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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.26 no.3 Braga  2012

 

A pintura do autorretrato contemporâneo em portugal: breve panorâmica

Contemporary self -portrait painting in portugal: a brief overview

Maria Emília Vaz Pacheco*

*ISLA, Santarém, Portugal

mevazpacheco@hotmail.com

 

RESUMO

Associado a histórias de fascínio, envolvendo conceitos como mitologia, lenda, simbologia, narcisismo, afirmação, reivindicações múltiplas, semelhança, realismo, naturalismo, introspeção… o autorretrato é repositório de uma imensa complexidade, suscetível de formulações inesgotáveis, na ótica da semântica e da polissemia.

Na época medieval, a imagem que de si deixou o pintor remete para o esbatimento da identidade individual, dada a sua inserção em contextos de representações sagradas, ou a sua apresentação como personagem histórica ou mitológica.

A autonomia intelectual foi reconhecida durante o Renascimento, sensível à representação do indivíduo e à valorização do retrato, com base na fidelidade ao motivo e na singularidade do indivíduo. O autorretrato conquistou a sua independência.

Com o Romantismo afirma-se o autorretrato introspetivo, a caminho da negação da autoimagem fundamentada na semelhança/parecença, que vai acompanhar as tendências do não figurativismo, as quais aparecem e se desenvolvem no século XX.

O autorretrato continua a mediar a busca identitária.

Palavras-chave: autorretrato; auto-observação; complexidade; autoconsciência; metáfora; signo.

 

ABSTRACT

Self-portrait is associated with fascinating stories and involves concepts such as mythology, legend, symbology, narcissism, affirmation, multiple claims, resemblance, realism, naturalism and self-examination. Self-portrait is a repository of great complexity and is in the origin of copious definition.

Contrary to previous sacred representations, historical images and mythological characters, in Middle Ages the painter's individual identity was less represented in self-portraits. Individual valuation and appreciation of portraits raised the intellectual autonomy characteristic of Renaissance. Self-portrait gained independence then. During Romanticism, painters prefered to abandon figurative process in pictorial representation. Introspective self-portrait aroused and continued to grow until the twentieth century. Currently, the self-portrait is still looking for identity.

Keywods: self-portrait; self-examination;complexity; metaphor;sign

 

I – Nas Origens do Autorretrato: Lenda, Mito e História

“Donner aux mots la vie mystérieuse de l’art”

Guy de Maupassant (1850-1893)[1]

Uma das formas primordiais do conhecimento intuitivo remonta às narrativas mitológicas correspondentes aos alvores das histórias de organização dos povos primitivos. A conceção do mundo trespassa nas descrições dos fenómenos da natureza personificados e animados, fixadas em conformidade com a imaginação desses povos da Antiguidade.

A transmissão oral de lendas[2] e mitos[3] suscitou a sua modificação e enriquecimento no decorrer dos séculos, incorporando um património intelectual e civilizacional específico.

Deuses, heróis e seus descendentes, enquanto corpus da herança mitológica grega que integrou a cultura ocidental, são intérpretes desse sentido anímico e antropomórfico que caracteriza o mythos dessa civilização. Por oposição caracterizou Platão a logos, a argumentação que com base na razão leva à reflexão filosófica.

A fábula de Dibutades[4] à qual tradicionalmente é atribuída a origem mítica do retrato, não deixa de se aproximar do mito de Platão sobre a alegoria da caverna, sendo este último genericamente aceite como a narrativa pioneira que sustenta a teoria do conhecimento no ocidente[5].

A projeção, enquanto motivo presente nas duas situações mitológicas, correlaciona a representação artística e a representação cognitiva: embora se trate de duas narrativas diferentes, verifica-se um certo paralelismo de estratégias equacionando a questão da visibilidade e da representação, destacando-se que no mito de Platão visualidade e cognição apresentam implicação recíproca.

 

 

Stoichita interpreta o mito de Platão como a construção de um cenário que toca os limites entre os mundos da aparência e da realidade, vendo nas sombras platónicas o antecedente da imagem do espelho e no eco o resultado dos sons do fundo da prisão – “Platão introduz um elemento auditivo que devolveu os sons (…) que vem reforçar a ilusão primitiva que é de ordem visual. (…).

A sombra e o eco aparecem em Platão como as primeiras falsas aparências (uma ótica, outra auditiva) do real. Assim, a sombra precede, mesmo nos mundos dos logros óticos, o reflexo do espelho.

Trata-se, nesse estádio do pensamento platónico, de uma intenção clara de colocar a sombra nas origens da duplicação epifenomenal, antes da imagem do espelho (…) para Platão, sombras e reflexos especulares são aparências estritamente ligadas, só sendo diferenciadas pelo seu «grau de claridade ou de obscuridade»[6].

Outra ideia relacionada com o mito de Platão implicada na abordagem do autorretrato é a mimesis, em paralelo com o estrato social do pintor, o lugar da arte na cidade ideal e a associação da imagem pintada à imagem especular:

“­_ (…) se tu quiseres agarrar um espelho e expô-lo de todos os lados, em menos de nada executarás o sol e os astros do céu, em menos de nada, a terra, em menos de nada tu próprio e os outros animais e os móveis e as plantas e todos os objetos de que se falava ainda agora.”[7].

Explicitamente, Platão estabelece comparação entre imagem pintada e imagem especular, suscitando reflexão sobre a fragilidade do mimetismo – “A imagem pintada é, a exemplo do reflexo especular, pura aparência (phainomenon), desprovida de realidade (aletheia). (…) Deste modo assiste-se, parece-nos, à inscrição e mesmo ao triunfo do espelho no seio do sistema das representações epifenomenais” – e a implicação recíproca entre o reflexo especular e o estatuto da pintura no plano da mimética – “Se, na tradição de Plínio, a imagem «capta» o modelo reduplicando-o (tal a função mágica da sombra), em Platão, ela restitui a sua semelhança (tal é a função mimética do espelho) ao representá-lo.“[8].

Dos estudos efetuados por Lacan e por Piaget a chamada fase ou «estádio do espelho» (Lacan), correspondente ao período que vai entre os seis meses – quando a criança reconhece a própria imagem no espelho – e até cerca dos dezoito meses, quando distingue a projeção da sombra, sendo consensual nos nossos dias a possibilidade de interpretação do mito de

Narciso[9] e da sua paixão pelo seu próprio reflexo na água, no enquadramento da teoria de Lacan, para quem o «estádio do espelho» “(…) pertence principalmente à identificação do eu, enquanto que a sombra, ela, diz respeito sobretudo à identificação do outro. Sabendo isso, compreende-se por que razão Narciso se apaixonou pela sua imagem especular e não pela da sua sombra. E igualmente se compreende porque, em Plínio, a projeção amorosa da jovem rapariga tem por objetivo a sombra do outro (do seu amante). Encontramo-nos sem dúvida perante dois cenários, diferentes pelas suas essência, origem e história. De facto trata-se de duas modalidades opostas (mas que é possível por vezes colocar em relação) da conexão à imagem e à representação. (…)

 

 

Os artistas que, nos séculos seguintes, ilustraram o mito de Narciso sublinharam preferencialmente o caráter efémero do reflexo especular (…) mas evitaram a representação da «sombra», que em Ovídio não era senão uma metáfora. (…)

A primeira parte da história de Narciso era estática, a segunda é dinâmica. (…) A vista engana e a prova de realidade que deveria ter chegado pelo tocar, não se produz. Nesse esforço de transgressão descrito por Ovídio (Metamorfoses), verdadeiro bailado a dois, Narciso ainda acredita que a imagem é um outro. A pretensão vã destinada a transformar a vista em abraço chega ao drama, ao momento culminante em que o herói realiza, finalmente, o «estádio do espelho». A imagem (imago) já não o engana, ela já não é uma «sombra», ela já não é o outro, mas ele mesmo: «Isto sou eu»/Iste ego sum[10].

O mito de Narciso assenta na autocentralização da imagem refletida, suscetível de interpretações turbulentas, introduzindo a mobilização de conceitos como falácia; ilusão; simulacro; engano, conceitos por sua vez presentes no registo do autorretrato. Da transversalidade de leituras dos dois mitos, de Dibutades e de Narciso, decorre a inscrição da origem do traço (desenho), da pintura (sombra/mancha) e da própria imagem (imago) na História da Arte.

No fresco sobre “A Origem da Pintura” (1569-1573) que Vasari (1511-1574) incorporou na sua “Casa Vasari” em Florença, pode-se observar o recurso a sombra plena e definida.

Momentos distintos – Dibutades e Narciso – visões afinal muito próximas, retomados nos séculos seguintes como metáfora da pintura, sempre nas adjacências do próprio autorretrato.

“A batalha de Issos”, pintura mural do final do século IV a.C.[11], comemorando a vitória de Alexandre o Grande sobre Dario (rei da Pérsia), para além da rigorosa caracterização física e psicológica de cada uma das personagens – incluindo os dois protagonistas – ilustra a reflexão de um rosto no escudo de um dos combatentes cuja imagem reúne fortes probabilidades de ser um autorretrato de Apelles, retratista oficial preferido de Alexandre.[12]

 

 

 

 

Sendo “A batalha de Issos” uma obra-prima que celebra os feitos e a grandeza da cultura helenística, não será difícil aceitar a tese do autorretrato do principal pintor oficial – de cujo registo dão notícia as fontes clássicas – ter funcionado como aditivo que, em jeito de assinatura, sublinharia a importância da obra. Resta conjeturar sobre os principais e verdadeiros motivos artísticos da autorrepresentação: autoglorificação? Virtuosismo?

II – Autorretrato e Autonomia Intelectual do Pintor

«OGNI DIPINTORE DIPINGE SE»[13]

Segundo alguns historiadores de arte, terá sido Martin van Heemskerck (1498-1574) quem terá ouvido a expressão que se converteria em adágio “todo o pintor se pinta a si mesmo”.[14].

Cabeça e mão, intelectualidade e técnica, são as duas faces da mesma “moeda”, metáfora do autorretrato e, por extensão, da criação visual.

No diálogo central que se estabelece entre os dois agentes que são o pintor e o modelo, há uma particularidade no caso do autorretrato: modelo e executante são um só indivíduo, há uma unidade na dualidade do diálogo – expressão/não expressão; consciente/inconsciente – que ocorre (supostamente de modo honesto) entre si e si próprio, permeabilizado pelo sentido de si. Três pontos referenciais, pois: o “eu”/sujeito, o “me”/reflexivo e o trabalho criativo ou, por outras palavras, um dos fatores determinantes na autorrepresentação visual será o modo como o autor concebe e constrói as relações estabelecidas entre as três referências.

Se o desenho implica um diálogo entre o artista e a obra, enquanto que a pintura é o resultado de uma reflexão mais aprofundada, até que ponto se pode interpretar a autoimagem como ressonância da subjetividade do artista criador? Quais os limites para a dinâmica da estratégia interpretativa? “«A Pintura é uma ocupação mental» (pittura é cosa mentale), escreveu Leonardo da Vinci, , e Miguel Ângelo permaneceu igualmente firme «nós pintamos com o nosso cérebro, não com as nossas mãos» (si dispinge col ciervello et non com le mani) (…) Vasari sustentou que só uma «mão treinada» podia mediar a ideia nascida no intelecto, ou, como Miguel Ângelo colocou num famoso soneto, «a mão que obedece ao intelecto» (la man che ubbidisce all’intelletto) – por outras palavras, a «mão instruída» (docta manus) que Nicola Pisano tinha reivindicado possuir três séculos antes. (…) «Habbiamo da parlare con le mani», Annibale Carracci é suposto ter dito cerca de 1590 (…)”[15].

A autorretratística autónoma desenvolve-se no século XVI paralelamente ao reconhecimento da dignidade do trabalho produzido para as cortes principescas altamente competitivas na promoção de uma cultura cortesã personalizada e digna. Nessa medida, as autoimagens dos pintores – e outros artistas – podem ser interpretadas como celebrações próprias das suas vidas pessoais, estratégia para ampliar o reconhecimento social da posição conseguida por mérito artístico.

Da Antiguidade Clássica, prolongando-se durante a medievalidade, chegaram até nós obras em que a imagem do autor pode ser interpretada como um substituto da assinatura daquele, prevalecendo a associação da imagem à sua autoria, sobre a exigência de rigor no traçado das reais linhas do rosto, deste modo se descurando a questão teórica da semelhança.

Rufillos (c. 1150-1200), monge do mosteiro de Weissenau e iluminador célebre, autorrepresentou-se pintando-se no interior do R do “Saltério de Genebra” (Fig. 5), sentado a pintar e ilustrando a cena com os instrumentos do ofício e recipientes de cores necessárias à prática pictural. Todavia, apesar do retrato em si mesmo exibir traços realistas e algum esmero na execução, não se trata ainda de uma identidade individual, específica de um indivíduo – que é diferente do caráter genérico, sendo este afeto ao género e não ao indivíduo – e como tal não integra a classificação de um verdadeiro autorretrato.

 

 

A identidade indica uma referência comum e transversal na representação, ou seja, a relação de pertença do indivíduo a um determinado corpo social ou congregação.

 

 

Sendo certo que existe algum consenso relativamente à emergência do autorretrato independente no século XV, na Itália e na Flandres, e mesmo considerando que aquela que é hoje a mais antiga e mais importante coleção de autorretratos do mundo – com cerca de 1650 exemplares – terá sido empreendida em 1664 pelo Cardeal Leopoldo de Medici (1617-1675)[16], há que reconhecer que, já no final da Idade Média, a afirmação de uma identidade de partilha e de pertença a um grupo com interesses sócio-corporativos em comum se verificara – o escultor da região alemã de Souabe (antiga Checoslováquia) Peter Parler (1330-1399) colocou o seu próprio busto no trifório da Catedral de Praga (c. 1370-1379), entre os vinte e quatro bustos dos benfeitores associados à construção do edifício.

Lorenzo Ghiberti (1378-1455) socorreu-se de estratégia semelhante à de Peter Parler, ao esculpir o seu busto, em bronze, na “Porta do Paraíso” (1447-1448) do Batistério de Florença, colocando a sua assinatura/imagem à margem das cenas historiadas, no rebordo da porta, através da estratégia de inscrição do busto num medalhão, retomando a tradição da estatuária antiga – que reservava este cariz de representação aos deuses e, depois, aos imperadores romanos – em associação com a necessidade de afirmação da sua dignidade profissional.

Nestas circunstâncias, interessará à abordagem do autorretrato independente a identidade que referencia as qualidades características individuais, ou seja, o conjunto de indicadores de caráter particular que remetem para a semelhança com o próprio indivíduo, assim propiciando a identificação do modelo com o sujeito, ao qual está subjacente um ato de intenção no registo da autoimagem, consentidamente oferecida à visualidade.

Na autorretratística renascentista viu Joanna Woods-Marsden uma produção em que “Os autorretratos autónomos eram muitos deles trabalhos acabados, dirigidos a uma audiência que ultrapassava o círculo imediato da família ou dos companheiros de ofício"[17].

Benazzo Gozzoli (1420-1497) fez-se representar inserindo-se no centro da composição de “O Cortejo dos Magos” (1459), Florença, Capela Palácio Médici, dirigindo o seu olhar para o espectador e inscrevendo o seu nome no gorro vermelho que exibe na cabeça. Se for considerada a hipótese de ter sido dada continuidade à herança da Antiguidade, a imagem do pintor colocada no seio da sua própria obra poderá ser entendida como um substituto da sua assinatura.

O pintor dissimulou a própria imagem entre as múltiplas personagens, na dupla condição de participante/figurante e de espectador da cena que integra: trata-se de um autorretrato dissimulado, “in assistenza”.

A estratégia idêntica recorreu Sandro Botticelli (1445-1510), em “Adoração dos Magos” (1475), Galeria Uffizi, Florença, integrando a composição como um figurante da assistência, dissimulado em evento que mobilizava um número considerável de participantes. O esquema da personagem, correspondente ao autorretrato, dirigindo o olhar para o observador, a par do porte majestático da figura de corpo inteiro, exibindo uma toga de tonalidade amarelada, indiciam a consciência da dignidade da representação veiculada pelo pintor.

Albrecht Dürer (1471-1528) apresenta ao espectador, num dos muitos autorretratos que registou, um enfoque nas duas vertentes que contribuíram para o reconhecimento e emancipação do estatuto social do pintor e da própria autorretratística: uma visão intelectual a par da destreza e da habilidade manual. No “Autorretrato com pele” (1500), Alta Pinacoteca, Munique, Dürer entrega-se a um exercício de perícia no escrutínio do rosto, concentrando-se no olhar – dirigido para o observador – intenso, tradutor de uma profundidade espiritual inequívoca.

Rafael (1483-1520) autorrepresenta-se na “Escola de Atenas” (1510-1511) Palácio do Vaticano, Roma,no papel de “admonitore”/narrador/comentador (que adverte) para a cena apresentada: o olhar apela, convida a seguir a condução proposta, dissuade pela sua intensidade a ameaça de qualquer outra via interpretativa. Trata-se de um exercício de guia para a leitura do quadro, surgindo o pintor/artista como testemunho irrefutável. O espectador é interpelado pelo olhar para si dirigido pelo construtor do espaço pictural onde a história se processa, convidando-o a entrar nela e a aderir ao enunciado.

III – Vivências Através do Autorretrato: à Descoberta de Si ou a Mão como Fala

Espelho e intimismo, autorretrato, metáfora e complexidade: como tal estratégia de leitura se aplica ao autorretrato de Francesco Mazzola dito o Parmegianino (1503-1540), de 1524, intitulado “Autorretrato num Espelho Convexo”!...

 

 

Subtileza técnica e efeitos bizarros contribuem para a qualidade deste autorretrato, onde cada detalhe refletido, luzes e sombras, acentuam a naturalidade da cena (de evidente originalidade na época) indiciadora de um intelecto complexo e extraordinariamente criativo. Refere Joanna Woods-Marsden a propósito desta obra: “No centro do compartimento e da obra de arte, o autorretratista está vestido como um nobre cortesão, em pele e cambraia, e a sua mão, transformada em qualquer coisa diluída, branca e aristocrática, está adornada com um anel de ouro.”[18].

Seguindo o princípio de que os dois principais centros de interesse em qualquer retrato são a sua cabeça e as mãos, não pode a interpretação circunscrever-se à linearidade: a cabeça, qual metáfora do intelecto gerador da conceção, e a mão que executa, que concretiza a ideia do pintor que de si mesmo é modelo, sublinham o exercício de virtuosismo apresentado.

Sendo este considerado o primeiro autorretrato autónomo italiano pintado no interior de um tondo, as conotações são ainda potenciadoras de outros diálogos e interpretações. A lembrança da tradição dos autorretratos contidos em medalhas, pela circularidade; as formas curvas e esféricas e o círculo, tidos como geometricamente de grande perfeição, remetendo para a formatação e representação das esferas terrestre e celestial – “Na verdade, a cabeça esférica de Parmigianino dentro do trabalho «esférico», virando-se no interior da sua estrutura circular, evoca uma analogia entre macrocosmo e microcosmo: a estrutura do cosmos e a da cabeça humana, aqui colocada como foco central da composição e do artefacto.”[19].

Denotando uma profunda autoconsciência relativamente ao estatuto artístico e social do pintor, neste autorretrato a mão é assumida como atributo do empenho da criação visual (aqui entendida como associação do intelectual com o pleno domínio da técnica pictural), a qual se celebra de modo fascinante nesta obra.

Sofonisba Anguissola (1532-1625) produziu diversos autorretratos cujo destino generalizado eram patronos interessados, a quem eram enviados como ofertas, dada a barreira de género que a impedia de entrar em competição de caráter profissional com pintores do sexo masculino, pagos para executarem trabalhos acertados.

Este “Autorretrato ao Cavalete Pintando um Painel Devocional” (1556) (Fig. 8) pode contextualizar-se numa perspetiva de autopromoção, em que a artista no ato de pintar é, simultaneamente, assunto e objeto, autora e modelo, segurando com delicadeza os instrumentos da Pintura, pincel, tento e paleta sobre a prateleira do cavalete. Curiosamente, é no decurso da segunda metade deste mesmo século XVI que os pintores reivindicam o seu estatuto profissional com recurso às ferramentas do seu ofício.

 

 

Clara Peeters (1594-1657) autorretratou-se, col. privada, cerca de 1610 sob o título sugestivo de “Vanitas”, ou a morte como argumento no autorretrato. A figuração da natureza-morta segundo o princípio de oposição entre o sentimento da beleza emanado da natureza luxuriante, e o seu contrário, o sentimento do efémero e transitório. Nesse conjunto de elementos da natureza, que progressivamente se vai degradando, se incluem a juventude e a beleza feminina e, como tal, tais motivos incorporam também o tema da “Vanitas”.

O autorretrato de Artemisia Gentileschi (1593-1652) intitulado “Auto- Retrato como Alegoria da Pintura” (1638-1639) , Royal Collection, Londresd, filia-se na reivindicação do estatuto intelectual da artista, enquanto pintora ou, por outras palavras, a personificação feminina da Pintura e a identificação direta da artista com a arte a que alude. Este autorretrato representa um ato de coragem da parte de uma mulher pintora, na medida em que todo o esquema apresentado representa uma subversão dos valores artísticos (os quais privilegiavam o intelecto masculino e remetiam para um plano de passividade o trabalho artístico feminino), reunidos na dupla dimensão intelectual e manual: o arco descrito pela cabeça e pelas mãos articula metaforicamente ambos os domínios subjacentes à execução do trabalho artístico, paralelamente com a figura enérgica e vigorosa que domina a composição, cuja construção enfatiza a afirmação da criatividade da pintora. O acrónimo A.G.F. colocado sob a paleta sublinha a tenacidade desafiadora e a firmeza da sua atitude num meio artístico adverso.

Rembrandt (1606-1669) foi um dos artistas que mais autorretratos produziu, cobrindo a sua carreira artística de mais de quarenta anos. Esta obra sob a designação de “Autorretrato como Apóstolo Paulo”, de 1661, Amesterdão, representa a delegação do próprio rosto do artista na personagem do Apóstolo Paulo, podendo suscitar a interrogação sobre a eventual identificação do pintor com uma das figuras mais marcantes do primeiro cristianismo. É, porém, pelo poder da expressão, surpreendente, pela sinceridade eloquente do semblante e pela técnica que este autorretrato se distingue, sendo notórias as carnações e os efeitos da luz e da sombra sobre fundo neutro. O presente autorretrato pode ser incorporado na interpretação de que Rembrandt não pretendeu personificar a sua época, antes privilegiando uma grande complexidade afetiva, espiritual e humanística e evidenciando características de profundo intimismo e de forte penetração psicológica. Sendo certo que esta última noção era desconhecida no século XVII, não será de estranhar a primazia concedida à semelhança/parecença, para a qual concorria obviamente a execução manual extremamente cuidada.

No belíssimo “Autorretrato” a ¾ que se encontra na Fundação Calouste Gulbenkian (c. 1863) Degas (1834-1917) quis ser visto através de uma imagem pública, como personagem romântica e simultaneamente protagonista da modernidade do tempo em que vivia. É uma obra emblemática, concebida ainda na tradição da Renascença, mas em que o modelo exibe vestes contemporâneas, assumindo postura de “dandy”, segurando o chapéu escuro de seda e as luvas de camurça, em atitude de saudação ao espectador, a quem a sua expressão facial se dirige, enfatizada pela técnica de domínio do espaço pictural através do próprio corpo.

Sendo a abordagem polissémica da imagem inevitável, a teatralidade subjacente à pose do modelo não deixará de suscitar a metáfora da possibilidade de associação da representação autoconstruída a um espaço cénico onde se desenrola o diálogo entre o protagonista e o destinatário / espectador da ação apresentada.

No ano imediatamente anterior à sua morte, o mesmo ano em que entra no sanatório de Saint-Paul-de-Mausole, Saint-Rémy-de-Provence, 1889, Vincent Van Gogh (1853-1890) pinta um dos seus muitos autorretratos Musée d’Orsay, Paris, cerca de quarenta em menos de cinco anos e mais de vinte nos últimos dois anos de vida.

Um olhar verdadeiro, intensamente emocional e fixo, em que se adivinha uma firme determinação, e um profundo autoconhecimento, são características evidenciadas pelo pintor, que confessa ao irmão Théo: “Eu queria fazer retratos que um século depois surgissem às pessoas de então como aparições. Portanto, eu não procuro fazê-lo pela semelhança fotográfica mas pelas nossas expressões apaixonadas, empregando como meio de expressão e de exaltação o caráter da nossa ciência e o gosto moderno da cor. O meu próprio retrato é também quase assim, o azul é um azul fino do Midi e o fato é em lilás claro.”[20].

Os olhos que refletem a transparência do sentimento do “eu” convertem-se no espelho de projeção do olhar do observador, espécie de simbiose que, no ato de comoção, reconhece a comunhão na dualidade, reencontrando a fórmula “je est un autre”…

O reconhecimento da coragem emergente deste sincero registo de autorrepresentação acaba, afinal, por remeter para as inesgotáveis polémicas que a produção artística de Van Gogh tem suscitado ao longo do tempo: “Génio e Loucura - Ninguém sabe exatamente de que enfermidade sofria Van Gogh… No século XIX, associava-se com frequência a loucura ao génio criativo, e não era raro crer que a intensa sensibilidade de um artista e o aspeto irracional da criação artística podiam derivar para alterações mentais. Seguidamente, a obra e o sofrimento de Van Gogh interpretaram-se desta maneira e deram lugar a muitas especulações sobre a loucura.”[21].

De entre os numerosos autorretratos deixados por Pablo Picasso (1881-1973), a escolha recaiu entre um de 1907Narodni Galerie V, Praga e outro de 1972,Col. Privada Tóquio. Entre um e outro poderá situar-se a trajetória da sua vida artística: 1907 é o ano de acabamento da pintura emblemática “Les Demoiselles d’Avignon”, que marca o nascimento oficial do artista, o primeiro dos dois autorretratos surge, pois, quando começou a afirmar a sua personalidade pictural e artística; o autorretrato de 1972 terá o sido o último autorretrato de Picasso e uma das últimas obras que executou, falecendo no ano seguinte. “In extremis”, que longo caminho percorrido pelo autorretrato, entre o rosto-máscara (de influência africana) e o rosto-crânio, pré-figurando a morte e o medo do desconhecido!... E se em 1907, quando Picasso tinha 26 anos de idade, se pode ainda colocar a questão da semelhança e as influências do cubismo, em 1972 a autonomia da obra em si sobrepõe-se a qualquer referência a uma realidade exterior, designadamente em termos de semelhança.

A geometrização das formas simplificadas do rosto de 1907, sustentando o olhar penetrante e enérgico, residente na dilatação das pupilas do modelo, não deixa de pôr em causa a noção de semelhança e, portanto, a prática da autorrepresentação.

No autorretrato de Picasso, pintado a 3 de junho de 1972, os olhos começam a sair das órbitas, sentimentos de angústia, impotência e pavor antecipam a visão da própria morte, a qual haveria de acontecer no ano seguinte, fechando o ciclo de experiências artísticas protagonizadas pelo pintor. Inequívoca a sua capacidade de comover o observador, testemunho extraordinariamente humano e intimista, de quem sabe que já não se trata apenas de apontar o próprio olhar ao espelho. O seu rosto macilento, de lembrança marmórea e olhar petrificado, não ilude: criador e observador unem-se, numa atitude universal e ancestral, de quem sabe que nada mais resta senão a aceitação da miserável condição humana, com as suas fragilidades e limites, incontornáveis.

IV – Paraa Compreensão do Autorretrato em Portgual: Breve Contextualização da Sua Produção

O primeiro autorretrato (como tal identificado) de que há notícia em Portugal está esculpido numa mísula – de um ângulo que, na Casa do Capítulo do Mosteiro de Stª. Mª. da Vitória, na Batalha, serve de suporte ao arranque das nervuras da abóbada – representando Mestre Huguet (?-1438), que dirigiu o estaleiro batalhino entre 1402 e 1438.

A escultura, construída no século XV, filia-se na tradição de afirmação de uma identidade de pertença a um grupo profissional, à semelhança da autorrepresentação de Peter Parler, no trifório da Catedral de Praga (c. 1370-1379). Os elementos que identificam o arquiteto responsável pelas obras da Batalha (projeto de arquitetura de alçada régia) estão bem visíveis na figuração: a figura está de cócoras, em adaptação à superfície, usa túnica cintada e chapéu de turbante traçado pelo pano pendente, conforme vestuário do século XV, exibindo nas mãos a régua do seu ofício.

A apontada proveniência estrangeira (levantina? inglesa? irlandesa?) de Huguet remete para a influência exterior e para a permeabilização do intercâmbio cultural com uma linguagem artística próxima do dinamismo de outros centros artísticos europeus, sobretudo se for tido em conta o papel da rainha D. Filipa de Lencastre na afirmação da dignidade da Dinastia de Avis, bem como a importância da edificação do Mosteiro na reivindicação da legitimidade do poder régio.

No autorretrato de Huguet está patente que na visibilidade que de si quis deixar para a posteridade o artista privilegiou a demonstração de autoconsciência relativamente à sua identidade artístico-profissional. O sentido da identidade construída situa-se nas adjacências da afirmação individual do artista e da sua ligação a uma obra emblemática referenciada à independência de um reino.

Francisco de Holanda (1517-1584) autorretratou-se, Biblioteca Nacional de Madrid, na última imagem de “De aetatibus mundi imagines” (fº. 89 R), usada como cólofon. A autorrepresentação mostra o artista rodeado pelas três virtudes teologais, Fé, Esperança e Caridade, em gesto de oferta do “Livro das Imagens das Idades do Mundo” à fera que representa a Malícia do Tempo.

Imagem emblemática cuja compreensão passa naturalmente pela mobilização não só da contextualização da representação, temática, atributos e significação da cena, como pela caracterização cultural e artística do próprio autorretratado.

Francisco de Holanda defende a origem divina da arte e, porque Deus é a primeira causa de todas as formas de existência, é também a única fonte de inspiração artística. “A criação é pintura, na idêntica medida em que pintura é criação de mundos (…) A pintura nasce também sob o signo da marca individual.”[22].

No espaço de representação do autorretrato as virtudes da Fé, no Cristianismo, representado no atributo da cruz, a Caridade com a mensagem da generosidade e a Esperança no triunfo dos valores do Antigo, protegem da fúria da destruição evidenciada pela fera Malícia do Tempo a obra do artista, que entre mãos a segura, implorando a proteção do castigo divino contra a ameaça iminente e insensível dos vícios, simbolizados no animal, contra o engenho e a criação do artista, que no cenário tradutor da mensagem de triunfo da espiritualidade e da sabedoria integrou o seu autorretrato. Holanda pretendeu deixar para a posteridade o registo da sua imagem ligada à obra produzida, na dupla qualidade de humanista e de artista.

O autorretrato que se segue, Museu Grão-Vasco, Viseu, insere-se no retábulo subordinado ao tema “Cristo em Casa de Marta e Maria” (c. 1535-1540), hoje no Museu de Grão Vasco, mas proveniente da capela de Stª. Marta do Paço Episcopal de Fontelo, encomendado c. de 1530 por Dom Miguel da Silva (vide armas dos Silvas no pedestal das colunas que integram a arquitetura), bispo de Viseu – reconhecido humanista que foi embaixador de Portugal em Roma entre 1515 e 1525, no tempo de Leão X, Adriano VI e Clemente VII, de quem era amigo próximo – e cujo retrato nesta obra foi identificado pelo historiador de arte Rafael Moreira como sendo a personalidade sentada à mesa com Cristo.

Dalila Rodrigues nomeia a dupla Grão Vasco (c. 1475-1541-1542) e Gaspar Vaz (séc. XV/XVI) como responsáveis pela execução do retábulo.[23].

A temática da obra, indicada no próprio título, remete para o texto evangélico de S. Lucas.[24]. A ação, centralizada em Cristo, passa-se em cenário ostensivamente doméstico, entre arquiteturas clássicas e janelas em trompe l’oeil, abrindo significativamente a ação para o exterior do espaço pictural. A linguagem dos gestos supre a das palavras: Marta, voltada para Cristo, estende a mão em direção a Maria, por sua vez em atitude contemplativa.

Emblematicamente disfarçada, no ambiente religioso e simbólico, a figura do pintor que nela se autorretrata – sendo suposto tratar-se de Gaspar Vaz – quis deixar o seu registo/assinatura nessa obra eclética, e de encomenda notável, saída da oficina de Viseu, sob orientação artística de Grão Vasco. Identificado pelo barrete do ofício de pintor, o rosto emergente e o olhar dirigido para a parte central da cena, a mão bem visível sobre uma das colunas, insinua-se sem se introduzir na ação, qual figura de convite que conduz e orienta o olhar do observador, direcionando-o para a figura de Cristo, cuja linguagem gestual corrobora a mensagem cristã da necessidade da primazia da palavra de Deus sobre as preocupações terrenas. É o admonitore, lembrando a condição humana.

Fernão Gomes (1548-1612) utiliza recurso idêntico, em 1590, ao pintar o seu autorretrato na “Ascensão de Cristo”, Museu de Arte Sacra do Funchal, dirigindo o olhar para o exterior do espaço de representação, em direção ao olhar do observador. A mão direita sublinha a intencionalidade de focalização na manifestação divina, enquanto que a sua fisionomia atrai a atenção pela singularidade e individualização dos traços, distintos da idealização das outras personagens.

Giraldo de Prado, ou Giraldo Fernandes do Prado (1535?-1592), “Em 1590 (…) ao tempo pintor de óleo e de fresco, calígrafo e cavaleiro-fidalgo de D. Teodósio II, Duque de Bragança, pintou os painéis do retábulo da igreja da Misericórdia de Almada, por encomenda de ilustres almadenses, o então provedor Francisco de Andrada e Manuel de Sousa Coutinho.”[25]. No painel central do extenso retábulo, alusivo à temática bíblica de invocação mariana, pinta o seu autorretrato, auto-figurandosse como observador que, embora dentro do espaço pictural, se posiciona exteriormente à cena principal representada no centro do quadro.

A colocação estratégica do autorretratado, a dimensão psicológica individualizada da sua expressão, remetem para uma postura de afirmação, equivalendo a presença do autor à sua assinatura na obra. O discurso do pintor, sensível à graciosidade das duas personagens femininas – Virgem e Sta. Isabel – e ao enquadramento destas num espaço de representação definido pelas arquiteturas de pendor maneirista que compõem o cenário, sublinha a teatralidade da construção do espaço de representação que, com a sua presença, assina.

Pedro Nunes (1586-1637), mestre eborense de formação italiana – esteve em Roma entre 1609 e 1614 – pertenceu à última geração de pintores maneiristas, cuja atividade se verifica ainda durante o primeiro terço do século XVII, quando já emergiam propostas estilísticas mais inovadoras e consentâneas com o proto-barroco, que se expressava em abordagens naturalistas.

Refere Vitor Serrão: “Estamos perante um artista plenamente integrado – dir-se-ia que algo anacronicamente, dada a época avançada em que labora – nos programas do maneirismo italianizante, no sentido «intelectual» da distorção dos espaços, fidelidade à idea romanista de ambiguidade e capacidade de vibrante colorista.”[26].

Na espetacularidade cenográfica da “Descida da Cruz” Capela do Esporão, Sé Catedral de Évora, marcada sobretudo pelos efeitos de desequilíbrio na relação dos planos e das figuras, pelo cromatismo e pelo característico modelado, sobressai uma cabeça coberta com barrete vermelho de faixa branca, onde se impõe um olhar expressivo, direcionado para o espectador, enquanto que o indicador da mão direita aponta o destinatário do percurso de leitura: a figura de Cristo, símbolo da esperança na vida eterna; em contraste com essa visão, foi colocado em primeiro plano um conjunto de elementos que remetem para a lembrança da morte física – a caveira e os ossos, em cruz.

O autorretrato de Pedro Nunes, como “admonitore”, assim assinando aquela que é tida como a sua obra-prima, protagonizando postura exterior ao cenário religioso e ao tempo da narrativa – qual “eu fiz esta obra” – dimensiona o humanismo concomitante com o seu maneirismo retardatário conforme o normativo tridentino: “Esta notável composição romanista, derivada de um modelo rafaelesco segundo estampa de Raimondi, mas com interpretação livre, arrojada e assaz original, marca o clímax da nossa pintura da Contra-Maniera; integra, além disso, o autorretrato do artista em postura de admonitore e testemunho de liberalidade.”[27].

O autorretrato de António de Oliveira Bernardes (1662-1732) insere-se no óleo sobre a “Chegada de Sta. Inês de Assis ao Convento” (1696-1697), Conv. De Sta. Clara, Évora. Tema incidente sobre a iconografia clarissa, desenvolvido num quadro de história, narra os acontecimentos que rodearam a história da irmã de Sta. Clara e apresenta uma cena de grande dinamismo cenográfico, na qual o artista se pintou como figura secundária, disfarçado “in assistenza”. Todavia, a sua figura, de fisionomia extraordinariamente individualizada, destaca-se na cena e interpela o observador, para quem o olhar do pintor dirige o diálogo – testemunhando com tal postura uma notória autoconsciência relativamente à nobreza do seu ofício e à afirmação do novo estatuto social e profissional dos pintores de arte.

Félix Machado da Silva Castro e Vasconcelos, Marquês de Montebello (1595-1662), produziu pelo meado de seiscentos (c. 1643) um autorretrato que pode dizer-se ter inaugurado em Portugal o verdadeiro autorretrato independente.

 

 

A tipologia geral do autorretrato que veremos desenvolver-se no nosso país no século XIX encontra na autoimagem do Marquês de Montebello uma evidente antecipação que, curiosamente, parte de alguém que viveu parte substancial da vida pessoal no exterior. Tendo sido detentor de diversas comendas e solares no território nacional, por via de herança materna, escolheu o partido e o serviço de Filipe III de Portugal, IV de Espanha, de quem foi embaixador em Roma. Viveu também em Madrid e em Milão e dedicou-se ao ensino da pintura, sobretudo de retrato, em consequência de ter visto bens confiscados no seu país, por se ter posicionado do lado de Espanha.

Importa sublinhar a questão da novidade (c. de 1643) entre nós do autorretrato reivindicativo, de afirmação profissional, quando a coleção de autorretratos da Galeria Uffizi, constituída pelo cardeal Leopoldo de Medici (1617-1675), continuada pelo sobrinho Cosme III, Grão Duque da Toscana (1642-1723) anda oficialmente associada à data de 1681.

A iconografia escolhida pelo Marquês, de Montebello, que se autorrepresenta como pintor independente, rodeado dos filhos, é extremamente original, sem paralelo na pintura portuguesa do tempo. Pintado a ¾, semivoltado para o espectador, de pé e ao cavalete, mostrando os instrumentos do seu ofício – pincéis e paleta – os dois filhos como modelos, as inscrições identificando o filho Francisco, a filha Bernarda e ele próprio – “Felix Machado Marques de Montebello” – todos os elementos apresentados sublinham o assumir do seu estatuto de artista da corte de Madrid, na especialidade da pintura de retrato. As insígnias de fidalgo que exibe no peito acentuam a pose aristocrática. Foi feito conde de Amares depois de 1640. Trata-se de um autorretrato reivindicativo e emblemático.

V – A Pintura do Autorretrato Contemporâneo em Portugal: Evolução e Reflexão

Em contexto de retrato coletivo de colegas de profissão – é o primeiro retrato de grupo produzido pela pintura portuguesa, enquanto testemunho de cumplicidade de um ideário[28] – João Christino da Silva (1829-1877) inseriu a sua figura no quadro “Cinco Artistas em Sintra” M.N.A.C., pintado em plena natureza em 1855, colocando-se em posição lateral face ao grupo central, como figura secundária[29]. Um outro pequeno grupo formado por camponeses curiosos com a técnica artística pontua a dimensão do grupo central de figurantes.

Para além de autorretrato reivindicativo de um estatuto sócio-profisssional a que a ainda recente criação da Academia de Belas-artes (1836) vinha sublinhar a importância, este é também um autorretrato em disfarce, em que o pintor afirma a pertença a um grupo de artistas estética e ideologicamente representado e geracionalmente cúmplice. Nesse sentido, o autorretrato apresentado representa também um símbolo da estética romântica.

De Henrique Pousão (1859-1884), um autorretrato executado em 1878, aos 19 anos de idade, portanto obra da juventude (embora tenha desaparecido prematuramente, com apenas 25 anos), do ano anterior à finalização do curso na Academia Portuense de Belas-Artes e também anterior à sua partida para Paris, o que viria a suceder em novembro de 1880, onde iniciou estudos nos “ateliers” de Cabanel e de Yvon, tendo-se seguido Roma, em novembro de 1881.

 

 

A expressividade natural e a sinceridade do olhar aliam-se no registo da auto-observação, sendo percetíveis sentimentos de subjetividade e de afirmação pessoal, característicos de uma atitude romântica.

A escolha de Pousão é um sinal inequívoco de individualismo, da “persona” que olha o observador, é um exercício de puro virtuosismo; não há na autorrepresentação indicadores que remetam para reivindicação de estatuto ou de profissão, tratando-se da construção de um território especial, a sua identidade, usado como recurso técnico, assim dando razão ao princípio de que “todos os pintores se pintam”.

O paisagista Silva Porto (1850-1893) executou raríssimos retratos de si mesmo. Identificado[30] como um autorretrato seu, de c. de 1879 (Fig. 11), de meio-corpo, a figura impõe-se desde logo pela profundidade traduzida na expressão facial.

 

 

A observação devolvida ao espectador exprime um caráter intimista e de grande sensibilidade, privilegiando serenidade, timidez, reflexão e seriedade. 1879 foi o ano de regresso do pintor do pensionato que ganhou e lhe facultou a realização de estudos em Paris e em Roma. Sob a orientação de Cabanel, Yvon e Daubigny, foi admitido nos “salons” de 1876, 1878 e 1879[31] e, neste último ano, terá conhecido a futura esposa, Adelaide Tavares Pereira, que lhe serviu de modelo[32] com alguma frequência.

No busto perfilado, com a cabeça ligeiramente voltada, a nota porventura mais evidente é a ausência de coincidência entre os olhares do autor e do espectador, qual texto visual em que a perspetiva que o pintor privilegiou está contida na projeção do seu olhar concentrado num ponto indefinido, localizado no espaço de inserção do espectador, cuja presença sugestivamente se indica através da direção do olhar autoral.

Trata-se de uma obra construída na tradição do autorretrato como exercício de auto-observação, na tradição do Romantismo e que irá encontrar mais tarde novos desenvolvimentos no autorretrato introspetivo.

Existem várias autorrepresentações de Columbano Bordalo Pinheiro (1857-1929), a maioria das quais apresentadas em associação com a prática da pintura. Pela singularidade do retrato coletivo pintado na grande tela em que se autorrepresentou aos 28 anos, em 1885, executada em homenagem à geração naturalista, “O Grupo do Leão”, M.N.A.C., tela destinada a figurar originalmente na cervejaria que deu o nome ao grupo[33]. Columbano ocupa, de pé junto ao irmão, posição lateral relativamente à centralidade da obra – estrategicamente definida pelo mestre do naturalismo, Silva Porto – o caricaturista por excelência da sociedade portuguesa, Rafael Bordalo Pinheiro (sentado e acompanhando a generalidade dos olhares dos demais retratados), cuja obra define uma apreciação de rara exatidão relativamente aos Portugueses. Significativamente – Columbano representa a vertente erudita do entendimento do seu País – o autorretratado, com o seu aspeto intelectual, acentuado pela miopia que se adivinha nas lunetas, coloca-se como se estivesse de saída da cena e dos ideais do paisagismo defendidos pelo grupo de artistas, cujos princípios estéticos epigonalmente haveriam de continuar no tempo, nas próximas gerações. Columbano era retratista, pintor de interiores, e a sua autorrepresentação sublinha esse distanciamento. É evidente a consciência do ato e do espaço da autorrepresentação, o artista está ciente do papel central que o rosto desempenha na definição da identidade da “persona”.

No mesmo ano de 1885, quando pintou o “Retrato de D. José Pessanha”, M.N.A.C., – erudito e crítico de arte que escrevera um artigo sobre o artista – Columbano inscreveu na representação a sua autoimagem num espelho, conceptualizado como “trompe l’oeil” da composição, assim evidenciando um notável exercício de modernidade pictural, no tempo artístico nacional e no contexto da produção da autorretratística no País. Emblematicamente, a encenação que integra a autoprojeção sobre um dos instrumentos da profissão do pintor, converte-se num espaço de ensaio da metáfora sustentada entre a pintura e a crítica. A autorrepresentação ganha uma dimensão mais aprofundada, em termos de explicitação do registo da autoanálise e da auto-observação, sublinhando a ausência de constrangimento face à apreciação do objeto/matéria que é a pintura relativamente ao crítico de arte, em conformidade, afinal, com a intransigência que o caracterizou na sua liberdade artística.

De dois anos mais tarde (1887) data o autorretrato de Ernesto Condeixa (1857-1913). Os estudos realizados em Paris (onde permaneceu entre dezembro de 1880 e abril de 1886, tendo sido discípulo de Alexandre Cabanel) refletem-se no academismo que informa a sua paleta. A obra, M.N.A.C., estrutura-se num jogo de sombra/luz, em tonalidades enegrecidas conforme o convencionalismo esquemático dos valores próprios do Romantismo. A visão do autorretrato devolve ao espectador uma representação de meio-corpo, frontal, qual reflexão “eu olho-te a observares-me, depois de me ter olhado no espelho a pintar-me”. Através da coincidência de olhares, do pintor e do espectador, comunica-se o exercício da auto-observação, seguindo os modelos clássicos da autorretratística genericamente vigorante em França na primeira metade do século XIX, os quais continuavam a informar culturalmente a formação dos nossos pensionistas e bolseiros[34]. O autorretrato de Condeixa apresenta-se como uma autorreferência de grande sinceridade na captação da individuação, com ênfase na perseguição consciente de um intimismo narrativo de grande sensibilidade e honestidade.

Entre os autorretratos pintados por Aurélia de Sousa (1866-1922), assume particular destaque aquele que executou cerca de 1900, M.N.S.R., portanto na viragem do século, pela modernidade, unanimemente reconhecida pela crítica nacional e internacional[35]. Representa uma visão emblemática da mulher artista, na sociedade portuguesa do seu tempo. Ainda que as palavras que se seguem não tenham sido dirigidas especificamente a Aurélia, como são elucidativas, designadamente na possibilidade do seu ajuste ao autorretrato em questão: “Eu tenho uma face, mas uma face não é o que eu sou. Por detrás existe uma mente, a qual tu não vês mas que te observa. Esta face que tu vês mas eu não, é um ‘medium’ que eu possuo para expressar alguma coisa do que eu sou.”[36].

Sobre esta obra disse José-Augusto França: “Fácil seria descrever esta cabeça severa, de cabelos arruivados, cortada pelo decote subido de uma blusa azul (…) um grande alfinete de âmbar a fechar geometricamente este elemento da composição, na vertical da risca do penteado, do nariz, no meio da boca cerrada (…) o vermelho e o azul do que traz vestido (…) Somam-se estes elementos do retrato – mas fica de fora aquele que sobretudo o faz: este olhar azul-claro que fixa inteiramente a composição. Não se diz os olhos, semicerrados por atenção, fitando o espelho invisível – mas o olhar, ou seja, o que neles é imaterial. (…) Que mais profunda solidão numa quinta antiga sobre o Douro, de exílio da pintora? Não há, com certeza, outro autorretrato assim na pintura portuguesa (…)”[37].

O tempo de Aurélia foi também o de Sigmund Freud, de Klimt, Van Gogh e Schielle. Esteve em Paris, entre 1898 e 1902, onde estudou com Jean-Paul Laurens e Benjamin Constant, tendo viajado e pintado na Bretanha e visitado museus em Bruxelas, Antuérpia, Berlim, Roma, Florença, Veneza, Madrid e Sevilha, não sendo de refutar a execução do autorretrato em Paris.

Frontalidade, expressão enigmática do rosto, intimismo, severidade e uma enorme consciência da própria individualidade, são características de uma modernidade irrefutável, paralelamente com a abertura para soluções inovadoras que o século XX haveria de conhecer, na desconstrução do cubismo, na angústia expressionista ou no lirismo abstracionista.

Da sua curta vida marcada pela boémia, Armando de Basto (1889-1923) deixou-nos um autorretrato, M.N.S.R., executado cerca de 1917. A grande dimensão do rosto, ocupando a quase totalidade do retângulo, é o elemento que desde logo se impõe na visão da tela. Uma observação mais atenta permite perceber um olhar melancólico, centrado no espectador, em cuja direção o rosto e o torso se voltam.

Emergindo dos tons enegrecidos do fundo – os quais enquadram a figura – o rosto, em tonalidades térreas, espelha as marcas de uma vida desregrada e rebelde que caracterizou o percurso de vida do artista, quer em termos académicos, quer pessoais. Armando de Basto pintou-se como um homem e não como pintor. Tendo exercido ampla atividade nos domínios da caricatura e do desenho humorístico, só terá começado a pintar cerca de 1913, com incidência no retrato, ainda no período em que esteve em Paris (1910-1914), onde conviveu com Modigliani, que lhe pintou o retrato. De qualquer modo, a singularidade do autorretrato reside, fundamentalmente, no fascínio que se desprende do olhar, suscitando o diálogo – significativamente registando a facilidade de relacionamentos pessoais por parte do artista – na tradição da autorretratística de Rembrandt e de Henri Fantin-Latour, relativamente aos valores de tratamento do rosto, mas sobretudo marcando a perseguição de ideais de liberdade e de independência, distintivos da vivência modernista.

É de 1925 o quadro em que José de Almada Negreiros (1893-1970) se autorretrata, inserido num grupo de dois pares, C.A.M. da F. C. G., em cenário neutro, muito embora se saiba que a obra fez parte da decoração da “Brasileira” (Chiado, Lisboa) e sejam evidentes os indícios de conotação temática com o domínio artístico – da tela onde Almada colocou o ano de realização do quadro e a assinatura que o haveria de celebrizar, ao desenho sobre o qual José-Augusto França se interrogou poder tratar-se da caricatura de Gualdino Gomes – “(…) se atentarmos no chapéu que lhe caracterizava a boémia verrinosa (…)”[38] – até ao suporte do registo que merece a concentração da atenção da maioria dos elementos do grupo, mas de que certamente não terá sido aleatória a exibição do verso, vedando o acesso à descodificação do motivo desenvolvido. Almada vira para o campo visual do espectador o registo que segura com a sua mão direita, assim construindo um enigma com enfoque essencial na composição da cena de interior. Almada quis autorretratar-se como personagem de um encontro na esfera do convívio social, e não como protagonista de um cenário artístico, ainda que não tenha refutado visibilidade na alusão à condição artística: é manifesta a intencionalidade em mergulhar no quotidiano modernista, “na vida airada de Lisboa - 25”[39], sem constrangimentos, dela comungando através da apresentação da frequência dos salões de chá e cafés característicos dos frenéticos anos 20. Almada autorrepresentou-se na celebração da sua contemporaneidade, assumindo-se na sua individualidade, numa conversa suspensa entre os figurantes, em cuja representação se impõe a transversalidade do olhar, como atitude de cumplicidade geracional.

Sábias as palavras de Bernardo Pinto de Almeida: “Almada foi sempre autorretrato.

De si e de Portugal, nas sucessivas modalidades que ele e o País foram tomando, numa inesperada identidade de propósitos e acerto de tempo (…)”[40].

Em 1929 José Tagarro (1902-1931) realizou um duplo autorretrato (Fig. 12) que se apresenta como um dos mais originais (não só da sua época, mas seguramente da produção artística contemporânea portuguesa), produzido dois anos passados sobre a frequência da Escola de Belas-Artes de Lisboa, também dois anos antes da sua prematura morte e no exato ano em que visitou a França e teve oportunidade de estudar e se atualizar em Paris, durante algum tempo.

 

 

Pertencente à 2ª. Geração Modernista em Portugal[41], a obra apresenta uma síntese de grande expressividade e força – com destaque para a atenção ao rigor no tratamento das cabeças, boca e olhos – resultante da articulação entre o característico traço firme (desenho) e a distribuição do cromatismo na mancha

da pintura propriamente dita, numa demonstração de extrema modernidade e manifestação de grande dignidade profissional. E foi nesta condição que Tagarro quis ser visto para a posteridade: com o entusiasmo contagiante do artista que se autodescobre e se questiona, mirando-se no olhar/espelho do observador, a quem atrai ainda através das tonalidades do encarnado do lápis com que desenha, ferramenta do ofício que dá forma à ideia/criatividade. O efeito de surpresa persiste, em grande parte, pelo contraste entre técnicas – enquanto que a pintura modela o rosto pintado, com particular atenção na descrição do pormenor, o desenho do segundo plano expõe o rosto perfilado, numa construção simétrica de ambos os rostos, cujos olhares são dirigidos ao espectador, assim suscitando o diálogo entre desenho e pintura. Ideia e forma interpenetram-se na essência da imagem de inequívoco vigor narcisista, sem equivalente na pintura do autorretrato deste período: “É o simulacro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginação e fomenta a criatividade artística (…) no impossível jogo de espelhos em que a autoimagem é projetada, representação da autorrepresentação narcisicamente refletida no olhar – espelho do espectador, paradigma do momento em que o artista, como sujeito em representação, se dá a ver, perdido nas ruínas da sua própria visão e mostrando-se como testemunho de uma profunda consciência da condição humana.”[42].

O autorretrato de Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992) foi pintado no ano do seu casamento com Arpad Szénès, em 1930, col. privada, Paris, quando a pintora tinha 22 anos, também o ano anterior à oportunidade de expor nos Salons d’Automme et Surindépendants, em Paris[43].

Autorretrato a meio corpo, em fundo predominantemente neutro, o olhar límpido, frontal e interrogativo, fixo no observador, constitui desde o primeiro momento de contemplação do espectador o principal foco de atração. É um registo figurativo de mulher, uma construção expressionista, reveladora de intensa sensibilidade, sem qualquer alusão do modelo à prática artística, ainda que seja possível antever, na plasticidade dos planos e nas linhas escuras e acinzentadas, a procura de novos valores espaciais. A figura feminina, emergindo entre os negros – do cabelo, das sobrancelhas, olhos e vestuário – impondo-se na tez clara da pele, da qual se destaca o rubro da boca (com correspondência na peça de mobiliário que se acha à direita do observador), ocupa parte significativa da tela e define-se entre a contenção do enquadramento em espaço interior fechado e a luminosidade do claro-escuro envolvente, numa síntese de evidente simplicidade e de reminiscência de um universo onde impera a solidão. Sente-se uma estratégia de introspeção psicológica, tendência já presente em Rembrandt e que se afirmou com o Romantismo.

É também do ano de 1930 o autorretrato de corpo inteiro de Artur Loureiro (1853-1932), então com 77 anos, M.N.S.R., obra executada dois anos antes da sua morte e onde as soluções estéticas apresentadas têm como patamar de referência os valores do naturalismo oitocentista em que o pintor fez a sua aprendizagem e se exercitou.

A imagem representa a figura de um velho homem, de pé, cujo corpo semiperfilado se ampara a uma bengala – posicionada no prolongamento da trajetória da diagonal definida pelo braço direito da figura – segurada pela mesma mão que prende um chapéu negro, certamente recolhido por respeito devido face à penetração em espaço interior. No gesto são visíveis os tons da carnalidade da mão, igualmente presentes no rosto virado na direção do espectador, que enfrenta no cruzamento de olhares. Sobre as vestes negras, um casaco castanho mel, gasto do tempo e do uso, compaginável com a exposição da idade, traduzida no branco do cabelo e da barba descuidada. O artista escolheu expor-se do ponto de vista humano, auto-descrevendosse em sintonia com a miséria afetiva e a solidão características dessa fase da vida. Significativamente, e com uma enorme coragem e força por detrás das lentes, os olhos do autorretratado interpelam o observador, a quem é oferecida a autoimagem/espelho, como proposta de reflexão intemporal.

O autorretrato pintado por Domínguez Álvarez (1906-1942) em 1934, intitulado “D. Quixote”, constitui uma imagem que dificilmente sai do alojamento da memória em que facilmente se instala, nas profundezas do silêncio interior específico do espectador atento. É uma obra que não tem paralelo na pintura do autorretrato contemporâneo em Portugal. A panóplia de sentimentos que gera no ato da sua observação corresponde sem contraditório à definição que José-Augusto França registou para autorretrato: “O autorretrato fita, por natureza e fatalidade de processo, o espectador que o há de olhar, tanto como a si próprio o pintor se olhou, e o que foi monólogo desejado do artista, acaba por se realizar em diálogo. Diálogo de três, porém, que três são os seus elementos: o pintor que se retrata, a sua imagem retratada, e a pessoa que a olha, como se estivesse a olhar o seu autor. Que não está: o autorretrato é apenas a sua imagem, não pintor pintado mas o que ele, fora dele, pintou. Mas por isso se dirá que, mais do que apenas a sua imagem, o autorretrato, está para além dela e de quem a pintou, por a ter pintado – ou seja, criado em obra de arte… Não se deixará de dizer que o autorretrato é a quintessência da arte, pela duplicidade mágica da imagem fornecida.”[44].

O olhar acusatório, e completamente despido de esperança, que endereça ao espectador, cumpre-se na perturbação do vazio, na tristeza, na censura e no medo. A representação que de si deixa o pintor remete para um universo misterioso, conturbado e inquietante, feito mensageiro da morte a que sombras e negros aludem, povoando o cenário de onde emergem o rosto – alongado na barba cujo fim não se vislumbra – e parte do peito, cuja tonalidade parece já ser presságio do cadáver que haveria de ser dentro de muito poucos anos passados. Da expressão pictórica de Álvarez correspondente aos anos 30 destacou também José-Augusto França o insólito – “Nenhuma referência parisiense, nenhuma informação de Berlim, nenhum acomodamento modernista, e um gosto espanhol que era ou podia ser de mais ninguém e lhe vinha da Galiza mais ou menos natal. Um artista isolado, passando misérias no Porto, sem ares da boémia burguesa dos de Lisboa – um vago sonho provinciano de «mais além» como divisa de impossível grupo. A sua pintura é toda assim, arredando-se do ensino da Escola que lhe deu diploma e desemprego, em perseguição de fantasmas soltos pelas ruas tristes do Barredo, manchas negras e informes; ou de paisagens visionárias de tenebrosos burgos de Espanha, lembrados do Greco.

É um D. Quixote que nunca entrou na mitologia portuguesa, pela indecisão mítica que vivemos, entre D. Sebastião e D. António, com a desgraça de ambos (…) A imagem de Álvarez é mais triste que qualquer outra (…)”[45].

Álvarez morreu com 42 anos, vítima de tuberculose e certamente também das suas opções estéticas, definidas à margem dos padrões oficiais[46]. O seu autorretrato é um paradigma da fragilidade da condição humana e do cenário de instabilidade em que a vida humana se movimenta. Pelo traçado das linhas oblíquas, em evidente oposição com a estabilidade inerente à figura vertical, Álvarez questiona a racionalidade da sua vivência, agoniada pela debilidade física e pela injustiça da ausência de reconhecimento, que só chegaria após a sua morte. Que metáfora mais adequada que a construída pelo pintor sobre si próprio?

O autorretrato de Maria Keil (1914-2012), pintado em 1941 (simples coincidência ou curiosidade, a inversão dos dois últimos algarismos com o ano do seu nascimento?), com 27 anos de idade, C.M. Silves, lembra o autorretrato de Aurélia de Sousa, anterior em cerca de quatro décadas, sobretudo pelo colorido, modernidade e firmeza da expressão, já que a simplicidade sedutora e a articulação com a prática da pintura – no recurso à representação do reverso de um quadro – distanciam Maria Keil da solidão de Aurélia, numa época que pouco tinha a ver com o início do século, apesar de o tempo ser de guerra e de insegurança.

Por esse mesmo autorretrato – de indiscutível contributo para a afirmação da 2ª. geração modernista, que era a sua – recebeu Maria o prémio Amadeo de Souza-Cardoso do mesmo ano de 41. É como pintora que se autorretrata, representando-se junto ao reverso de um quadro, olhando firmemente o espelho/observador. Um aparente paradoxo está, porém, subentendido na imagem (no sentido em que o conceito pode indicar como propósito contra a opinião comum), o qual se pode sintetizar na seguinte interrogação: como pode um quadro ser representado no seu reverso, entrando assim em conflito com a ideia de representação pictural?

Aparente paradoxo, visto que a imagem pictórica é uma realidade fictícia, o quadro é uma representação, o seu reverso apresenta o objeto que lhe serve de suporte, é o negativo da representação a que alude, sugerindo a ideia de metáfora. Poder-se-á então especular que para conhecer o reverso do quadro há que “dar-lhe a volta”? Quereria Maria Keil lembrar no seu autorretrato a dialética da sua meditação sobre o quadro, na dupla qualidade de imagem/representação e objeto? Ou questionar no simulacro da aparência a própria essência do autorretrato?

O autorretrato de Guilherme Camarinha (1913-1994), pintado em 1951 M.N.S.R., com os seus 39 anos, constitui uma obra notável e verdadeiramente singular em termos plásticos. O efeito imediato de surpresa, em parte causado pela dimensão da figura que ocupa a quase totalidade do quadro, deriva também da consciência estética manifestada no tratamento da iluminação, numa luminosidade dourada projetada sobre as tonalidades negras e acinzentadas das roupagens, dominando a composição, estando esta estruturada em planos onde o geometrismo impera.

Camarinha optou por uma representação de si como indivíduo, construindo uma autoimagem de impacto apelativo alimentado pelo vigor da expressividade do rosto e da própria pintura: a aproximação ao espectador é transmitida na linguagem gestual da imagem de prontidão sentada, o olhar baixo e fixo no espelho, em interrogação irónica, as mãos entrelaçadas e pousadas sobre os joelhos, em atitude expectante e de intensa vitalidade narcísica.[47].

Cruzeiro Seixas (1920-) produziu, cerca de 1958, um autorretrato tridimensional que, pelo insólito e pela complementaridade, justifica a sua abordagem no presente contexto: óleo e gouache sobre osso, col. J. P. F., Lisboa. O impacto imediato que acompanha o efeito de surpresa é perturbador, em grande parte ancorado na coragem de exposição material de uma ruína física, insinuando a metáfora de outra ruína, certa e transversal ao comum dos mortais, e justificando a reflexão de Derrida sobre o autorretrato: “O aspeto central da tese de Derrida reside, pois, na inevitabilidade do autorretrato como ruína, presente desde o primeiro olhar sobre o modelo (outro), condenado à condição de fragmentação da reflexão da imagem e à dependência do envolvimento com o espectador. É o simulacro da visibilidade da autoimagem que alimenta a imaginação e fomenta a criatividade artística.”[48].

Humor provocatório, alguma crueldade, intencionalidade reflexiva, atravessam a obra e são pretexto para o autor desmontar a polissemia do autorretrato – é um olhar inquieto e irónico, aquele que Cruzeiro Seixas transferiu para o objeto artístico, que alegoricamente alude às práticas artísticas inerentes à humanidade pré-histórica e marca a tentativa de acerto temporal com as vivências culturais atualizadas com o seu tempo, e as propostas de criação artística vigorantes no exterior de Portugal.

O autorretrato não é reflexo do espelho mas o próprio espelho, no qual o criador se projeta e sobre o qual o espectador reflete, ao rever-se no condicionamento da sua libertação e na sua impotência face à sujeição inexorável ao tempo.

Em 1972 José Escada (1934-1980) pintou o seu autorretrato, C.A.M. da F.C.G., sob a temática da sua condição de artista, lembrada na representação da mão que segura o pincel, centrada na parte inferior da composição. Quadro dentro do quadro, a autoimagem por semelhança impõe-se pela frontalidade da reflexão no espelho e pela subjetividade transmitida no vigor do olhar fixo, numa linguagem figurativa atualizada com a recente produção artística europeia, frequentada e desenvolvida com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian: Amesterdão, Bruxelas, Madrid (ou Paris) no contacto com o Grupo Kwy, ou no convívio com artistas inovadores como Lourdes Castro, Costa Pinheiro, Christo, etc.

O autorretrato ocupa o centro da metade superior da pintura, emergindo do cromatismo, e da luminosidade vibrante, e sendo emoldurado nas áreas periféricas cimeiras pelo labirinto de pequenas construções geométricas, numa síntese que apela à vivência corporal e à presença efémera, mas intensa, do tempo.

A autorrepresentação de Costa Pinheiro (1932-) pintada em 1985, intitulada “Paisagens do Atelier”, col. do autor, é portadora de uma profunda autoconsciência da representação, por sua vez geradora de uma complexidade inesgotável, sustentada na reflexão em torno da existência. Autorrepresentação integrada no ciclo emblemático denominado “la fenêtre de ma tête“, cabeça/sede das ideias na confluência do ato expressivo, enquanto utopia e erudição, é signo de criação artística, mas também poética, preocupação eclética a justificar a afirmação do percurso individual de Costa Pinheiro, reconhecidamente europeu. A cabeça/janela que abre para a imaginação, que rasga as fronteiras impostas pelo espaço e pelo tempo, em sugestão do diálogo interior construído na experiência da invenção de outro dentro de si mesmo (em negação do “beco sem saída” da emigração vivenciada?).

Exteriormente à cabeça, perfilada, vazia e colorida de azul – a cor tão característica do pintor – o registo do cavalete e do pote com os pincéis, instrumentos mediadores do ato da pintura, enquanto que dentro do quadro mas pairando sobre a cabeça – que se sabe ser a sua pela marca do também característico bigode que o individualiza – a informação “la fenêtre de ma tête” precisa o poder da imaginação, não contida nos limites do corpo orgânico.

Pelo contorno se destaca da escuridão a cabeça iluminada, na construção de uma nova imagética assumida na rutura com a segurança da submissão da picturalidade à estética, em opção pelo desafio da linguagem metafórica: transparência da abstração e sobreposição das ideias relativamente ao sujeito do ato criativo.

A autorrepresentação de Costa Pinheiro é síntese óbvia do movimento do espírito, desde as sensações às ideias, “(…) dialética aporética entre o próprio e a representação.”[49].

Mais que “a janela”, a autorrepresentação de Costa Pinheiro reflete o estado de autoconsciência face à importância dos sonhos, é afirmação da subjetividade, é testemunho da libertação do pintor que, através da autorrepresentação, se reencontra e supera a “persona”, no sentido da máscara.

Num compartimento de interiores – mas onde se rasga uma janela, deixando ver uma natureza exterior de grande serenidade alimentada por tons de azul celeste e pela luminosidade convidativa ao esvoaçar dos pássaros – e em grupo familiar Paula Rego (1935-) autorretrata-se, col. da autora, enfatizando a importância do assunto no próprio título do quadro – “Autorretrato com Netos” – pintado em 2001-2002 e cuja integração na primeira agenda (2010) que a “Casa das Histórias” destina ao público, após a inauguração em 18 de setembro de 2009, adquire aqui particular significado.

Parábola em torno da família e da condição feminina, temas que assume sem dissimulação, mas simultaneamente com referência explícita à pintura. Estratégia desarmante, no confronto entre a seriedade do tema da família, apresentada de costas voltadas para a pintura pendurada no fundo da cena, e o posicionamento simbólico da artista, voltada em direção ao espectador, afetivamente protegendo com o braço direito uma neta, mas usando a própria corporalidade como contraponto ao “peso” do quadro que atrai o olhar do observador. Quadro dentro do quadro, ou a linguagem metafórica da autorreflexão, centrada entre a lembrança das exigências da vida familiar e o universo imaginário e tenso, próprio da criatividade a que a pintura pendurada alude.

A articulação entre as duas situações da vida da mulher, por um lado, e a ligação entre dois períodos de vivências, maturidade e infância (veja-se o registo de brinquedos e dos característicos cães de Paula Rego), corroboram o poder da narração das histórias que a artista confessa terem tido importância decisiva na construção do seu imaginário e da sua visão.

A família contextualiza a perspetiva do feminismo, como epicentro identitário, no confronto com a necessidade da criação artística. Refere Paula Rego: “As minhas pinturas são pinturas feitas por uma artista mulher. As histórias que eu conto são histórias que as mulheres contam.”[50].

Tal visão como estratégia de sobrevivência pessoal, está generalizada entre a crítica: “Não é comum dar às mulheres a oportunidade de se reconhecerem na pintura, muito menos a de verem o seu mundo privado, os seus sonhos, no interior das suas cabeças, projetados numa escala tão grande e tão despudoradamente, com tanta profundidade e tanta cor.”[51].

O autorretrato de Paula Rego, retomando a figuração, é afinal pretexto para glosar emoções e afetos, criatividade e identidade.

Conclusão

Para o entendimento da pintura do autorretrato em Portugal na época contemporânea, múltiplas são as possibilidades da sua abordagem. A própria palavra autorretrato é uma palavra de vocação polissémica. Nela cabe o que é específico da criação humana, cultural e visual,em associação com o cruzamento entre intelecto e técnica: a sede da ficção reside na tradução individual – através do registo da autoimagem pictural – de uma intencionalidade específica do próprio “eu”. Ainda que continuem certamente a suscitar amplas discussões, questões como a identidade, a intelectualidade, a cultura ou a técnica, relativamente à abordagem da autorretratística, não será demais lembrar que não é aleatório o facto de o autorretrato introspetivo por semelhança, que se desenvolve em Portugal no século XIX, ter prolongado a sua presença entre nós nos anos 70 do século XX, paralelamente com algumas manifestações de abertura a outras soluções que se foram afirmando sobretudo a partir do meado do século, assinalando a abertura do nosso país ao exterior (em grande parte com a intervenção dos bolseiros apoiados pelo mecenato da Fundação Calouste Gulbenkian) e na sequência da revolução de 1974, acompanhando as transformações sócio-culturais e a aproximação mais atualizada e próxima do cosmopolitismo.

Em termos imagéticos, os traços individualizados que no autorretrato identificam a referência da “persona”/individualidade irão depois dar lugar à sobreposição do ato criativo em si, e o autorretrato transforma-se então em intencionalidade de gesto de negação, destruição, provocação, secundarizando o sujeito da criatividade.

As incertezas universais – mesmo quando humildemente expostas – esbatem a segurança no reconhecimento da visão e da perceção transmitidas pelos sentidos humanos. A deriva e o medo do desconhecido acentuam-se e confundem-se, nos nossos tempos, a memória que assegura a identificação dos traços fisionómicos perde sentido, e a eternidade é equivalente do “hoje” e do “agora”. O autorretrato tende a converter-se em registo do efémero, do transitório e do vazio, acompanhando a eterna busca do sentido da vida:

 

 

Referências

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Notas

[1] Maupassant, La vie d’un paysagiste, cit. in Le Magazine Littéraire de Octobre 2011, nº. 512, p. 86

[2] Narração ou tradição popular cuja temática mobiliza seres imaginários ou acontecimentos, sendo estes dados como históricos – quer factos reais mas deformados, embelezados e por vezes misturados com o maravilhoso. Conforme Dictionnaire Hachette de la langue française, Hachette, Paris, 1989, p. 884.

[3] Narrativa lendária transmitida pela tradição que, com recurso à exploração de seres lendários – heróis, divindades, etc. – fornece uma tentativa de explicação dos fenómenos naturais e humanos. Conforme Dictionnaire Hachette de la langue française, Hachette, Paris, 1989, p. 1036.

[4] Conforme passagem da História Natural de Plínio-o-Velho, XXXV, 43, reproduzida por Victor I. Stoichita in Brève Histoire de l’Ombre, Droz, Genève, 2000, p. 11 e 17, e cita-se: “A primeira obra neste género foi feita em argila por Dibutades de Sicyone, oleiro em Coríntia, por ocasião de uma ideia de sua filha apaixonada por um jovem homem que ia deixar a cidade: esta reteve através de linhas os contornos do perfil do seu amante na parede à luz de uma vela. O seu pai aplicou em seguida argila sobre o desenho, ao qual deu relevo e fez endurecer ao fogo essa argila com peças de olaria. Esse primeiro tipo de plástica foi, diz-se, conservado em Coríntia, no templo das Ninfas…” (tradução da responsabilidade da autora do presente texto).

Vide também Maria Emília Vaz Pacheco, Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretrato, in Atas do II Colóquio de Doutorandos em História da Arte, Ciências do Património e Teoria do Restauro, IHA da FLUL, 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo).

[5] Platão, República, 514-519. Vide, designadamente, Victor I. Stoichita, ob. cit,, p. 7 (tradução da responsabilidade da autora).

[6] Stoichita, ob. cit., pp. 22 a 24 (tradução da responsabilidade da autora).

[7] X Livro, República, passagem citada a partir de reprodução de Victor I. Stoichita, in ob. cit., pp. 24 e 27 (tradução da responsabilidade da autora).

[8] Victor I. Stoichita, ob. cit., pp. 24 e 27 (tradução da responsabilidade da autora).

[9] A versão mais conhecida é a de Ovídio, nas Metamorfoses, que refere que “NARCISO era um jovem muito belo, que desprezava o amor. A sua lenda é transmitida de modos diferentes, consoante os autores. A versão mais conhecida é a de Ovídio, nas Metamorfoses. Nela, Narciso é o filho do deus do Cefiso e da ninfa Liríope. Quando nasceu, os seus pais consultaram o adivinho Tirésias, que lhes disse que a criança «viveria até ser velho, se não olhasse para si mesmo». Chegado à idade adulta, Narciso foi objeto da paixão de grande número de raparigas e de ninfas. Mas ele ficava insensível. Finalmente, a ninfa Eco apaixonou-se por ele; mas não conseguiu mais do que as outras. Desesperada, Eco retirou-se na sua solidão, emagreceu e de si mesma em breve não restou mais que uma voz gemente. As jovens desprezadas por Narciso pediram vingança aos céus. Némesis ouviu-as e fez com que, num dia de grande calor, depois de uma caçada, Narciso se debruçasse sobre uma fonte, para se dessedentar. Nela viu o seu rosto, tão belo, e imediatamente ficou apaixonado. A partir de então, torna-se insensível a tudo o que o rodeia, debruça-se sobre a sua imagem e deixa-se morrer. No Estige, procura ainda distinguir os traços amados. No lugar onde morreu, brotou uma flor à qual foi dado o seu nome, o narciso.” – Pierre Grimal, Dicionário de Mitologia Grega e Romana, Difel, Lisboa, 1992, p. 322.

[10] Victor I. Stoichita, ob. cit., pp. 30 a 34 (tradução da responsabilidade da autora).

[11] Chegou até nós uma cópia, em mosaico, dessa pintura mural do final do séc. IV a.C., proveniente da Casa do Fauno, em Pompeia, hoje no Museu Nacional de Nápoles, com a L de 5,82m e Alt de 3,13m.

[12] Vide Geoffroy Caillet, A la cour des arts florissants, in “Le Figaro hors-série” 3657, Octobre 2011, pp. 79 a 85. Conforme refere Caillet, a identificação do autorretrato de Apelles coloca em questão a atribuição tradicional do mosaico grego a Philoxénos de Eritreia.

[13] Afirmação tradicionalmente atribuída a Cosme de Médicis (séc. XV), é citada por Francisco Calvo Serraller, Ceremonial de Narciso - El Autorretrato y el Arte Español Contemporaneo, in El Autorretrato en España - De Picasso a nuestros días, Fundación Cultural MAPFRE VIDA, Madrid, 1994, p. 13.

[14] Cfr. Victor I. Stoichita, ob. cit., p. 91. (tradução da responsabilidade da autora).

[15] Joanna Woods-Marsden, Renaissance Self-Portraiture, Yale University Press, New Haven & London, 1998, p. 4.

[16] “(…) que começou um esforço sistemático de adquirir e expor retratos dos artistas que criaram as pinturas que os Medici, com a sua paixão por colecionarem, tinham acumulado nas residências dos seus familiares.” – Vide Federica Chezzi 100 Self-portraits from the Uffizi Collection, GIUNTI, Firenzi Musei, 2011 (1ª. edição 2008), p. 5. (Tradução da responsabilidade da autora do presente estudo).

[17] J.Woods-Marsden, ob. cit., p. 2. (Tradução da responsabilidade da autora do presente estudo).

[18] Ob. cit., p. 133. (Tradução da responsabilidade da autora do presente estudo).

[19] Idem, ibidem, p. 137. (Tradução da responsabilidade da autora do presente estudo).

[20] Transcrito por Henri Soldani, in AA.VV., L’autoportrait dans l’histoire de l’art - De Rembrandt à Warhol, Beaux Arts Éditions/TTM Éditions, 2009, p. 141. (Tradução da responsabilidade da autora do presente estudo).

[21] Cornelia Homburg, in Los Tesoros de Vincent Van Gogh, tradução em língua espanhola publicada em Barcelona em 2008 por Editors, S.A., Iberlivro - a partir da edição inglesa de Carlton Publishing Group do mesmo ano - p. 47. (Tradução da responsabilidade da autora do presente estudo).

[22] Adriana Veríssimo Serrão, Ideias Estéticas e doutrinas da arte nos sécs. XVI e XVII, in História do Pensamento Filosófico Português, Direção de Pedro Calafate, vol II – Renascimento e Contra-Reforma – Caminho, 2001, p. 157.

[23] Vide Dalila Rodrigues, Grão Vasco, Aletheia Editores, Lisboa, 2007, p. 31.

[24] Quando caminhava, Jesus entrou numa aldeia e uma mulher chamada Marta recebeu-o na sua casa. Tinha uma irmã, Maria, a qual se sentou aos pés de Cristo enquanto escutava a Sua palavra. Atarefada com o trabalho, Marta perguntou a Jesus se não O preocupava a irmã não a ajudar, ao que Cristo lhe respondeu que ela se preocupava com muitas coisas, mas que poucas são necessárias, ou melhor, uma só e que Maria tinha escolhido a melhor parte, que não lhe seria arrebatada.

[25] Vide Alexandre M. Flores e Paula A. Freitas Costa, “Misericórdia de Almada - Das Origens à Restauração”, Sta. Cada da Misericórdia de Almada, 2006, p. 83.

[26] Vitor Serrão, “O Maneirismo”, in História da Arte em Portugal, Vol. VII, Alfa, 1986, p. 86.

[27] Vitor Serrão, in A Pintura Maneirista em Portugal - Arte no Tempo de Camões, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, Lisboa, 1995, p. 494.

[28] A segunda representação pictural unindo outra geração de pintores, a geração naturalista, haveria de ser executada por Columbano, em 1885, que nela se autorretrata. O quadro foi destinado à decoração da cervejaria Leão de Ouro, sendo o único retrato da geração naturalista que frequentava aquele espaço, o qual, por sua vez, serviu de cenário à representação.

[29] Refere José-Augusto França, Perspetiva artística da história do século XIX português, 1979, pp. 22-23, a propósito da composição desta obra: “Lá estão todos os artistas românticos menos um; é Anunciação quem toma o centro da composição, no ato de pintar, e por detrás está Metrass, olhando, envolto numa capa (…) Ao fundo, enérgico e pequenino, Vítor Bastos, que fará o monumento a Camões; sentado no chão, modestamente, José Rodrigues, que será o modesto retratista da época e o pintor dos pobres; olhando, meio curvado e algo ansioso, o autor do quadro, Cristino, o contestatário da sua geração. Quem falta é Meneses, visconde recente (…) que prefere autorretratar-se em busto e muito medalhado, como noutro quadro se verifica.”

[30] Cfr. Maria Emília Vaz Pacheco, Silva Porto e o Naturalismo em Portugal, C.M.Santarém, IPPAR, C.M. Porto, Santarém, 1993, pp. 88 e 89.

[31] Visitou ainda a Inglaterra, a Bélgica, Holanda e Espanha e esteve em Capri, a cuja luz e regionalismo foi extraordinariamente sensível. Após o regresso, em 1879, e por morte de Tomás da Anunciação, ocupou a cadeira de Pintura de Paisagem na Academia de Belas-Artes de Lisboa. Foi considerado o maior pintor paisagista português de todos os tempos.

[32] E com quem casou em 6 de fevereiro de 1882 – Cfr. Maria Emília Vaz Pacheco, ob. cit., pp. 89 e 136.

[33] Tela hoje no Museu do Chiado, sendo a seguinte a identificação dos retratados: José Malhoa, Moura Girão, Rodrigues Vieira, Henrique Pinto, João Vaz, Silva Porto, António Ramalho, Rafael Bordalo Pinheiro, Cipriano Martins, Alberto de Oliveira, Ribeiro Cristino, Manuel, o Criado e o autor da tela, Columbano. Cfr. Maria Emília Vaz Pacheco, ob. cit., pp. 96/97.

[34] O desenvolvimento da produção artística de Condeixa processou-se entre as duas primeiras gerações naturalistas portuguesas, e embora a sua carreira como pintor de História tenha sido considerada por alguma crítica como secundária, foi também retratista de mérito.

[35] Este autorretrato ganha uma nova projeção desde a sua inclusão na obra 500 Self-Portraits, Phaidon Press Limited, London, 2007, p. 354 (1ª. edição 2000)

[36] Julian Bell, 500 Self-Portraits, ob. cit., p. 5. Tradução da responsabilidade da autora do presente texto.

[37] José-Augusto França, 100 Quadros Portugueses no Século XX, Quetzal Editores, Lisboa, 2000, p. 20.

[38] Cfr. José-Augusto França, 100 Quadros Portugueses do Século XX, Quetzal Editores, Lisboa, 2000, p. 50.

[39] Idem, ibidem.

[40] Bernardo Pinto de Almeida in AA.VV. O Rosto da Máscara, Centro Cultural de Belém, Lisboa, 1994, p.. 338.

[41] Tagarro foi um dos organizadores dos I e II Salões dos Independentes, em 1930 e 1931, e no breve espaço de tempo em que viveu, realizou duas exposições individuais, uma em Lisboa e outra no Porto. Revelou forte dinamismo artístico, tendo colaborado (embora sujeito às respetivas encomendas) em publicações como a Ilustração ou o Magazine Bertrand, entre outras. Concorreu aos salões da S.N.B.A. nos anos de 1927, 1928 e 1930. O reconhecimento da sua importância artística ficou patente na criação de um prémio com o seu nome, para as áreas do desenho e da aguarela, em 1944, pelo S.N.I.

[42] Maria Emília Vaz Pacheco, Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretrato, in Ver a Imagem, II Colóquio de Doutorandos em História da Arte, Ciências do Património e Teoria do Restauro”, I.H.A. da F.L.L., 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo).

[43] A pintora partiu para Paris em 1928, acompanhada pela mãe (perdera o pai aos três anos), a fim de completar a sua formação. Em 1932 foi aluna de Bissière, na Académie Ranson. Haveria de realizar a sua 1ª. Exposição Individual em 1933.

[44] José-Augusto França, 100 Quadros Portugueses do Século XX, Quetzal Editores, Lisboa, 2000, p. 20.

[45] José-Augusto França, ob. cit.,, p. 72.

[46] Participou em 1929 nas exposições do grupo + Além (marcada pela crítica ao academismo e ao ensino naturalista de Marques de Oliveira na E.S.B.A. do Porto), foi recusado na IV Exposição de Arte Moderna do SPN (1939) e realizou apenas uma exposição individual em vida, em 1936, no Salão Silva Porto.

[47] Camarinha pintou este autorretrato no início da década que corresponde à dedicação do artista à tapeçaria, técnica que renovou, em que se distinguiu e foi premiado em 1967. Anteriormente, obtivera o prémio “Souza Cardoso” do SPN/SNI, em 1936, e um 2º.prémio na I Exposição de Artes Plásticas da Fundação Calouste Gulbenkian, em 1957, onde o autorretrato esteve exposto, tendo sido adquirido no ano seguinte (1958), pelo M.N.S.R., por aquisição ao artista, com o Fundo João Chagas.

[48] Maria Emília Vaz Pacheco, Contributos de Jacques Derrida para o Estudo do Autorretrato, in Ver a Imagem, “Atas do II Colóquio de Doutorandos em História da Arte, Ciências do Património e Teoria do Restauro”, I.H.A. da F.L.L., 28 e 29 de maio de 2010 (no prelo).

[49] Cfr. Winfried Baier, O rosto da máscara, Fundação das Descobertas, Centro Cultural de Belém, Lisboa, 1994, p. 352.

[50] Paula Rego em entrevista com Melanie Roberts, Eight British Artists, Cross General Talk, in Fran Lloyd, From the Interior, Female Perspetives on Figuration, Kingdston University Press, 1997, p. 85, Citada por Ana Gabriela Macedo, Paula Rego e o Poder da Visão, Edições Cotovia, Lisboa, 2010, p. 121.

[51] Germaine Geer, Paula Rego, in Modern Painters, vol. 1, nº. 3, outubro de 1988; republicado em Karen Wright (org.), Writers on Artists, Nova Iorque, Moderna Painters, D.K. Publishers, 2001, pp. 66-71. Transcrito em Compreender Paula Rego, 25 Perspetivas, Edição de Ruth Rosengarten, Fundação de Serralves/Jornal “Público”, Porto, 2004, p. 161.