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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.26 no.3 Braga  2012

 

Gaëtan e Herberto Helder: do impercetível

Daniel Tavares*

*Doutorando do curso de pósgraduação em Modernidades Comparadas: Literaturas, Artes e Culturas do Instituto de Letras e Ciências Humanas e investigador bolseiro do Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho, Braga, Portugal.

daniel@ilch.uminho.pt

 

RESUMO

Neste artigo pretendemos explorar uma leitura da poesia de Herberto Helder em termos (auto) retratísticos. Partindo dos autorretratos de Gaëtan, procuramos estabelecer relações interartísticas que possam evidenciar uma tendência da retratística contemporânea que caminha para o apagamento, o silêncio e o impercetível.

Palavras-chave: Gaëtan; Herberto Helder; autorretrato; impercetível.

 

ABSTRACT

In this article, we intend to explore a reading of Herberto Helder’s poetry in terms of (self) portraiture. Based on the self-portraits of Gaëtan, we establish interartistics relations that may show a specific trend of contemporary portraiture towards erasure, silence and imperceptible.

Keywords: Gaëtan; Herberto Helder; self-portrait; imperceptible.

 

Do impercetível: Gaëtan

Vou chamar o retrato,
aquele que se inclina para as chamas da morte.

João Miguel Fernandes Jorge

Acerca do retrato, Derrida notava que o desenho apontava sempre para uma máscara demonstrando dois valores intrínsecos ao conceito, a dissimulação e a morte. A primeira prende-se com um lado funcional mais evidente da máscara e oculta o rosto quase por inteiro deixando de parte os olhos. Já a morte é entendida como um “rosto amputado” (Derrida, 2010: 86), distanciado do resto do corpo que só não se revela desprovido de vitalidade pela resistência dos olhos. Assim, parece haver uma relação dialética entre dissimulação e morte. Desenhar(-se) é, portanto, ocultar(-se) da morte e por isso o filósofo francês apontava o mito de Perseu como ponto fulcral para o entendimento do desenho. Ao referir que “Perseu poderia tornar-se o patrono de todos os retratistas.” (Idem) pois ele “assina todas as máscaras”(ibidem), Derrida refere o ato de cegueira como o único viável para a construção autorretratística, lembrando assim as já célebres palavras de Picasso quando referia que para pintar era necessário cegar-se. Outro filósofo, Didi-Huberman, retoma o mito de Perseu para defender a noção de “imagem-escudo”, uma imagem que, precisamente por ser imagem, nos protegeria da insuportável realidade, do horror do real.[1]

A cegueira consentida implica, obviamente, o erro.[2] Os autorretratistas vivem desta forma de (se) errarem constantemente. Sem olhos, a mão predomina sem o jugo do olhar e da memória. O autorretrato configura-se através de um jogo de forças entre a vontade retratística e mão. O que guia a mão já não é o olho enquanto órgão sensorial mas antes um novo gesto suscitado pela “visão de dentro” que dá visibilidade da obra.

O ato de retratar implica uma visão dialética que é composta por ver e ser visto em simultâneo. O artista parece “pôr-se em atitude” e sai de si para se autorretratar. Vê-se o autorretrato que começa a ver-nos, e nós vemo-nos enquanto autorretrato numa visão insustentável pela sua incongruência. Como se o autorretrato se inscrevesse como uma atividade altamente medusante, - o que ver ou para onde olhar? -, o autorretratista deve resgatar-se ao seu próprio olhar – que já não será o dele, mas o de outro – e assumir uma manha para que consiga resgatar um qualquer traço tangível.

Voltando a Perseu, o olhar do retratista nunca é direto sobre si, mas antes oblíquo e esta é a manha que Derrida aponta para que o desenhador consiga enfrentar a obra. O desvio do olhar permite não olhar para si diretamente, mas ter antes um distanciamento que permita tornar-se invisível, impercetível. O kune de Hades que o torna invisível ou a “imagem-escudo” de Didi-Huberman.[3]

Esta posição de Derrida implica uma “pulsão de morte” associada ao retrato.[4] O retratista ultrapassa a fronteira do Hades para resgatar uma imagem. Além do mito de Perseu, existe um outro que nos parece servir perfeitamente os propósitos da imagem autorretratística, do olhar e do resgate, o mito de Orfeu. Neste caso, o falhanço do herói ocorre precisamente porque procurou ver a sua amada. Contudo, não lhe é concedida Eurídice, mas antes o seu Phásma, pois como aponta Pedro A.H. Paixão, não lhe é permitido violar a lei do mundo das trevas, pois “não lhe é permitido ver” (Paixão, 2008: 57). Perante a morte, Orfeu recorre, tal como Perseu, ao engenho para ludibriar forças que lhe são superiores e, assim, ambos acabam por usar uma máscara. O empreendimento dos heróis é o mesmo, atingir o inatingível e a única forma de o conseguir é a anulação dos sentidos. Se, em Perseu, a cegueira ou o uso da máscara anula a visão, o mito de Orfeu é, ao mesmo nível, uma anulação dos sentidos. Pedro Paixão refere acerca do mito:

Testemunhando a nova separação que divide o vivo e o morto, no mundo-dos-mortos em que Orfeu se insinuara não é permitido ver como uso da sensação – nem falar, como forma de expressão. A suprema dificuldade imposta ao herói, assim como aos que se confrontaram com o mesmo mistério ,era a de ter de eliminar tudo de si próprio, a ponto de se tornar apenas lugar e eco – uma fria imagem no espelho. (Idem: 58)

No reino dos mortos, Orfeu não se guia pelas sensações, mas antes pela alma já que a voz da alma difere da voz do corpo.[5] Os olhos já não são funcionais no Hades, pois este reino das trevas é, de facto, reino do invisível. Nas suas notas à tradução de Fédon, de Platão, Elísio Gala chama a atenção para um jogo de palavras que nos parece fundamental: Hades e aides ou o reino dos mortos e o invisível. Assim, os mortos partiam para o invisível.[6]

Quando José Gil refere que para desenhar é necessário “pôr-se em atitude” (Gil, 2005: 221), “dispondo-se à maneira de não receber senão certos estímulos” (idem), está a referir a necessidade de se cegar provisoriamente, de se tornar imperceptível aos próprios olhos de forma a poder mascarar-se, induzir-se em traço. É claro que esta cegueira proporciona à mão – o carrasco do rosto, diríamos – uma importância acrescida.[7] O retratista sai de si, anula-se como Orfeu ou Perseu para ganhar uma dimensão quase meta-física que se inscreve para além dos próprios olhos, além do próprio corpo.

O que julgamos ver quando olhamos para um retrato? Decifraremos nós o rosto do retratado ou antes um conjunto de traços, de “pequenas percepções”, de forças de que os traços estão fecundados.[8] Forças que surgem não tanto do olho enquanto mediador entre objeto retratado e desenho, mas antes de uma certa independência da mão em relação ao olho. A mão acolhe em si o “devir-retrato” antes de o executar.

Na mão, ou neste jogo de mãos, inscreve-se a arte de Gaëtan. Os seus trabalhos revelam a consciencialização que o artista contemporâneo possui sobre a impossibilidade retratística. Ao compor um autorretrato através da sua mão esquerda, não sendo esta a sua mão mais sagaz, o retratista apresenta aquilo a que Castro Caldas se referia ao falar da “incongruência, da implausibilidade do empreendimento que com eles [retratos] se inicia”. A obra de Gaëtan apresenta-se assim como uma negação taxativa do que poderia ser entendido como a essência do autorretrato: a semelhança. O que artista parece querer veicular através da sua obra é precisamente um ponto intermédio entre a intenção retratística e a tensão que surge do exercício da mão esquerda. Destas duas forças nascerá o autorretrato que é assim forjado em “qualquer coisa de obscuro, que se passa nos bastidores, entre máscaras.” (Caldas, 2008: 71).

Este ofício de “contra mão” pode ser visto como um lavor mais umbroso, menos claro e limpo do que um retrato executado pela mão “naturalmente competente”. O esforço feito neste caso pelo artista para chegar ao traço é muito mais visceral do que a normal conduta do corpo perante o desafio do retrato. O path(os)[9] que obriga uma serventia do corpo perante o traço sem que a mão deixe escapar o traço do traço pensado. Há um caminho a percorrer entre a “intenção” retratística e o retrato que se faz com uma “intensão” sinistra. O retrato apresenta-se como um não-objeto, como uma “transcendência pura, sem máscara ôntica” e, como nota Merleau-Ponty, não há qualquer adição ao visível, o visível já comporta em si o invisível. Aqui, parece claro que a questão da semelhança é arredada da esfera retratística, já que o retrato não aprisiona, mas apresenta-se como um lugar de abertura.

A técnica utilizada por Gaëtan abre portas para a problematização do conceito de “retrato” enquanto género. Em primeiro lugar, parece haver uma profunda ironia na construção da obra que deriva, como já referimos, da consciência retratística do autor. Noutro plano, poder-se-ia dar relevância ao gesto em detrimento do rosto, do resultado do gesto. Os autorretratos de Gaëtan não exprimem um rosto definitivo mas antes um teatro de gestos proporcionados pelas inépcias da mão esquerda que eleva a mão e o gesto acima do visível. O retrato “torna-se gesto” (idem) e assume-se como um devir ao invés de uma definição. A indefinição que nos traz o título do desenho Algum retrato (1982) revela que o retrato em questão é apenas uma possibilidade, mas que poderia ser outro. O artista perde o controlo do traço, como se a mão já não lhe obedecesse e parte à descoberta do retrato.

A noção de gestotem sido explorada com alguma insistência pelo teóricos, entre os quais, Theodor W. Adorno. Na sua teoria estética, Adorno caracterizava o gestus experimental como sendo o “termo que designa os procedimentos artísticos para os quais o Novo é obrigatório” (Adorno, 2008 :45), contrapondo com a ideia de experimentalismo que apenas se limitava a experimentar “processos técnicos desconhecidos ou não sancionados” (idem). Assim, a grande diferença entre o experimentalismo Moderno e o anterior reside no facto de o primeiro ter o fator da imprevisibilidade na sua essência. O artista não pode (pre-) ver o resultado do seu gesto, por isso Adorno referia que “o sujeito tomou consciência da perda de poder, que lhe adveio da tecnologia por ele libertada, erigiu-a em problema, sem dúvida a partir do impulso inconsciente.” (Ibidem) A noção de gestus em Adorno coaduna-se assim com o processo experimental que Gaëtan utiliza através da mão esquerda, não controlando o gesto e fazendo assim sobressair a marca do experimental no traço.

Na introdução de Untwinsting the Serpent, Daniel Albright referia-se ao gestus da seguinte forma:

Lessing, Brecht, and Weill described the gestus, in wich a contortion or movement of the body takes de responsability of speech. An ideogram or a gestus is not an element within any specific artistic médium; it is not an icon, not a word, but a chord, vibrating between media, abolishing the distinctness of media. (Albright, 2000: 6)

Esta contorção do corpo, que em Gaëtan pode ser imaginada no próprio corpo do artista no fazer da obra e no traço da obra, é que toma a “responsabilidade discursiva”. Parece haver, como refere Albright, um “acorde” que “vibra”, aproximando-se de um caráter polifónico e polissémico numa verticalidade que entrelaça o discurso. Adorno referia que “as obras que são planeadas como tour de force, como ato equilibrista, revelam algo de superior em toda a arte: a realização do impossível” (Adorno, 2008: 165) e este gesto que traz consigo uma força, que “esconde a possibilidade do impossível” (idem: 166). Mais adiante, veremos como esta noção de tour de force pode articular a música de Bach e os desenhos de Gaëtan.

A série Contra-mundum (1988) convoca, desde o título, o lugar paradoxal que é um autorretrato. Se a intenção autorretratística se afasta, desde logo, da semelhança, por que razão o artista se representa em pose - muito próxima das poses adotadas por Van Gogh - nos seus autorretratos? É precisamente neste ponto que se forma a teatralização[10] da obra de Gaëtan. Teatralização que se estende aliás nos adornos que o artista aplica ao seu rosto e que se revelam profundamente irónicos na relação retratista-retratado. Em metade da série, o rosto surge suportado pela mão esquerda e o olhar esgueira-se sempre para o centro do retrato. Qual Perseu, o olhar procura e experimenta um espaço que vai além do retrato, que se situa além-corpo. A construção em série revela também uma pluralidade de retratos que acabam por não formar nenhum, ou algum, e muito menos um retrato definido e definitivo. A obra transforma-se assim num palimpsesto, num rosto em constante construção e reinscrição.

Em A Arte da fuga (1992-93), o artista “refere o conhecimento contrapontístico da arte da fuga de Bach” (Jorge, 2001: 200) e, em ambos os compositores, a experimentação é ponto de partida para a obra. A técnica do contraponto vive essencialmente da tensão entre as suas linhas melódicas e, à semelhança da obra de Bach, os trabalhos de Gaëtan afloram estas afinidades. O já referido hiato entre a tensão e a intenção cria um espaço que, distanciando-se de ambos, resguarda deles qualquer coisa. Estas afinidades com a obra do artista barroco revelam-se já no corpo das obras. Sabemos que A Arte da Fuga de Bach é uma obra inacabada com um caráter experimental, o que abre inúmeras possibilidades interpretativas. Não deixa de ser curioso o aspeto incompleto da obra de Bach, pois sabemos que Gaëtan explora quase exclusivamente a questão do retrato e trata o retrato sempre como objeto inacabado. O trabalho de um rosto liga-se assim ao próprio rosto, também ele sempre a caminho de e ressalta sempre a “tensão representativa” (idem) que provém das obras, do rosto.

O segundo aspeto, e talvez o mais importante para compreender o paralelismo Bach-Gaëtan, prende-se justamente com a questão experimental das obras. Num artigo dedicado às relações entre a Arte da Fuga de Bach e as artes plásticas[11], Lenká Stránská refere-se a obras plásticas do século XX que, de uma forma ou de outra, se coadunam com a Arte da Fuga de Bach. Seja pela homenagem prestada pelos artistas ao compositor por correspondências estruturais ou pela interpretação da lógica espaço-temporal da obra de Bach, a tentativa de emulação da sua obra está bem patente no estudo de Stránská.

Atribuir à obra de Gaëtan o simples caráter de homenagem através do título, anulando assim qualquer semelhança entre artistas, parece-nos demasiado simplista para ser verosímil. Excluída esta hipótese, em que moldes se poderão aproximar as obras? Cremos que uma correspondência na interpretação espaço/tempo parece ser a que mais pistas poderá abrir. Se nos fixarmos na ideia do paragone – apesar da questão estar já desgastada e, porventura, resolvida –, constatamos que o retrato afigura-se como o género que melhor servirá para diluir fronteiras. Mais do que a ideia de que um quadro não é simplesmente apreendido sinteticamente à primeira vista, implicando antes um percurso do olho, mais do que a ideia de narratividade que a pintura muitas vezes explora, o retrato é o tempo em si. O retrato comporta em si, indubitavelmente, a marca do tempo. E marca-lo de duas formas contraditórias: pela vontade de suspender o tempo, e pela impossibilidade de fugir à sua passagem. O retrato imortaliza e assassina.

O efeito do contraponto resulta na força do entrelaçamento de duas linhas melódicas. Esta força, zona obscura entre-linhas, pode ser vista, na obra de Gaëtan, na dobra do traço, diríamos. Em Le Pli, Leibniz et le Baroque, Gilles Deleuze apontava à dobra barroca a marca do infinito. Sem saber onde se inicia, nem onde acabará, le pli dobra a alma e, lá em cima, canta a glória divina. A dobra, esta, constitui-se por oposição: alto-baixo e interior-exterior[12]. Há algo de sombrio que permite não obstante a elevação, que permite dar a ver, como num chiaroscuro. Do dualismo alto-baixo, Deleuze referia a simbiose entre movimentos que se elevam e que descem, formando contornos harmoniosos. Nos termos utilizados pelo filósofo francês, “la matière-façade va en bas, tandis que l’âme-chambre monte” (Deleuze, 2009: 49) assim, o concretismo do exterior da curva – do visível - , contrapõe-se ao oculto, ao metafísico do interior - do invisível-, do quarto. Não se deverá contudo ver este invisível como sinónimo de ausência ou de encriptação indescodificável, mas antes como um lugar de percepção que se articula com o visível (não há curva sem interior) o que, na lógica de Merleau-Ponty, se poderia chamar de invisível, ou de imperceptível. Estas referências arquitetónicas levam-nos à primeira de três séries que compõem a Arte da Fuga de Gaëtan, La Chambre Verte.

A primeira parte da série, La Chambre Verte, traça uma intertextualidade com o filme homónimo de François Truffaut de 1978. Como já referido, o desenhador incorpora o mito de Orfeu e, em La Chambre Verte, Julien Davenne acaba por justificar isso mesmo. Não sendo o autor dos retratos que preenchem o santuário, a personagem usa os retratos como lugar de reconhecimento. Como o próprio refere “de reconhecimento daqueles que partiram”. A determinação em preservar a figura dos mortos demonstra que J. Davenne não quer deixar partir quem amou, a personagem está aliás num mundo que não é bem o dos vivos mas também não será o das trevas. Como refere João Miguel Fernandes Jorge acerca de Truffaut e Gaëtan “esses retratos parecem excluir o resto do mundo, para se encerrarem por detrás dos limites da sua intimidade.” (Jorge, 2001: 195). Apenas no final veremos J. Davenne “castigado” pela sua vontade irracional de resgatar, qual Orfeu, a sua amada da morte.

O filme tem um início peculiar. O rosto de Julien Davenne surge numa alteração constante de planos com o rosto dos mortos, como se a morte estivesse já inscrita, rasurada não mais do que epidermicamente no seu rosto. É neste percurso, neste path(os) órfico que J. Davenne vai construindo, recolhendo retratos da sua amada e, retomando a citação de João Miguel Fernandes Jorge em epígrafe, parece clamar: “Vou chamar o retrato, aquele que se inclina para as chamas do inferno.” (Jorge, 2001: 199). Tal como em Gaëtan

Não há rosto, não há autorretrato (do rosto) sem a comum viagem quotidiana, o que quer dizer sem a trágica proximidade da morte. Porque não há rosto sem a lenta visita aos infernos, nem tão-pouco há retrato sem a paixão mortal do desenhador: alguém que soube deitar as mãos ao que é invisível, ao que já desapareceu (Jorge, 2001 :194)

O filme de Truffaut alude ao resgate do sujeito através de um exercício mnemónico estimulado pelo altar, resgate este que pode ser visto em Gaëtan, como uma operação do próprio rosto. Em Nmkitpah (1989), o rosto parece reclamar para si (um)a (das) sua máscara(s) dizendo “não me deixes”. Como se o retrato se esquivasse ao rosto, o desenho mostra a máscara e, por dentro, o oco. Os olhos são elididos e o interior revela-se ser um creux, nos termos em que Didi-Huberman o propõe o termo.

A construção em série traz consigo o indizível, pois enquanto espectadores dos rostos perguntamos: de que retrato falar? E o seguinte rasurará o anterior?

Nesta série, mais do que um rosto definitivo ou uma tentativa serial de aproximação do rosto, parece-nos sobressair sobretudo uma força. Uma força que advém da rasura do seu próprio rosto, da própria possibilidade do retrato. Como se cada peça – rosto - da série fosse atirada contra outra, não a anulando contudo, mas criando um percurso num palimpsesto geográfico do rosto, que não exprime senão um lugar metafísico, indizível. Rosto contra rosto, ponto contra ponto, contraponto.

Derrida aponta que: “Não há auto-retrato sem confissão na cultura cristã. O autor do auto-retrato não se mostra, não ensina nada a Deus que antecipadamente sabe tudo (Agostinho não cessa de lembrá-lo). O auto-retratista não leva portanto ao conhecimento, confessa uma falta e pede perdão.” (Derrida, 2010:121) Esta oração está “sempre certa e sempre errada” e o retrato abre sempre o próximo, já que parte de um erro, erro este que nasce de outro e que proporcionará, ainda, um novo erro.

Porém, a utilização da mão esquerda por parte de Gaëtan vai acrescentando outra problemática à questão do erro. Obviamente, a sucessão de execuções com a mesma mão desenvolve uma destreza técnica que, apesar de involuntária, altera inevitavelmente o conceito de retrato engendrado pelo autor no início dos anos oitenta. Sendo assim, quanto mais o artista se retrata, mais o retrato lhe foge e, parecendo paradoxal, a pergunta que parece sobressair é como desaprender a técnica apurada involuntariamente?

Didi-Huberman, em O que nós Vemos, o que nos Olha, relembra o conceito medieval de imago em oposição ao vestigium e sugere que esta distinção é fundamental para o que apelida de “trabalho de perda” (Didi-Huberman, 2011: 14). O vestigium traria assim “o vestígio, o traço, a ruína”. Este pensamento revela-se análogo à lógica Derrida quando refere que “o ato de ver culmina[sse] sempre na experimentação táctil de um pano.” (Idem)Na ausência dos olhos, funcionam instintivamente as mãos, como num retrato de cegos.

Em D’après Nature (1994), o autorretrato afasta-se definitivamente do conceito de imagem e explora o conceito de impressão. Ao contrário dos autorretratos tratados anteriormente, D’après Nature parece marcar um ponto de viragem na obra de Gaëtan. Nesta obra, a eliminação dos olhos parece acrescentar o caráter ausente do autorretrato. Os traços parecem dar lugar à impressão do rasto, da ruína. De todos as obras do autor, esta será porventura a que nos dá um eixo mais simétrico em relação à superfície. Estes conceitos de ruína e de impressão são indissociáveis, na cultura ocidental, do sudário cristão. Hans Belting trata sublimemente o conceito em A Verdadeira Imagem quando refere que o contacto com o véu revela o verdadeiro corpo de Cristo, mas o sudário não revela ainda a imagem (essa surge numa fase posterior), mas antes a impressão de Cristo. O facto de o conceito de impressão surgir previamente em relação ao da imagem em si desagua na ideia de Didi-Huberman já referida de oposição entre vestígio e imago.

Assim, cremos poder enquadrar D’après Nature na ideia de vestígio e de impressão em vez na de imagem. Neste autorretrato não há uma “impressão” no sentido de mancha, como no sudário, mas um rosto –ou a impressão de rosto- que aparece do traço. Se a inépcia da mão esquerda se vai transformando na técnica retratística mais desenvolvida, os retratos caminham porém para a impressão, para o vestígio, para a ruína, para o impercetível.

Mesmo considerando a possibilidade da ironia no título da composição – o que não seria de estranhar em Gaëtan - , este fazer de Gaëtan coaduna-se, aliás, com um fazer religioso. Castro Caldas lembrava que a arte de Gaëtan ia abandonando a teatralização para se tornar “num murmúrio quase impercetível (...). O teatro transforma-se numa espécie de prece contínua, recitada entre dentes pelos atores, cuja pose é mais um esgar e menos um sinal – absorta, desconcentrada.” (Caldas, 2008: 75-76)

Herberto Helder: Retrato - Tema do excesso

Retrato – Tema
do excesso.
com a mão esdrúxula, como trabalha a morte
que trabalha. É como tudo se cala.

Herberto Helder, Kodak

Ao qualificar de “dramática” a experiência do pintor perante a tela, Deleuze reconhece que o ato de realização artística começa num momento anterior à execução do primeiro traço, como o próprio refere: “[é] um erro acreditar que o pintor se encontra perante uma superfície branca.” (Deleuze, 2011:151). Com efeito, a tela já está preenchida de imagens, no sentido em que o artista já tem os olhos inundados de “clichés”, a primeira tarefa do artista será então a de “esvaziar, desimpedir ou limpar a superfície” (idem), afastando-se assim de grande parte dos pressupostos figurativos apontados à pintura. Relembrando-nos o que Eduardo Lourenço demonstrava quando referia que o artista moderno não reconhecia “nem modelo, nem formas como preexistentes referência. É do caos, de costas voltadas para a antiga luz (que é afinal o passado pictural) que deve retirar a nova luz, necessária para triunfar do deserto e da noite que o cercam e em que se converteu.” (Lourenço, 1996: 55)

Este ato de devastação imagética da memória destrói a ideia referencial que poderia existir e que sustentaria “as relações entre modelo e cópia” (Deleuze, 2011:151). Deleuze nota ainda que Bacon, por não reconhecer valor estético à fotografia, preferiu rodear-se de photomatons para a realização dos seus retratos preterindo imagens que obedecessem a um código visual e artístico canónico. O instantâneo será porventura mais propenso a captação de forças do que a fotografia que teria – e alguma ainda terá – a ambição limitada à cadastragem de um sujeito. Tratar-se-ia, principalmente no caso de Bacon, de “captar forças” como lhe chamou Deleuze. Esta visão releva-se, aliás, concomitante com pensamento de Adorno, quando referia a obra enquanto tour de force. Em feixe de energia, Herberto atesta o conceito de T. Adorno quando escreve:

Que há o mundo, e o mundo sai do corpo,

E existe a memória carregada de formas,

E as formas são sustentadas pela energia

De um imaginário.

Porque o que se vê no poema não é a apresentação da paisagem,

A narrativa das coisas, a história do trajecto,

Mas

Um nó de energia como de um olho ávido

(...) o mundo com rosto de poema,

numa fuga, rapto ou fulgor,

um feixe de energia que se pensa como mundo

(Helder, 2006: 131)

Este texto aponta o caminho da poesia herbertiana. Assim, a fuga da poesia a uma certa horizontalidade narrativa dá lugar à verticalidade “energética” que escapa aos propósitos narrativos tradicionais. Acerca de autorretrato e autobiografia, Michel Beaujour havia apontado o caráter horizontal da autobiografia – já que este conceito obedece a uma lógica temporal, sequencial-, ao contrário do retrato que se constrói através de justaposições de anacronias e, assim, afirma a sua verticalidade. O autorretrato assume-se assim como o resultado de um processo de sobreposição. O “nó de energia” reenvia-nos para a noção de dobra barroca deleuziana e, se não tomarmos o barroco como “essence, mais plutôt à une fonction opératoire, à un trait.” (Deleuze, 2009: 5), será legítimo afirmar que o nó (a dobra sobre si) tem uma presença efetiva na poesia de Helder[13].

Quando Herberto Helder, no texto intitulado desenho (Photomaton e Vox), escreve que “O ponto não é estabelecer um sistema de referências, instituir leis, consumar um mecanismo. Digo que o ponto é propiciar o aparecimento de um espaço, e exercer então sobre ele a maior violência” (Helder, 2006: 79) está de certa forma a desmontar o sistema referencial tradicional: assim se, como o poeta refere em Exemplos, “a teoria era esta: arrasar tudo” (Helder: 2009a: 305) o “aparecimento do espaço” trata da ideia de desimpedimento da superfície de forma a fazer aparecer a palavra. Retomando o conceito de vestigium abordado por Didi-Huberman, não se trata de um vestígio no sentido de ruína, de morte, mas antes um aparecimento da palavra, ainda que residual quando pensamos em termos referenciais, mas que determina uma certa “ilegibilidade poeticamente controlada” como lhe chamou Pedro Eiras (2007: 136). É necessário subtrair as imagens à vista, subtrair até “propiciar espaço” para o poema. Esta subtração ao espaço é também uma subtração do rosto em Helder:

Esse truque demoníaco de apagar de repente no espelho o empenhamento da nossa imagem, a evaporação total dos indícios de que fomos espiões de uma identidade, uma apaixonada ligação, a magnificência do retrato – é isso que nos rouba o peso e subtrai a nós mesmos, aos espelhos da matéria. (Helder, 2006: 166)

A “magnificência do retrato” que Helder refere, é, afinal, a subtração e o “roubo”. A imagem é o resultado de uma dobra sobre si mesmo, a imagem refractária, devolvida pelo espelho que se dobra perante o olhar.

Se referimos anteriormente os mitos de Orfeu e de Perseu para ilustrar um certo fazer artístico, vimos que estes mitos se sustentam, neste contexto, através da anulação dos sentidos. Ora esta anulação levaria a uma rasura da memória e, consequentemente, à desaprendizagem de uma certa técnica. A obra de Herberto Helder, tal como a de Gaëtan, parece-nos passar por este processo de esquecimento voluntário, de cegueira consentida para chegar à forma do desenho ou do poema. Eiras realça que “há também o tacto como forma de saber (a tal ponto que, por vezes, o olhar parece tornar-se uma espécie de tacto [...] e a ambiguidade da mão, que ora escreve, ora destrói; ora conhece, ora perde.” (Eiras, 2007: 136). O tacto herbertiano, tal como Eiras o propõe, reflete o que Didi-Huberman referia sobre o trabalho de perda, ou “como se o acto de ver culminasse sempre na experimentação táctil de um pano [pan] erguido diante de nós.”(Didi-Huberman, 2011: 11).

O filósofo francês recuperava esta aporia através de Ulisses, de James Joyce. Assim, a expressão “shut your eyes and see”, proferida por Stephen Dedalus, relaciona-se a interrogação que a mesma personagem colocava diante do espelho (“Quem me escolheu este rosto?”) como que petrificado pela realidade medusante. Esta insustentabilidade do rosto em relação ao “eu” está desde logo presente na pergunta e daí o estranhamento que suscita a frase “Quem me escolheu este rosto?”. Primeiro, o ato de contemplação do rosto implica uma experiência de natureza autoscópica e o consequente afastamento do rosto do “eu”. Segundo, ao destacar o rosto, ao vê-lo fora de si, estamos sempre a perder. O fazer poético de Herberto Helder revela-se num trabalho órfico no sentido em que, à imagem de Orfeu, a anulação dos sentido ocorre para se reunirem num outro, diríamos extrassensorial, além da palavra e além do corpo da poesia: “O dramático esforço de Orfeu, que desce aos infernos para reunir a sua dispersão na unidade final do canto, é tarefa para cada um – e isso baste, mesmo que não sirva para nada, além de servir para a possível salvação de quem nela se empenhe.” (Helder, 2006: 134). A ideia de salvação resulta da necessidade de reunificação para a unidade, mas para uma unidade, tal como Pedro A. H. Paixão já havia referido, na voz impercetível[14] ou, na terminologia herbertiana, na vox. O conceito de voz em Helder aproximar-se-ia, assim, do conceito de pneuma.

Em os ofícios da vista,texto incluído em Photomaton e Vox, a questão da cegueira é explorada como caminho para a sabedoria, o ver é aqui retratado como uma atividade insuportável, como se de um crime se tratasse.

Preciso de ócio, dizia ele, preciso dos meus olhos, quero ver como é. E viu como era. Viu o ritmo humano estabelecendo relações no espaço, viu as coisas entre si, o movimento primitivo dos animais, os ciclos vegetativos, as imagens nocturnas e diurnas. (...) Já tenho a minha sabedoria, disse o último homem, estou triste. E fechou os olhos, porque estava cansado da sua ciência da visão. Quero morrer (...) Esta é a minha sabedoria, tenho os olhos queimados. (Helder, 2006: 108-110)

A visão do mundo, do “ritmo”, das “relações” e do “movimento” queimam os olhos, ou, nos termos derridianos já propostos, petrificam. O acerto faz-se precisamente pelo tipo de cegueira que Helder refere em A faca não corta o fogo:

se me vendam os olhos, eu, o arqueiro! Acerto

em cheio porque não o vejo:

por pensamento e paixão,

ou porque foi tão sentido o vento a luzir nos botões dos salgueiros,

como se atirasse do outro lado do vento,

ou na solidão de um sonho,

ou como se tudo fosse o mesmo: flecha e alvo –

e

cego

acerto em cheio:

porque não quero.

(Helder, 2009a: 607)

O acertar no alvo acontece por cegueira e, “como se tudo fosse o mesmo: flecha e alvo” (ou mão e traço, arriscamos nós), acontece por não querer, pois a vontade retratística é, afinal, sinónimo de uma certa impossibilidade retratística. Esta impossibilidade é, aliás, extensível à arte mais figurativa, a mesma impossibilidade que Herberto aborda num dos seus mais famosos textos, Teoria das Cores. Neste texto, o artista debate-se com a constante transformação do objeto retratado, sem nunca saber o que “agarrar”[15]. O que acontece ao pintor é precisamente o momento de cegueira, o que o leva a acertar, porque não quisera, porque não caíra na “insídia do real” (idem).

Vimos, no texto ofício da vista, que a cegueira parece ser a chave do ofício que é escrever e vimos, acerca de Gaëtan, como a anulação dos olhos proporciona, no mito de Orfeu, o surgimento da voz, da alma.

O texto Desenho, incluído em Photomaton & Vox, realça esta ausência do sistema referencial, favorecendo antes o “aparecimento de um novo espaço”. O texto inicia-se da seguinte forma:

O ponto não é estabelecer um sistema de referências, instituir leis, consumar um mecanismo. Digo que o ponto é propiciar o aparecimento de um espaço, e exercer então sobre ele a maior violência. Como se o metal acabasse por chegar às mãos – e batê-lo depois com toda a força e todos os martelos. Até o espaço ceder, até o metal ganhar uma forma que surpreenda as próprias mãos. (Helder, 2006: 79)

No artigo “Em torno e depois de Ou o Poema Contínuo”, Pedro Eiras coloca uma questão que parece ser denominador comum a todos os estudiosos da obra herbertiana. Como ler Herberto Helder? O singular método organizacional do poeta quanto à publicação dos seus livros abre portas, antes ainda de mergulharmos na obra, para duas vias interpretativas. Poderemos considerar as reedições da obra herbertiana como anulação das posteriores ou deveremos atender à obra como um todo orgânico que supera o seu corpo provisório?

Considerar os textos olvidados nas mais recentes reedições leva ainda a considerar outro aspecto. Que lugar ocupariam estes textos? Seriam parte de um corpo palimpséstico no qual se vão acumulando planos e sobreposições, rasuras e traços que, afinal, atuam na mesma superfície estética? O que equivale a perguntar que plano ocupa cada texto na obra poética de Herberto Helder. A arte contemporânea parece esquecer o que a planos diz respeito e, como notou Diogo, “tratar-se-ia da elisão do abjecto, pela indistinção, o longe o vago e o sublimado dos últimos planos.” (Diogo, 1990:11). Assim, a obra poderá jogar com uma indistinção de planos, sem nunca perder o seu sentido primeiro. Parece-nos haver, neste constante movimento frente-trás, uma indeterminabilidade em relação ao que constitui o objeto estético. Porque, como aponta Eiras, a poesia herbertiana pauta-se pela indeterminação interpretativa. A obra ocupa assim um limbo interpretativo determinado pela “ilegibilidade poeticamente controlada”. A poesia herbertiana trata do indizível, oculto, de uma certa impossibilidade hermenêutica, da ilegibilidade[16] . Confrontamo-nos assim com uma obra que, não sendo matéria (totalmente) ilegível, ressalva um qualquer grau de indeterminação.

A promessa adiada ad aeternum de silêncio parece insistir no caráter paradoxal da obra que se reescreve, ganha um corpo consideravelmente ampliado. Pois o caminho para o silêncio não se pavimenta no vazio ou na não-fala, mas antes aponta, ao invés, para o invisível, para o impercetível. Em a carta do silêncio, Herberto Helder refere que

Há às vezes uma tal veemência no silêncio que surge inquirir se a poesia não é uma prática para o silêncio. A poesia vem dele, atravessa-o na pauta verbal como se apurasse a subtileza de um timbre último, evaporável. Atravessa-o então e procura-o no próprio centro onde nasceu. Há uma tensão extenuante neste movimento do silêncio sobre si mesmo. (Helder, 2006: 162)

Esta “tensão extenuante” resulta da dobra do “silêncio sobre si mesmo”. A obra configura-se então como silêncio, mas um “silêncio murmurante”, como que em pneuma.

A ilustração de A Faca não Corta o Fogo (2008), da autoria de Ilda David, parece oferecer, em termos ilustrativos, o que temos vindo a referir. Concedendo pouco em termos paisagísticos (a figura está centrada em fundo negro), a ilustração serve os mesmos propósitos que Saturno devorando a sus hijos, de Goya, aquando a publicação de Ou o Poema Contínuo. Da boca, através da língua, surge a obra, pouco definida, confundindo-se assim com a mão sinistra como que em pneuma. Como se as seiscentas e vinte e três páginas que se encerram entre as duas ilustrações de Ilda David fossem metaforicamente condensadas em pneuma. Em Do mundo, o elemento é referido da seguinte forma “ – como se diz: pneuma, / terrífica é a terra e no entanto nada mais do que um pouco: / criar matérias -.” e assim se apresenta a obra de Herberto: como uma máquina de “criar matérias” que, embora não referenciais, ocupam-se do oculto ou, se preferirmos, do ar, do fogo, do sopro, da alma, de uma quintessência.

Contrariando o conceito dado por Diogo, o oculto acaba por ser uma função do autorretrato em detrimento da autobiografia, mas em concordância com a sua visão de “matéria ilegível” numa “luz matizada” – ou num fundo de Goya ou de Ilda David - que “opera do lado de fora da necessidade, e torna visível a luz da obra com a sombra que lhe mente.”. Devora-se a energia, recriada em matéria impercetível, mas o impercetível acaba por ser a língua de Herberto Helder[17], o poema. Este idioma constitui-se pelo processo de assimilação da matéria primitiva para depois a expelir em poema. Luís Maffei notava acerca da ilustração de Ou o Poema Contínuo

o poeta devora o poema ou pelo poema é devorado (...) o poeta devora o “idioma bárbaro” e produz o poema, vomitado, cuspido: assim devolveu Saturno os filhos que havia devorado, assim devolve o poema ao mundo, em forma de poemas, o que ingerira como “bárbaro” alimento. (Maffei, 2007: 459)

Este processo revela-se análogo àquele que Luís Miguel Nava apontava em Os Comedores de Espaço, do livro Vulcão:

Nada indicava que atrás deles não surgissem criadores de espaço capazes de repor as coisas nos devidos lugares ou que os próprios comedores não pudessem vomitar tudo o que haviam devorado. Mas mesmo nesta circunstância o mais provável era que o espaço, transformado entretanto nas entranhas de quem deglutira, pouco tivesse já a ver com o que os habitantes haviam conhecido, nele se misturando coisas que os comedores trouxessem na memória e que decerto lhe viriam agarradas quando violentamente o expelissem. (Nava, 2002: 256)

As palavras de Nava parecem inscrever-se no processo herbertiano de poema e confluem no que Herberto chama de «idioma bárbaro», pertencente a um espaço que lhe é – sempre – exterior para produzir o lugar-poema na sua devolução ao mundo depois de metamorfosear o real. O processo de criação provém, também, da rasura.

Em conclusão, poderíamos apontar conceitos como o apagamento, o impercetível e o silêncio para traçar aquilo que nos parece constituir marcas da autorretratística contemporânea. Os exemplos propostos parecem demonstrar uma tendência para a fuga à representatividade e, ao vermos que os autorretratos de Gaëtan jogam constantemente com as noções de representatividade, percebe-se que as suas obras colocam em causa o próprio conceito de autorretrato. Na poesia de Herberto Helder, o retrato - o “photomaton” - é, à imagem de um autorretrato de Gaëtan, um processo que caminha para o invisível, para uma camada de silêncio que se acumula em sucessivas sobreposições e que constitui a poesia herbertiana. Mais do que a construção do rosto, existe, em Gaëtan e Helder, a sua construção constante ou a captação de forças em esforço numa “tensão extenuante” (Helder, 2006: 162), tensão que poderia revelar-se a mesma que a mão esquerda de Gaëtan usa para “executar” o retrato, ou “a(ssa)ssinar” o rosto, na terminologia herbertiana.

 

Referências

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Notas

[1] Em Images malgré tout, Didi-Huberman retoma as palavras de Gérard Wajcman para defender esta noção “de image-bouclier”: “La photographie, même la plus crue, la plus exacte de ce qui se passait, toute image de l'horreur est un voile de l'horreur; toute image, parce qu'elle est image, nous protège de l'horreur.” (Wajcman apud Didi-Huberman, 2003: 204)

[2] Acerca do erro, a interpretação da cegueira derridiana passa pelo conceito e a referência do autor ao jogo da cabra cega, implica, obviamente a componente errática do autorretrato.

[3] Note-se os apontamentos de Derrida acerca do kune de Hades (2010: 90)

[4] Na primeira parte de Fotografia e Verdade, Margarida Medeiros (2010) abre o primeiro capítulo referindo esta relação entre fotografia e pulsão de morte e desenvolve a questão dos retratos de mortos numa perspetiva historicista.

[5] Vejam-se as notas de Paixão acerca da diferença entre voz e alma (2008: 85).

[6] Elísio Gala refere “Há um jogo de palavras entre aides ‘invisível’ e Haides ‘Hades’ bem como entre Hades e como destino das almas dos mortos e Hades como o Deus que as preside. A etimologia de Hades como o ‘Invisível’, sendo de uso popular, permite uma aproximação ao valor espiritual que decorre, de atribuir ao Invisível a pura sabedoria que as divindades ctónicas ou infernais possuíam (Crátilo, 404a), perto das quais a alam purificada encontra asilo.” (2003: 32)

[7] Derrida notava que, em retratos de cegos, as mãos ganhavam importância especial por substituírem sensorialmente o olho.

[8] Partilhamos assim a visão de José Gil em “A arte do retrato”, quando afirma que o que se vê quando se julga captar um rosto “não [é] o conjunto de sinais expressivos visíveis, não o fundo informe invisível ou o “deserto” à superfície, mas a curva que desenha o contínuo das pequenas percepções.” (Gil, 2005:35)

[9] Na sua etimologia, path e pathos partilham a mesma raiz. O path não é senão um caminho sinuoso até chegar ao destino. Não deixa de ser curioso o facto de uma personagem ter muitas vezes de seguir este caminho para se tornar herói.

[10] Castro Caldas (2008:74) refere-se à série Contra-mundum como “um permanente teatro do gesto”.

[11] “Jean Sébastien Bach, une figure incontournable dans les arts plastiques: la fugue telle qu’elle est perçue par les plasticiens au vingtième siècle.”

[12] “Le haut et le bas: l’accord parfait de la scission, ou la résolution de la tension, se fait par la distribuition de deux étages étant d’un seul et même monde (la ligne d’univers). La matière-façade va en bas, tandis que l’âme-chambre monte. Le plis infini passe donc deux étages.” (Deleuze, 2009: 49)

[13] Para as relações entre barroco e Herberto Helder, veja-se o artigo de Eunice Ribeiro (2009) O Sombrio Trabalho da Beleza.

[14] Acerca da voz e do mito de Orfeu, vejam-se as nota nº. 5 e 6.

[15] “Os elementos do problema constituíam-se na observação dos factos e punham-se por esta ordem: peixe, vermelho, pintor – sendo o vermelho o nexo entre o peixe e o quadro através do pintor.” (Helder, 2009b: 21)

[16] Parece consensual a ideia de ilegibilidade na poesia de Herberto, veja-se o primeiro de A Alquimia da Linguagem Del Farra (1986), porventura um dos estudos mais importantes para a leitura de Herberto Helder onde a autora explora exaustivamente o conceito de ilegível.

[17] Note-se o artigo de Rosa Maria Martelo, “Em que Língua escreve Herberto Helder?”, na qual a autora refere acerca do poema “Retrato oblíquo...” que “caminha para o excesso, para o fogo e para uma intensidade absoluta” (Martelo, 2009: 166)