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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.26 no.2 Braga  2012

 

José Pedro Paiva, Baluartes da Fé e da Disciplina: O enlace entre a Inquisição e os Bispos em Portugal (1536-1750)

Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011, 480 pp.

João Peixe*

*Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho, Braga, Portugal.

jpeixe@ilch.uminho.pt

 

O Doutor José Pedro Paiva é dos mais destacados investigadores portugueses sobre história religiosa em Portugal e, muito em particular, sobre a Inquisição. Baluartes da Fé e da Disciplina é a sua mais recente publicação de fôlego sobre o assunto. Trata-se de um sólido estudo sobre as relações entre a Inquisição e os bispos de Portugal, desde a criação daquele tribunal até 1750. O autor demonstra como o episcopado português e os agentes do Tribunal do Santo Ofício estiveram “enlaçados” na defesa da Fé católica no Portugal da Contra-Reforma, atuando os primeiros como “pastores” e os segundos como “vigias”. É uma conclusão que resulta da análise cuidada e da interpretação crítica de correspondência da época, de processos da justiça inquisitorial e eclesiástica, de ficheiros pessoais e institucionais. Com efeito, são algumas centenas as referências documentais e bibliográficas que suportam o autor e que fazem do livro, também, um riquíssimo índice de fontes.

O primeiro capítulo debruça-se sobre “O estabelecimento da Inquisição e o reajustamento do campo religioso”. A chegada do Tribunal da Fé ao reino de Portugal fez com que houvesse necessidade de definir quais as suas competências. Desde logo, sob sua alçada, ficou o julgamento das heresias externas públicas, definidas como aquelas heresias praticadas em público. Os bispos, que, antes do estabelecimento da Inquisição, eram os juízes competentes em matéria de heresia, mantiveram a sua jurisdição apenas sobre as heresias externas ocultas. Com o passar do tempo, muito graças à liderança do Cardeal D. Henrique, a Inquisição adquire alguma superioridade face ao episcopado e os delitos cujo julgamento lhe competia cresceram em número. Este estatuto de superioridade, intencionalmente procurado, manifestava-se, também a outros níveis, pelo alargamento da sua esfera de competências. Assim, passou a competir à Inquisição a elaboração das listas de livros proibidos, tendo mesmo chegado a controlar as leituras dos clérigos e até a autorização da publicação de livros da autoria de bispos; por outro lado, os agentes do Tribunal da Fé estavam fora da alçada episcopal, ao mesmo tempo que os clérigos passavam a ser julgados por aquele tribunal em matéria de heresias. Por vezes, essa superioridade manifestou-se ainda nalgumas intromissões em áreas da competência exclusiva dos bispos, como fossem a escolha dos pregadores ou a forma como eram registadas as visitas pastorais.

Esta superioridade atingida pela Inquisição não foi conseguida em conflito com o episcopado português. Muito pelo contrário: houve uma colaboração evidente entre ambos. O segundo e o terceiro capítulos demonstram em concreto como esta cooperação e complementaridade se deram, enquanto o quarto analisa as raízes, o fundamento e os objetivos de tal sintonia, cedo construída. Aquando do seu estabelecimento, os recursos de que a Inquisição dispunha eram parcos. Por isso, a ação inquisitorial deu os primeiros passos servindo-se da rede diocesana já estabelecida no terreno. Depois, com o crescer da instituição, muitos dos clérigos que vieram a ser agentes da Inquisição eram oriundos do clero secular e mesmo de outras ordens regulares, sendo que a maior parte dos Inquisidores Gerais foram bispos. Nas mesas do tribunal e nos paços episcopais partilhava-se, portanto, uma mesma formação teológica e cultural de base, que configurava uma mundividência semelhante. Mais ainda, muitos agentes inquisitoriais, ao cessar as suas funções no Tribunal da Fé, assumiam a liderança de dioceses, fechando assim a “dança” de titulares entre aqueles órgãos. Não espanta pois que em momentos de crise, como foram os perdões gerais concedidos pelo Papa e a suspensão do funcionamento do Tribunal, os bispos em geral tivessem alinhado ao lado da Inquisição.

Esta colaboração manifestou-se de diversas maneiras. Já se falou que a Inquisição, nos primeiros tempos do seu estabelecimento em Portugal, se serviu da rede diocesana para suprir a sua própria falta de efetivos. Porém, esta forma de colaboração prolongou-se, mesmo depois de o Tribunal estar já solidamente implantado. São vários os casos de processos de heresia que foram julgados pela justiça eclesiástica com o beneplácito e até com a delegação de poderes expressa da Inquisição. São casos ocorridos em dioceses periféricas e, em menor número, em dioceses cujo antístite era respeitado pelo Inquisidor Geral e tinha a sua confiança. Era também o que se passava em dioceses do império ultramarino, exceto em Goa, onde havia uma mesa da Inquisição. A outro nível, o episcopado também contribuiu para o esforço inquisitorial cedendo para o efeito as suas instalações. Foram vários os prisioneiros da Inquisição que aguardaram julgamento em aljubes diocesanos e mesmo alguns condenados cumpriram aí as suas penas. Por último, não menos importante, os bispos também contribuíam para o erário da Inquisição com parte das suas rendas. Todavia, esta cooperação não se fez sentir só ao nível dos recursos, fossem eles materiais, humanos ou financeiros. A Inquisição também beneficiava de toda uma estrutura de informação já montada no terreno. Era o caso da rede paroquiana e das visitas pastorais, ambas fontes de inúmeros processos instaurados pelo Tribunal da Fé. Em dado momento, os agentes da Inquisição tentaram mesmo quebrar a confidencialidade do ato da confissão para benefício das suas investigações. Venceu nessa altura o princípio sagrado e íntimo daquele sacramento.

Por outro lado, como diz o autor, bispos e agentes inquisitoriais “vigiaram espaços diferenciados, concentraram a sua atuação em estratos da população distintos, puniram crenças religiosas e comportamentos de diferente tipo” (p. 267). Se a ação inquisitorial estava mais vocacionada para a “vigilância” dos cristãos-novos e para as heresias maiores, como o Judaísmo, o Protestantismo ou o Islamismo, o episcopado estava mais voltado para a doutrina e cabia-lhe, em particular, a “pastorícia” das almas. Episcopado e Inquisição em conjunto formavam um bloco doutrinário e disciplinador da sociedade, com vista à sua uniformização e coesão. Fechava-se desta forma um círculo que se alimentava a si próprio: num reino coeso, com uma monarquia estável, em que a influência do rei se fazia sentir nas mais diversas esferas, incluindo a religiosa, fomentava-se um sistema cultural e religioso que reforçava essa mesma estabilidade e, por conseguinte, a cooperação entre os mais diversos órgãos e, em particular, estes de que temos vindo aqui a falar, a Inquisição e os Bispos de Portugal.

Sem dúvida que houve vozes discordantes e casos de deficiente cooperação. Houve mesmo dois momentos de profundo afastamento entre o episcopado e o Tribunal da Fé. Uns e outros merecem também a análise do autor. Não tiveram, contudo, a dimensão de outros conflitos como os ocorridos nos restantes domínios da Península Ibérica e na Península Itálica. A estas observações se dedica o quinto e último capítulo do livro. Ao contrário do que aconteceu naqueles reinos, onde houve bispos que boicotavam o trabalho das mesas locais da Inquisição e onde outros foram presos e condenados por heresia, em Portugal os conflitos, em número reduzido, nunca atingiram essa gravidade. Eram sobretudo desentendimentos causados por questiúnculas pessoais; discussões sobre precedências em cerimónias protocolares; conflitos derivados da sobreposição de competências em casos de foro misto; ou bispos de dioceses remotas, nunca ligados ao Tribunal, que resistiam à intromissão dos agentes da Inquisição naquilo que acreditavam ser as suas competências. Já a questão dos “Apontamentos” foi um dos “enfrentamentos” maiores, no qual um conjunto de bispos, na sequência do breve papal Cum audiamus, sugeriu ao cardeal D. Henrique, então regente de Portugal, uma série de medidas para serem adotadas no governo do reino, na educação do jovem rei e na ação inquisitorial (sem nunca a contestar, no entanto). O outro grande conflito deu-se já em claro momento de decadência da Inquisição e opôs a esta instituição um grupo de bispos com interpretações doutrinárias diferentes das sancionadas pelo Tribunal. Aliás, durante a história da Inquisição em Portugal, houve sempre quem sugerisse vias alternativas à sua atuação, nomeadamente, através da catequização e evangelização dos cristãos-novos. Porém, essas tentativas fracassaram sempre devido ao fulgor da inquisição no momento em que eram sugeridas.

Na badana do volume, podemos ler que “o objetivo deste livro é o de compor, explicar e pensar os sentidos das relações que se estabeleceram entre a Inquisição e os bispos, no contexto dos desafios suscitados por esta alteração [a reorganização do campo religioso após a criação do Tribunal do Santo Ofício]”. Cremos que o propósito foi plenamente cumprido. Pelo inventário das suas fontes, pela profundidade da sua análise, pela acutilância das suas conclusões, Baluartes da Fé e da Disciplina é uma obra incontornável para o estudo da especificidade da Inquisição portuguesa e do contexto histórico em que ela operou.