amphytruo, II, 2, 206), “varium et mutabile semper femina” (Virgílio, Aeneis, IV, 569-570), e o adynaton aplicado por Juvenal à mulher perfeita, destinado a ser repetido na posteridade: “rara auis in terris nigroque simillima cycno” – uma ave rara na terra, muito semelhante a um cisne negro (que os antigos pensavam não existir) (Sátira VI, 165).

A revogação da Lex Oppia foi um momento fundamental na progressiva libertação da mulher romana em relação aos costumes dos maiores: demonstrou não apenas a surpreendente capacidade de mobilização cívica das matronas, como o quanto uma parte da elite romana se preocupava com a condição delas. Por outro lado, acontece no início da crise de crescimento provocada pela transformação de Roma numa potência mundial, que terá o seu auge no século I a. C. Com a derrota dos Cartagineses, último rival na hegemonia do Mediterrâneo, desapareceu, por bastante tempo, uma das principais causas da vigência das virtudes tradicionais: a guerra ad portas – “proximus urbi / Hannibal et stantes Collina turre mariti” (Aníbal às portas de Roma e os maridos de pé na torre Colina), dirá Juvenal três séculos depois. A outra grande causa prende-se com as riquezas imensas e as ideias novas – como o Epicurismo – que as conquistas da Grécia e do Oriente helenizado trouxeram: “luxuria incubuit uictumque ulciscitur orbem” (a luxúria assaltou-nos e vingou o mundo vencido), concluirá o moralista (Sátira VI, vv.287-293).

A alta sociedade da Roma do século I a. C. é povoada de mulheres que garantiram a sua imortalidade graças à literatura latina e nos dias de hoje nos entram em casa através da televisão. Os seus retratos, feitos muitas vezes por rivais políticos ou amantes despeitados, transmitem uma imagem algo libertina: escandalosas como Clódia, musa de Catulo; individualistas como Terência, mulher de Cícero; conspiradoras como Semprónia; aventureiras enfurecidas como Fúlvia, inimiga implacável do grande orador; enfim, obrigadas a parecer honestas como a segunda mulher de César, e sistematicamente caluniadas como a sua amante estrangeira Cleópatra. Parecia que, ao mesmo tempo que o imperium viri, as virtudes traçadas pelo mos maiorum estavam em grande parte perdidas. No entanto, encontram-se também, e precisamente na família de Augusto – que seria assombrada pela estrepitosa queda da sua única filha, Júlia, que arrastou ao exílio Ovídio, o doctor amoris –, matronas ricas e influentes mas tradicionais nos costumes: Aurélia, mãe de César; a imperatriz Lívia Drusila; Antónia, filha do notório Marco António; Octávia, mulher deste e irmã de Augusto. As virtudes da matrona, associadas cada vez mais ao pensamento estóico e depois ao Cristianismo, persistirão ao longo dos últimos séculos do Império do Ocidente.

Algo paradoxalmente, a evolução no sentido do aumento dos direitos cívicos da mulher, que atingirá o auge no século II, vai resultar do esforço de restauração das virtudes tradicionais da família romana, ameaçada quer pela liberdade de costumes, quer pela baixa natalidade. É disso exemplo o direito das mães de três filhos a deixarem de ter tutor (sui iuris), instituído por Augusto. Na época áurea do império, durante a dinastia dos Antoninos, as romanas livres gozavam de direitos civis mais amplos que as gregas. Apesar de nunca terem obtido prerrogativas políticas,[16] o direito de possuírem e controlarem bens avultados, depois de legalmente contornada a posição do tutor, permitiu a numerosas mulheres, sobretudo das franjas mais elevadas da sociedade, uma condição privilegiada – situação nada pacífica para alguns, como Juvenal atesta (Sátira VI, v. 457), e que acarretou perseguições.

Mas também ocorreu uma evolução num nível mais relacional: como destaca Paul Veyne, a partir do século II, nos círculos mais elevados do Paganismo, espicaçados pelas críticas cristãs à suposta depravação típica do Paganismo, verifica-se a criação do conceito de casal, com uma posição de igualdade partilhada por ambos os membros (Veyne 1978: pp. 37-38). Essa nova dimensão do casamento é visível numa inscrição em verso, datada de 384, dedicada por Vettius Agorius Praetextatus a Aconia Fabia Paulina, sua esposa durante quarenta anos, expressa: “Paulina, companheira do meu coração, fonte de modéstia, o laço de castidade e amor puro e confiança nascido no céu, a quem confiei os segredos escondidos no minha mente; presente dos deuses, que unem o leito marital com laços de amizade e pudor” (CIL, vol. VI, nº. 1,779).[17]

Ainda assim, os estereótipos misóginos persistem. É de facto nos primeiros séculos do Império Romano que encontramos as vozes mais impactantes transmitidas à Idade Média, que as estimou e adaptou com quase devoção à sua forma mentis, e redescobertas pelo Renascimento. Destacam-se, pela sua influência na posteridade, Ovídio, Séneca, o Estóico, e Juvenal.

Ovídio, que nos seus tratados sobre o amor frivoliza a mulher e a apresenta como falsa e enganadora, sublinha, de algum modo na senda que depois Secundus Taciturnus seguirá, que todas estão disponíveis para serem seduzidas, bastando encontrar a estratégia adequada. Paralelamente, estabelece o direito do homem a seduzir impunemente, sem quaisquer entraves morais:

Prima tuae menti ueniat fiducia, cunctas

Posse capi; capies, tu modo tende plagas (Ars amandi, 1,269-271)

(…)Ludite, si sapitis, solas impune puellas:

Hac minus est una fraude tuenda fides.

Fallite fallentes: ex magna parte profanum (Ars amandi,1, 643-646)

Sunt genus: in laqueos quos posuere, cadant.[18]

A Consolatio ad Heluiam Matrem de Séneca sintetiza as extraordinárias qualidades de Hélvia, amiga pessoal a quem o filósofo queria consolar, com frases como: “non potest muliebris excusatio contingere ei a qua omnia muliebra uitia afuerunt” – “a desculpa de ser mulher não pode atingir uma pessoa de quem todas as falhas femininas estão ausentes” (16, 2); e “Non te maximum saeculi malum, inpudicitia, in numerum plurium adduxit” – “O impudor, o maior mal do nosso tempo, não te pôde incluir na classe mais numerosa das mulheres” (16,3) (tradução minha).

Mas o texto mais marcante, quer pela misoginia tão reaccionária como inexorável, quer pela influência dos seus versos lapidares,[19] situa-se paradoxalmente no tempo do imperador Adriano: é a já citada Sátira VI de Juvenal.

Juvenal ataca furiosamente todos os tipos de mulher casada, mais ou menos livres, do seu tempo, tipificadas através dos defeitos que o poeta considera relevantes: a luxúria, que permite às mulheres cometerem imensos crimes, e leva à entronização dos gladiadores como ídolos supremos; a mania dos tribunais; a crueldade histérica e gratuita; o culto absoluto da beleza, que conduz tanto ao luxo excessivo como a práticas anticoncepcionais; o pedantismo das cultas e o uso obsessivo do grego; o exercício das armas, sobretudo por trazer vergonha ao marido, etc. Acima de todos os defeitos – com a excepção da conspiração para matar o marido… –, está a riqueza, pois graças a ela “nil non permittit mulier sibi, turpe putat nil” – “não há nada que ela não se permita, nada que considere torpe” (VI, 457) (tradução minha).

Se este desabafo é compreensível por revelar a irritação de um Catão, o Censor, do século II perante o processo que levou muitas mulheres a libertarem-se do controlo dos tutores e a usufruir da riqueza e do poder que esta confere, não deixa de ser surpreendente que, como já foi acima referido, o poeta também critique as mulheres que não têm nenhum dos defeitos mencionados ao longo da sátira: as Cornélias[20], mulheres belas, cultas, férteis e nobres, mas por isso mesmo altivas, que inferiorizam o marido; e as absolutamente perfeitas, as tais aves rarae, insuportáveis pela sua superioridade – “quis feret uxorem cui constant omnia?” (VI, 166). Juvenal afigura-se, portanto, como um exemplo canónico da definição dada por Cícero da aegrotatio animi da misoginia: vê a mulher como uma ameaça, a quem odeia e de quem foge.

As filhas de Eva e Pandora

Falar da mulher no Cristianismo é falar de Eva e da exegese minuciosa das poucas linhas dos capítulos 2 e 3 do Génesis em que a mãe da humanidade aparece. É a Virgem Maria que de algum modo redime e compensa o alegado crime de Eva. Todavia, tal não foi suficiente para perdoar e esquecer.

A palavra escolhida e a sua interpretação constituem o centro de tudo no Génesis, e os comentários, nem sempre concordantes, de exegetas judeus helenizados como Fílon de Alexandria, e dos grandes teólogos dos primeiros séculos do Cristianismo – Santo Agostinho, Stº Ambrósio e São Paulo, mas também Tertuliano e São Jerónimo, entre muitos – influenciarão toda a Idade Média, e muito além.

Narrativa hebraica de origens profundas na região mesopotâmica, o Genesis apresentava duas versões da criação. A versão iavista foi a preferida pelos primeiros exegetas e apresenta uma visão muito hierarquizada que, em conformidade com a sociedade do tempo, destaca o homem. Adão é criado primeiro e tem igualmente a primazia no uso da palavra: é ele, o nomoteta, que nomeia todos os seres criados por Deus, e que nomeará a primeira mulher. A prioridade cronológica de Adão torna desde logo a mulher secundária; além disso, ele é que foi criado à imagem – imago – de Deus, sendo por isso a substância, de natureza essencial. Vários exegetas atribuem à mulher apenas a semelhança – similitudo – por ter sido retirada da costela de Adão; ela é uma derivação da substância, um acidente, associada à divisão, à diferença, à degradação. Adão é o espírito, Eva a matéria, a carne, a aparência sedutora e enganadora dos sentidos – em linha com Platão mas também com a Pandora de Hesíodo. As diferenças na criação de homem e mulher levam, por exemplo, Fílon de Alexandria a considerá-la – talvez com influência do mesmo mito – uma outra raça. Todavia, contrariamente a Pandora, Eva é uma necessidade de Adão, a ajudante – mais um traço subalternizante – que ele e Deus consideravam imprescindível.

Se o contexto da criação já tornava Eva inferior a Adão, o seu papel na tentação da serpente torná-la-á responsável pelo pecado – uma novidade que vai muito além do horizonte pagão de Pandora – que expulsou a humanidade do Éden e a submeteu a todas as desgraças (o que, para Stº Ambrósio, nem foi tão negativo assim…). A serpente escolheu-a por interlocutora – o que a tornou instrumentum diaboli – por saber que era o elo mais fraco.

A tradição exegética fez até há não muito transparecer a ideia de que Adão não estava presente e fora vítima inocente da sedução de Eva. Na realidade ele assistiu, passivamente, ao diálogo em que Eva menciona à serpente a interdição enunciada por Deus ao consumo dos frutos da árvore e, satisfeita a razão com a resposta e recebendo dos seus sentidos a certeza da bela aparência e comestibilidade do fruto, colheu, comeu e deu a Adão. Aliás, a descoberta da nudez ocorre em simultâneo, e é em conjunto que tentam remediar a situação.

O ridículo da atitude de Adão – qual segundo Epimeteu, que depois, pateticamente, se auto-vitimiza – não escapou, por exemplo, a Stº Agostinho. Também São Paulo, ressalvando que fora a mulher a tomar a iniciativa, responsabiliza o casal pelo pecado.[21] A tradição interpretativa, de forma simplificadora, coloca sobre Eva o peso da culpa: a sua curiosidade soberba causou a perdição da humanidade. Como no mito de Pandora, o castigo vem em forma de dor, mas sobretudo pela sujeição da mulher ao homem.

Apesar de já se terem notado nesta breve exposição diferenças claras, as semelhanças com o mito de Pandora são irresistíveis: o peso do prestígio dos moralistas pagãos e das suas palavras lapidares também o eram. Com efeito, o Helenismo, que com Alexandre Magno levou a cultura grega ao Egito e à Ásia, permeou a cultura judaica na diáspora tal como depois a cristã, e a misoginia helénica acentuou o pendor tradicional judaico, tendo o mito de Pandora encarnado e catalisado a ideia da mulher como armadilha sedutora e mortal (Ecclesiastes 7:26).[22] A misoginia hebraica, ainda hoje visível nos grupos fundamentalistas e no passado exemplificada pelos Essénios, tem a sua base em vários livros da Bíblia, nomeadamente os influentes Sapienciais, como Provérbios e Eclesiastes, que por sua vez parecem revelar o influxo helénico (Phipps 1988: 39).

No lado cristão, a influência do mito de Pandora é tão profunda que autores como Dora e Erwin Panofsky defendem que "The Fathers of the church are more important for the transmission – and transformation – of the myth of Pandora than the secular writers; in an attempt to corroborate the doctrine of original sin by a classical parallel, yet to oppose Christian truth to pagan fable, they likened her to Eve." (Phipps 1988: 42).

Caso exemplar é Tertuliano, que chega a apontar no De corona Militis (7, 3), que a grande diferença entre Pandora e Eva – para além de a primeira ser um mito…– residia no local onde eram postos os ramos: na cabeça em Pandora, a tapar as pudenda em Eva.

Se realmente houve um Pandora, a quem Hesíodo menciona como a primeira das mulheres, a cabeça dela foi a primeira a ser coroada pelas Graças, quando recebeu presentes de todos os deuses, donde o nome de Pandora. Mas Moisés, um profeta, não um poeta-pastor, descreve-nos Eva, a primeira mulher, como tendo as suas vergonhas mais naturalmente cingidas com folhas do que as têmporas com flores. Pandora, portanto, não existiu. (De Corona Militis 7, 3).[23]

A fúria misógina de Tertuliano atinge o seu clímax em textos como o De cultu feminarum, que pretende regular o comportamento e aparência das filhas de Eva e de que se reproduz infra um excerto em latim, para melhor se apreciar o efeito trovejante das repetições e aliterações:

Et Euam te esse nescis? (2) Viuit sententia Dei super sexum istum in hoc saeculo: uiuat et reatus necesse est. Tu es diaboli ianua; tu es arboris illius resignatrix; tu es diuinae legis prima desertrix; tu es quae eum suasisti, quem diabolus aggredi non ualuit; tu imaginem Dei, hominem, tam facile elisisti; propter tuum meritum, id est mortem, etiam filius Dei mori habuit. (Tertullien, De l'ornement des femmes, livre I, 1-2)[24]

Tertuliano não admite a remissão da alegada culpa de Eva e afirma a inocência do homem, cuja força de carácter levou o Diabo a optar por abordar o elo mais fraco. Ela seduziu o indefeso homem, traindo-o e actuando como instrumentum diaboli. Além de acusar Eva – e todas as mulheres – de terem cometido o primeiro pecado, desertando da lei divina – e a deserção era crime capital –, Tertuliano vai muito mais longe: acusa a mulher de ser a causa da morte de Jesus Cristo.

Apesar de ser um texto mais voltado para o cristianismo, Tertuliano glosa de algum modo o mito forjado por Hesíodo: as metáforas iniciais, com a porta e o selo, apresentam semelhanças claras com a abertura da tampa do recipiente (pithos) de Pandora. Mas o que impressiona mais nesta diatribe é a violência do ataque à mulher, cujos ecos soarão ao longo dos tempos, ajudando a fixar palavras e linhas de pensamento.

Conclusão

O Cristianismo dos finais do Império Romano do Ocidente tornou-se o ponto de convergência de tradições que partilham o pensamento misógino, potenciando-se mutuamente graças ao peso da herança clássica na experiência dos apologetas e Doutores da Igreja, quase todos retores de formação. A fortuna de que gozaram durante séculos autores como Ovídio, Virgílio, Juvenal e Séneca – para não falar dos gregos, dependentes da transmissão latino-cristã devido à ignorância generalizada da língua –, foi ajudada pelos próprios Doutores, que os citavam nos seus escritos, buscando assim apoio na sua auctoritas de milénios, mas reciprocamente credibilizando e eternizando o seu verbo lapidar.

É assim que vemos São Jerónimo, um crítico feroz da mulher, a quem chama “mais amarga que a morte”, “armadilha em que se deixa prender o pecador”, “o princípio de todos os males” através do qual “a morte entrou neste mundo”, captora das “almas preciosas dos homens”, citar o famoso “varium et mutabile semper femina” virgiliano lado-a-lado com os livros sapienciais da Bíblia (D’Alverny 1977: 110).

A palavra escrita e a sua exegese foram marcantes na continuidade de ideias e fórmulas negativas sobre a mulher, a que a herança cultural deu maior fundamento. Mas a sua pervivência é indissociável da influência do contexto dos tempos e das sociedades humanas, onde a desvalorização e o vitupério da mulher têm sido dominantes e por vezes atingem a dimensão da misoginia – que a mesma herança clássica apontou como aegrotatio animi. Do mesmo modo, a herança do Cristianismo nascente apresenta avanços na condição da mulher, reconhecendo pelo menos a sua igualdade espiritual (D’Alverny 1977:108). O âmbito individual é de facto de grande relevância: opinion makers como Juvenal e Tertuliano – que na parte final da vida se tornou herético –, afectados de misoginia profunda, acabaram por ter um peso muito superior que pensadores como Plutarco devido ao que agora se chama soundbyte, entrando com muita facilidade na “cultura popular” da Idade Média.

 

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Notas

[1] Adaptado de uma comunicação apresentada em 6 de Junho de 2012, no âmbito das “Tardes Clássicas”, na Universidade do Minho.

[2] Trata-se de um tema de grande e longa discussão até aos dias de hoje. A este propósito, não deixa de ser interessante o episódio narrado por Ateneu de Náucratis, já no séc. III da nossa era, no Deipnosophistae (livro XIII, 5), segundo o qual Sófocles, quando confrontado com a acusação de misoginia feita a Eurípides, sublinhou a incoerência desta atitude com o comportamento privado do dramaturgo.

[3] “Por outro lado, é o medo que faz nascer em nós as aversões opostas a estas tendências [as paixões excessivas por algo]. Por exemplo o ódio às mulheres, como se vê na Misoginia de Atílio; o ódio ao género humano, qual se atribui a Tímon, o misantropo; o afastamento dos deveres de hospitalidade. Todas estas aversões, que são também doenças da alma, vêm de um certo medo que se tem das coisas de que se foge e a que se odeia” (tradução minha).

[4] Não deixa de ser irónico que a tradição registe que o poeta misógino morreu assassinado por ter seduzido uma mulher.

[5] Utiliza-se a tradução de Os trabalhos e os dias e da Teogonia de Ana Elias Pinheiro e José Ribeiro Ferreira (2005).

[6] A Esparta pós-conquista da Messénia é uma excepção consabida.

[7] Há no entanto quem interprete o texto como irónico, visto a família de Iscómaco ser, aparentemente, bastante escandalosa.

[8] É essa a opinião de Plínio, o Jovem, no Panegyricus, 83, 8.

[9] Sócrates afirma que a natureza da mulher não é em nada inferior à do homem, com a excepção do discernimento e da força. Mas Sócrates refere-se ao discernimento que se apoia no saber de experiência e educação, algo a que as gregas naturalmente não podiam almejar, dada a sua reclusão e pouca instrução; a inteligência – σύνεσις – é para ele inata. (Plutarque 2002: 10).

[10] Antístenes, fundador da escola cínica, proclama que a virtude (άρετή) do homem e da mulher são a mesma; Ésquines de Sphettos, no seu diálogo Aspásia, supõe admitido o princípio da igualdade moral dos sexos e da identidade das virtudes femininas e masculinas. (Plutarque 2002: 10).

[11] Eurípides caracteriza-a sistematicamente como tal.

[12] Além de declarações como esta, a monstruosidade assassina da Medeia de Eurípides indignou muitos atenienses e cimentou a já aludida reputação misógina do tragediógrafo. Creio que é clara a ambivalência do autor.

[13] “Toutes estes, serés, ou futes,/ De fait ou de volenté putes” (Roman de la Rose, vv. 9489-9490).

[14] Este decreto fora promulgado em 215 a. C., no auge da Segunda Guerra Púnica, quando os recursos financeiros e humanos de Roma estavam quase arruinados, e impusera um controlo muito apertado do luxo das mulheres. Curiosamente, abrangia também o número de cavalos que os carros das mulheres podiam ter… Vinte anos depois, com a Urbe enriquecida pelo imenso saque de Cartago, todos, das crianças aos cavalos, podiam usar ornamentos mais luxuosos do que as mulheres (Ab Vrbe Condita, XXIV, 1, 6). Mais do que a lei em si, o que assustou Catão foi a capacidade de mobilização e pressão das mulheres, que usaram todos os recursos dos políticos masculinos, passando por cima da autoridade dos maridos e até da vergonha de se exporem publicamente que era suposto terem: “matronae nulla nec auctoritate nec uerecundia nec imperio uirorum contineri limine poterant” (Ab Vrbe Condita, XXIV, 1, 5).

[15] Recorde-se, no sentido oposto, o famoso “Ille potens sui” horaciano (Odae III,29,41): o que tem controlo total sobre si.

[16] Algumas imperatrizes, como Lívia Drusila ou as famosas Júlias sírias dos Severos, usufruíram de títulos e poderes notáveis.

[17] “Paulina nostri pectoris consortio/ fomes pudoris castitatis vinculum/ amorque purus et fides caelo sata / arcana mentis cui reclusa credidi/ munus deorum qui maritalem torum / nectunt amicis et pudicis nexibus”. Tradução minha.

[18] “Que venha à tua mente esta primeira certeza: todas podem ser vencidas; apanhá-las-ás, estende apenas os teus laços. (…). Se sois sábios, brincai apenas com as jovens raparigas: podeis fazê-lo impunemente. Isso é menos que um engano, desde que guardeis a boa fé nas outras coisas. Enganai as enganadoras. As mulheres, na sua maioria, são uma raça pérfida: que caiam nas armadilhas que elas mesmas puseram.” (tradução minha).

[19] Entre os textos influenciados por Ovídio e Juvenal, recorde-se a continuação do Roman de la Rose por Jean de Meung (c. 1275) e as Lamentationes Matheoli de Mathieu de Boulogne (c. 1295), que exemplificam claramente a interpenetração das diatribes homiliéticas cristãs com a tradição misógina greco-latina.

[20] Séneca não parece sentir-se tão inferiorizado, pois elogia Cornélia pela sua constância face à dor (Consolatio ad Heluiam matrem, 16,6).

[21] ”Il est vrai que la femme s'est laissée séduire, la première, et a incité Adam àdésobéir à Dieu, mais l'homme a cédé sans résistance, et n'a pas fait usage de sa raison ; ils sont également coupables” (d’Alverny 1977: 110).

[22] “The Pandora motif was transferred to the Eve myth in Jewish writing after the era of the Hebrew Bible and before the Christian era. Philo, who absorbed the Hellenistic culture of Alexandria, projects onto the Hebrew Bible alien Greek ideas. His references to the poems of Hesiod show that he must have been acquainted with the Pandora myth. In his commentary on Genesis, woman is singled out as "the beginning of evil." Eve and her daughters are described in this disparaging way: "The woman, being imperfect and depraved by nature, made the beginning of sinning and prevaricating; but the man, being the more excellent and perfect creature, was the first to set the example of blushing and of being ashamed, and indeed of every good feeling and action." (Phipps 1988: 40).

[23] “Si fuit aliqua Pandora, quam primam feminarum memorat Hesiodus, hoc primum caput coronatum est a Charitibus, cum ab omnibus muneraretur, unde Pandora. Nobis uero Moyses, propheticus, non poeticus pastor, principem feminam Euam facilius pudenda foliis quam tempora floribus incinctam describit. Nulla ergo Pandora.”

[24] “E tu não reconheces que és Eva? A sentença de Deus sobre esse sexo vive ainda nos nossos dias: é necessário que a condenação viva. Tu és a porta do diabo; tu és a que tirou o selo daquela árvore proibida: tu és a primeira desertora da lei divina; to a que o persuadiu a ele [Adão] a quem o diabo não era suficientemente valente para atacar. Tu destruíste tão facilmente a imagem de Deus – o homem. Devido ao teu acto – a morte – até o Filho de Deus teve de morrer.” (tradução minha)