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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.26 no.2 Braga  2012

 

O livro das origens: A inscrição teológica da pedra de Chabaka

Nota prévia, introdução, textos e desenhos de Rogério Sousa. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2011. 241 pp.

António J. G. de Freitas*

*CEHUM / Investigador, Universidade do Minho, Braga, Portugal.

antonio.defreitas@googlemail.com

 

Esta é a primeira edição portuguesa de um dos mais relevantes documentos religiosos do Antigo Egipto, a inscrição da Pedra de Chabaka (PCh).

Este documento apresenta-se como fundamental no estudo das cosmogonias antigas em geral, e em particular do Antigo Egipto. Como o autor nos diz, o ‘Livro das origens’ foi mandado inscrever em pedra pelo faraó Chabaka (716-702 a. C.) da XXV dinastia (747- 656 a. C.) e colocado no templo de Ptah em Mênfis (p. 15), embora o texto pareça ter sido composto entre o século XIII a XI (p. 16). O autor continua, mostrando a importância não só mitológica e cosmogónica da obra, mas também a relevância politica da mesma, uma vez que evoca a unificação do Alto e Baixo Nilo, representado na cosmovisão da obra.

Esta edição da Pedra de Chabaka, contém duas partes fundamentais.

Na primeira parte, inclui a versão hieroglífica e tradução. Segue-se um comentário do ponto de vista da narrativa e dos géneros literários utilizados. Neste comentário discorre o autor sobre a composição e datação da obra. A seguir temos a primeira parte do livro que inclui o texto bilingue. A segunda parte contém um apêndice, que inclui outros textos egípcios complementares. Esses textos têm importância em si mesmos pelo que, mais do que um mero anexo, constituem uma mais-valia ao livro em si.

Para além dessas duas partes o livro apresenta uma nota prévia, uma introdução e uma impressionante bibliografia.

Queremos começar por um comentário meramente técnico: achamos peculiar o uso do ‘k’ na palavra Chabaka, que a não ser razões linguísticas por mim desconhecidas, poderia transliterar-se em português como Chabaca. No entanto, embora discordemos, mantemos o ‘k’ por coerência com a opção do autor.

A primeira coisa que o autor faz é explicar o porque da adopção heterodoxa do título, ‘Livro das origens’ para o documento estudado e traduzido nesta edição; tradicionalmente é conhecido por ‘Teologia Menfita’. O autor explica que o termo ‘Teologia Menfita’ é muito impreciso, por se referir a uma ampla gama de textos e doutrinas relacionadas com o culto menfita a Ptah. Parece-nos sensata esta argumentação. Como bem diz o autor, o texto não refere em lado nenhum o título da composição, quem transcreve o texto para a PCh, fá-lo referindo-se à composição como ‘o livro’. Neste trajecto para justificar o título, o autor evoca o paralelismo entre o texto da PCh com o Génesis ou os primeiros versos do Evangelho de São João. Do meu ponto de vista o texto descreve uma cosmogonia entre outras coisas, e por isso seria suficiente para chamar-lhe ‘Livro das origens’. Não tenho clara a razão que leva o autor a querer dar mais justificações, como por exemplo comparar com os livros bíblicos mencionados. É claro que também o livro do Génesis e o Evangelho de São João contêm cosmogonias. No entanto, elas são diversas da aparecida no ‘Livro das origens’. O autor diz ‘...pois partilha com esta obra [Génesis] uma visão unitária do acto criador que se desdobra de um modo articulado e coerente através da materialização progressiva do plano divino’. (p. 9) Embora o texto da PCh contenha uma descrição unitária da criação do mundo, esta parece-me muito diferente do Génesis. Por um lado há deuses a nascerem de um deus principal Ptah e o mundo nasce desses deuses seguintes. O acto criador de Ptah, pelo menos em primeira instância, parece ser um acto de emanação, que não tem paralelo com o acto criador do Génesis, onde a criação não faz parte do criador. A comparação com os primeiros versos do Evangelho de São João, têm em comum a característica geral da tradição teológica do Oriente Próximo, onde ‘nomear’ ou ‘chamar’ pela voz, tem poder criador. Por essa razão não surpreende encontrar este elemento da teologia do Oriente Próximo no Evangelho de São João, por exemplo, o Enuma Eliš babilónico, esclarece que nada existiu até ser nomeado. Assim, a importância da palavra no ‘Livro das origens’ mostra de forma clara a tradição teológica à qual pertence, mas não surpreende pelos paralelismos bíblicos, embora não deixem de ter interesse.

Na Introdução da edição, o autor não se esquece do leitor não especializado e relembra a importância de Mênfis e do deus Ptah num período no qual o Egipto estava a viver problemas políticos de grande importância para a sua manutenção.

Ao começar a apresentação da edição bilingue, faz-se a descrição epigráfica incluindo os pormenores do número de linhas, a forma como está escrita e as marcas particulares encontradas na pedra e não pertencentes ao documento original.

A seguir o texto é apresentado em duas páginas, a escrita hieroglífica à esquerda e a tradução portuguesa à direita. O autor oferece-nos cada ‘secção’ do texto com um subtítulo que ajuda a entender o conteúdo. Cada secção é apresentada com abundantes notas linguísticas que ajudam o leitor não especialista com a eventual dificuldade do texto e ao especialista a aprofundar o seu conteúdo. As secções identificadas do texto são:

A titulatura de Chabaka.

Apresentação do texto.

A aclamação de Ptah,o soberano do mundo.

O julgamento de Hórus e Set.

A investidura de Hórus como Rei do Alto e do Baixo Egipto.

A coroação de Hórus.

O resgate de Osíris.

A fundação de Mênfis.

A reconciliação entre Hórus e Set.

O despertar do deus criador.

O despertar de Ptah.

A criação dos deuses.

A criação da vida.

A criação do mundo.

O resgate de Osíris e a aclamação de Hórus como rei universal.

Esses subtítulos dão uma visão geral da obra e permitem compreender a sua estrutura, sendo outra das mais-valias desta edição.

O comentário que vem a seguir leva-nos aos âmagos do texto. Por exemplo, a discussão sobre as diferenças semânticas dos verbos egípcios ir, més e kheper, que significariam criar, gerar e manifestar respectivamente, apresenta-se como fundamental para entender a ‘secção’ cosmogónica do texto. Três processos distintos que ocorrem na cosmogonia descrita. Neste comentário o autor mostra-nos que mantendo estas diferentes conotações de cada um dos verbos mencionados, a cosmogonia descrita oferece-nos uma visão do politeísmo como a manifestação multifacetada de um único deus. Tenho que referir que este tipo de teologia é o que Max Müller denominou henoteísmo[1]. Não é muito surpreendente encontrar teologias, onde este tipo de sistema é proposto. Por exemplo, no caso do judaísmo, há evidências de que originalmente tinha-se um único deus como merecedor de culto embora não se negasse a existência doutros deuses[2]. Ao que parece este fenómeno de henoteísmo não é único no Oriente Próximo, eu mesmo tenho posto em evidência elementos que parecem apontar para um henoteísmo[3] no povo hitita, pelo menos num período anterior ao politeísmo oficial.

O comentário mostra-nos o grande impacto que o ‘Livro das origens’ tem na concepção egípcia do mundo, incluindo a sua importância política. O autor diz que ‘...a singularidade da tradição menfita residia em formular a criação como a emanação de um texto vivo, o mundo, que reflectia o «plano» inscrito na mente divina. A «palavra divina», o hieróglifo,...’ (p. 186-7). O autor continua a discorrer sobre a importância da palavra divina e o mundo como manifestação dessa palavra divina. A secção do livro que inclui esta discussão, tem por nome ‘A formulação do logos divino’. O uso da palavra logos no contexto, parece-me uma boa metáfora mas, como toda a metáfora, acarreta consigo o problema de fazer uma analogia com um termo, grego neste caso, que tem em si uma semântica muito complexa A analogia e inclusive a afirmação de que o ‘logos’ está relacionado com a teologia babilónica, não é novidade e foi proposta por exemplo por Langdon[4] e contestada uns anos depois por Albright[5]. Seria preferível usar o termo ‘palavra’ e explicar o que significa no contexto teológico particular, indicando eventualmente o seu paralelismo com o termo grego ‘logos’ no contexto, por exemplo, do Evangelho de São João.

Dito isto, penso que a publicação da obra em discussão é um evento muito feliz e de grande relevância para o estudo da egiptologia em particular, e em geral da história antiga e da história das religiões, assim como para o estudo interdisciplinar das cosmogonias antigas, as quais estão sem dúvida alguma ligadas às origens do pensamento filosófico, enquanto são simultaneamente explicações muito elaboradas sobre a origem do cosmos e querem resolver uma das questões mais fundamentais postas pelo homem.

O livro publicado pela Gulbenkian foi redigido com o maior rigor científico pelo Professor Doutor Rogério Sousa, que mostra um profundo conhecimento do tema e o domínio de conceitos mitológicos complexos, explicando o seu conteúdo com precisão e clareza.

 

Notas

[1]Cf. por exemplo, Mülle, Max; Lectures on the Origin and Growth of Religion: As Illustrated by the Religions of India. (London, 1878).         [ Links ]

[2]Cf. por exemplo, Ex. 15.11 e Ex. 20.5, onde o povo de Israel é lembrado de que Deus e o maior entre os deuses e que só a ele devem rendir culto.

[3] Freitas, A. J. G. de; ‘Foram os Hititas henoteístas? A palavra Šiu no contexto do hitita do Anigo Reino’ em Cadmo, 21, 101-8.         [ Links ]

[4] Langdon, S.; ‘The Babylonian Conception of the Logos’ in The Journal of the Royal Asiatic Society of Great Britain and Ireland, (Jul., 1918), p. 433-449.         [ Links ]

[5] Albright, W. F.; ‘The Supposed Babylonian Derivation of the Logos’, Journal of Biblical Literature , Vol. 39, No. 3/4 (1920), p. 143-151.         [ Links ]