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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.26 no.3 Braga  2012

 

Masculino/ feminino: mitos e utopias em Yara, a virgem da Babilónia

Male and female identity: Myth and utopia in Yara, a Virgem da Babilónia

Benvinda Lavrador*

*Departamento de Estudos Ibéricos e Latino-Americanos da Universidade de Cocody-Abidjan, Costa do Marfim

flavrador@gmail.com

 

RESUMO

A configuração simbólica do romance Yara, a virgem da Babilónia (2008), do moçambicano Adelino Timóteo, se constrói entre a dimensão mítica e humana de uma figura feminina e o drama existencial de um homem. Oriundas de continentes distantes, vítimas da guerra ou da miséria, as duas personagens principais se cruzam na Beira, microcosmos da nação moçambicana. No confronto dos mundos masculino e feminino, entre sonho e realidade, se desconstroem mitos e se forjam novos ideais que subvertem os tradicionais conceitos de amor e idade bem como os da sexualidade e da virgindade. Mas, a busca utópica do amor em cada uma das personagem e a falha dos ideais remete para o fim do mito de uma nova e próspera nação que, após a euforia da independência, caiu na apatia e na inércia.

Palavras-chave: Moçambique; romance; feminismo; mito; utopia.

 

ABSTRACT

This article aims at analyzing the symbolic ideology of the novel Yara, a virgem da Babilónia (2008), by the Mozambican Adelino Timóteo, through the mythical and human dimension of a feminine figure and the existential drama of a man. Coming from different continents, victims of the war or misery, both characters encountered themselves at Beira, a micro space of Mozambique. In the confrontation of male and female worlds, between dream and reality, fiction deconstructs myth and creates new ideals which subvert traditional concepts of love and age, sexuality and virginity. But, utopia search of love from the characters and the failure of their ideals represents the end of the myth developed at the euphoric time of political independence of a new and modern nation which afterwards fell in apathy and inertia.

Keywords: Mozambique; novel; feminism; myth; utopia.

 

Introdução

Sendo o elemento masculino dominante desde tempos imemoriais («a objetivação da cultura masculina», segundo Georges Simmel[1]), o romance do escritor moçambicano Adelino Timóteo intitulado Yara, a virgem da Babilónia (2008), revoluciona esse paradigma social de forma sui generis. De facto, ao colocar como figura proeminente do universo romanesco uma personagem feminina que se revela empreendedora e subversiva, o escritor revoga o tradicional papel subserviente e passivo da mulher.[2] No entanto, pese embora o facto de o universo romanesco ser dominado por uma figura feminina, como indiciado no título, ele é também partilhado por uma personagem masculina de não somenos importância. Trata-se de um jornalista de setenta anos, cujo olhar de narrador autodiegético subverte os tradicionais conceitos de amor e idade. O universo romanesco problematiza ainda de forma insólita os temas da sexualidade e da virgindade destruindo mitos e configurando utopias.

A dimensão simbólica da obra se descobre entre a vertente humana de uma mulher sereia eternamente virgem e o drama existencial de um homem que em fim de vida ousa desafiar convenções e preconceitos. Oriundas de continentes distantes, com experiências de vida totalmente distintas (ela da Ásia, fugida da guerra, e ele de África onde vive na miséria), as duas personagens principais se encontram em Moçambique (na Beira) onde encetam uma busca utópica do amor augurando a desilusão que se seguiu às independências africanas e que ainda hoje perdura face às duras realidades vividas nesses países. De facto, no Grande Hotel onde vive o jornalista, micro-cosmos da nação moçambicana, imperam a miséria, a corrupção, a prostituição e a droga, vivendo a população da caridade alheia ao invés de gozar o progresso e o bem-estar sonhados.

É, então, da interseção destas duas sensibilidades que no texto moçambicano se cruzam vários mundos: o masculino e o feminino, o africano e o asiático, o do sonho e o da realidade. Mas, o fracasso das personagens remete, finalmente, para o fim do mito da nova e próspera nação moçambicana que, após a euforia das independências, se vê confrontada à pobreza e à inércia.

1. A dimensão mítico-simbólica e humana de Yara

A ação do romance decorre na Beira, cidade onde trabalha o jornalista e a que chega a personagem feminina depois um périplo bastante acidentado. Casada sete vezes mas ainda assim virgem, a mulher que o jornalista Francisco aceita encontrar na mesa do café Scala, tem trinta e oito anos, é bela e sedutora: «morena, muito bonita, de cabelos pretos e longos, de olhos acastanhados, (…) sobrancelhas bem arqueadas, cílios longos e densos e lábios rosados, (…) esbelta, pernas bem torneadas» (p.12). Mas o seu nome introduz desde logo uma nota enigmática: «Já o seu nome transfigurava a premonição dos deuses das águas: Yara» (p. 77). De facto, na mitologia brasileira, Yara era uma jovem tupi muito formosa que vivia no rio Amazonas. Cobiçada pela sua beleza e pela sua doçura, mas indiferente aos admiradores da sua tribo, numa tarde de verão, quando estava no banho, foi atacada por um grupo de homens e depois atirada ao rio. Então, o espírito das águas teria transformado o seu corpo no de uma sereia, cujo canto atraía os homens para depois os arrastar às profundezas do mar.[3]

Mas Yara é uma figura insólita também pela sua história.[4] Vivia na Babilónia e aos 18 anos era de uma beleza mítica.[5] Ela «banhava-se e cantava no rio Eufrates (…), as águas do rio pareciam quem a tinha gerado (…), uma beleza como ela parecia atributo mítico dos deuses daquelas águas», p.77 (a imagética da água é constantemente associada a Yara, mulher e água na sua função genésica - «a Yara tem um misto de cheiro do rio e do mar», p. 95. Para o narrador, a água tem poder igual ao da mulher - «todos os homens querem banhar-se no corpo dela», p. 83). Um dia, quando ela se banhava no rio Eufrates, foi vista pelo homem mais rico da Babilónia, Arkad, que com ela se casou. Mas, brevemente Yara enviuvaria deste e passaria quinze anos na torre da Babilónia num quarto destinado às virgens (simbolicamente «o quarto das virgens é o rio (…), a cama onde ela dormia era o barco», p. 82). Teria mais seis maridos, todos eles também mortos sem que ela tivesse alguma vez deixado de ser virgem. Quando a guerra rebenta na Babilónia, deixa o seu país natal num barco que navega nas águas do rio Eufrates e chega à Síria. Em seguida, atravessa o Mediterrâneo e chega ao Egipto. Percorre, então, o deserto a pé pelo Nilo abaixo guiada pela sua avó, a maga Isabel. Passa o Sudão e a Somália. Tendo perdido o contacto com a maga, em Katanga perde-se, sendo, então, conduzida por um garoto, cujos pais haviam perecido na guerra do Sudão. Este a leva até à Tanzânia. Depois, a maga ressurge e a conduz à Beira, onde se fixa («a África atrai-a porque aqui é possível que tudo aconteça», p.121). É aqui que ela vai ao encontro do repórter sem que se saiba ao certo as suas intenções.[6] Na mesa do café, onde se dá o encontro entre os dois, Yara tenta sensibilizar o seu interlocutor para o facto de ter deixado a Babilónia em busca da concretização de um sonho, sendo que o mesmo não desperta nele qualquer interesse.[7] Sentindo-se rejeitada, acaba por aceitar a companhia de um inglês, Westminster, com quem se refugia na casa de um babilónico. Numa noite em que se lavava, com voz cantante, atrai o anfitrião que, ao avançar para ela, a vê transformada em sereia (diz Yara que possivelmente essa capacidade de transformação seria uma herança da sua avó[8]). Daí vai para um convento.

Todavia, a sua história não tem apenas uma dimensão mítica mas também humana. Ela se apaixona por um jovem (Dalibo) antes de entrar para a universidade. A guerra da Babilónia lhe causa dor e a partida uma profunda ferida («um nó apertava o seu coração, uma dor inquietante, uma profunda ferida se apoderara dela quando o navio se afastava do porto fluvial», p. 117). Sofre e se sente mesmo desesperada no seu percurso pela Ásia e pela África[9], «um infortúnio vivido a pão e água», p.124. Na Beira, sente solidão («eu neste hemisfério, só», p. 122), por isso procura o jornalista pedindo-lhe que seja humano e lhe preste atenção (pp.14-15). A recusa deste em dela se aproximar suscita-lhe desilusão e lágrimas (p.14). A carta autobiográfica que escreve a seus pais no final da obra é plena de lirismo e emoção («há feridas que ocupam o lugar de margens», p. 122). Custa-lhe falar de Babilónia por causa da guerra e atrocidades que lá presenciou. É, finalmente, a terra africana que lhe traz esperança e fé, porque é lá que «mora o Humanismo», o seu «chão é feito de luz que mesmo sendo forte, ilumina as suas gentes ao sentir» (p. 122). O seu percurso é, pois, simbólico: «o sofrimento valeu porque me talhou» (p.125).

Além disso, vive em permanente conflito existencial: como ser mulher e continuar virgem? Como ser mulher sem ser mãe? Sabida a importância da virgindade e da fecundidade como elementos definidores da identidade feminina[10], será possível ser mulher sem procriar? Como diz Swain (2007), estudiosa do feminismo, «procriar, reproduzir a espécie passou a significar socialmente o feminino (…) deixando de ser mulheres a imensa legião daquelas que não podem ou não querem ter filhos, perdem a sua inteligibilidade social e alinham-se na fileira dos excluídos»[11]. Na sociedade africana a esterilidade é mesmo vista como uma maldição e a mulher estéril marginalizada e vista como nula. Esta conceção advém essencialmente do facto de se considerar, tal como postula Mircea Eliade, o dar à luz como «uma variante, em escala humana, da fertilidade telúrica»[12], isto é, a maternidade será uma manifestação das forças cósmicas e do sagrado[13]. A reprodução se afigura, pois, para a mulher africana não só como um dever social mas também como uma necessidade moral que lhe é intrínseca. Mas gerar significa obrigatoriamente entregar o corpo ao homem que valoriza a virgindade feminina como um bem precioso[14]. Então, como pôr fim ao mito de que «a virgindade não é algo que se perde», segundo Yara (p.47)? Como viver o amor sem entregar o corpo a um homem? Como ser bela e desejada sem ser possuída? Como ser ela própria sem ser de ninguém? Assim, a sua virgindade se torna símbolo ou protótipo de uma crise de identidade que afetará o ser-mulher cujo corpo parece pertencer ao homem por convenção social mas sobre o qual ainda é possível tomar posição: «para que é que os homens querem uma virgem? Para alimentar os seus caprichos» (p. 124). De facto, debatendo-se entre convenção e subversão, entre a posse da sua virgindade pelo marido que a reclama e a recusa consciente e sofrida dessa possessão, ela recusa o corpo sucessivamente aos seus sete maridos. Como redefinir por conseguinte a sua identidade de mulher face ao domínio masculino sendo o marido o intruso no seu corpo, a maternidade o único meio de dar continuidade à geração, a mulher definida pela maternidade, a mulher objeto possuído? É então que Yara chega à utopia sexual: amar e casar[15] mantendo-se virgem, subvertendo assim o conceito de virgindade - «uma pessoa pode ser virgem, mas impura. Sou apologista das virgens de alma», afirma (p. 124). Além disso, subverte também o próprio conceito do amor, pois sendo incapaz de se entregar aos seus sucessivos maridos se oferece de forma atípica a um desconhecido, a quem pede ambiguamente que seja humano (p.49). Terá ela recusado abdicar da sua virgindade por falta de humanidade dos seus pretendentes? Ou poderá o amor realizar-se fora do corpo, excluindo a sexualidade, baseado apenas num humanismo platónico? Tal parece ser a utopia de Yara de que o seu desaparecimento físico da diegese após o primeiro capítulo é prenúncio.

Após a desatenção do jornalista deixar-se-á ainda acompanhar por um inglês com quem também não consuma o ato sexual para que a eternização da sua virgindade se torne símbolo do corpo ostentado como signo identitário, isto é, a mulher não definida pela maternidade, a recusa de uma possessão outra. Para Yara, o ato sexual será então a violação do seu corpo e com ele da sua alma porque mesmo podendo a entrega física e/ou espiritual ser mútua, o homem é o intruso, o dono que Yara repele. Essa recusa de entrega se traduz no seu desaparecimento físico da diegese após o encontro inicial com o jornalista no café. Apenas volta de forma surreal nos escritos que deixa.

A afirmação da sua identidade de mulher insubmissa passa, pois, pela preservação do corpo como algo de exclusivamente seu mas também pela afirmação de uma personalidade fora do comum: «deixei que os meus pés tocassem onde o coração quisesse» (p. 125), afirma na sua carta autobiográfica. O seu percurso de Ásia a África, sendo invulgar e pejado de sofrimento, lhe dá fé e esperança no sonho: «desistir de um sonho não é mais do que iniciar o novo. E o meu caminho está coberto de mistérios de um novo sonho». O sonho do amor fora do corpo ou da sexualidade, seja ele utópico, é ainda o seu direito de mulher. Após ler a carta de Yara, o jornalista conclui, finalmente, que ela é uma mulher plena de ideias. A sua dimensão humana, ultrapassando pois a mítica, remete para a da mulher africana que, entre mitos e utopias, vai tentando redefinir a sua identidade.

2. Os contornos físicos e psicológicos da paixão no narrador

O ponto de vista do narrador autodiegético que domina a narrativa apresenta-nos como personagem principal um jornalista de setenta anos que tivera vários casos amorosos na vida. Vivera uma longa relação conjugal com Maria Cambaco, mulher «de pele negra, fosforescente, língua afiada, dentes como serrote detrás de uns lábios carnudos» (p. 20). No entanto, não partilha com esta o desejo de um casamento, pois ela «queria um casamento que consistisse em responsabilidades comuns», enquanto ele se diz «devotado defensor de liberdades absolutas».[16] É, então, que ela rompe com uma vida conjugal que a martiriza e procura a felicidade reconstruindo a sua vida: «Eu vou viver a minha vida e conseguir o meu objetivo, ser feliz» (p. 58).

O narrador tem também uma relação com a meretriz, Jezebela, que pinta os cílios dos olhos, cobre as maçãs do rosto com pó vermelho e a contra-face com castanho.[17] Esta personagem paradoxal, porque a todos se entrega considerando que o seu corpo nunca pertenceu a ninguém senão a si própria[18], opõe-se a Yara, confessando ao seu amante que está a perder a virgindade pela milésima vez.[19] No entanto, ele se distingue por ser o «único homem que lhe disse grandes verdades» e surpreendentemente o pede em casamento. Mais uma vez ele recusa este enlace porque o vê como uma prisão («tenho pavor ao casamento», p. 32). Esta relação é sobretudo intensamente física e de caráter temporário.

Penélope surge, então, para ele como uma referência única no universo feminino: estrangeira, muito bela, loira, de olhos azuis, tinha o mundo a seus pés desfrutando do seu tempo com homens negros («na sua lista de amantes incluíam-se figuras principais do Estado e do Governo», p. 33). Confessa ao narrador quando a vai entrevistar que, após perder a sua virgindade, se tornou numa «viciada do amor» odiando, também paradoxalmente, os homens porque estes são tão «prostitutas como as mulheres» e pensam que estas «foram feitas para ser a sua presa fácil de ter» (p. 40). Face ao «poder do seu corpo» e à «ditadura da sua beleza», ele «cai no domínio do seu encanto, do seu instinto vulcânico» (p. 41), mas o prazer também aqui é puramente sensual e temporário. Continuando a viver com Maria Cambaco e a envolver-se com outras mulheres chega ao caso com Mercedes, uma brasileira professante de catolicismo, uma «quase-quase» virgem, pois tendo começado cedo as suas aventuras nas roças, cortiços e favelas, mais tarde se torna uma eremita quase louca. Mas também este encontro é fortuito.

Yara chega como qualquer outra mulher na sua vida quando ele já está avançado na idade. Após um breve encontro na mesa do café sem grande interesse, ela revela-lhe que é virgem e que tivera sete maridos. Inicialmente indiferente a esta sedutora, crê mesmo piamente que o único e «mais puro desejo» (p. 50) dessa mulher seria apenas usá-lo para perder a sua virgindade e que ela teria mesmo vergonha de ser virgem. Seus sete maridos teriam sido inclusivamente apenas uma forma de esconder essa vergonha. Vendo, então, a sua desfloração como uma posse carregada de consequências (significaria «suportá-la para o resto da vida» (p. 50), resiste de imediato a essa sedução física. Mas o corpo desta mulher, que os maridos não conseguiram possuir, e que ele inicialmente recusa, acaba finalmente por lhe suscitar um forte desejo físico.

Conhecida como a «virgem de peitos e nádegas escaldantes», a influência que terá sobre o jornalista vai, no entanto, além do puro desejo físico uma vez que ele vê nela qualidades humanas extraordinárias que lhe tocam no mais profundo da alma. De facto, após certas questões iniciais que o deixam perplexo e sem respostas para as dúvidas[20], começa a sentir uma atração sem limites pela desconhecida, começando a procurá-la incessantemente. Rapidamente, esta se vai transformar no ícone da sua paixão, das suas aspirações mais íntimas, como a materialização de um ideal que ele persegue desde sempre («eis o que eu nunca tinha feito na vida: buscar um amor para ser feliz», p. 57). Os dias subsequentes de busca infrutífera só lhe deixam tristeza e amargura («a tristeza passara a ser a minha companheira constante», p. 59). Um dia, ao saber que Yara teria sido vista na companhia de um inglês, vê-se consumido de ciúmes que o levam a intensificar a procura. No entanto, é a carta que ela escreve a seus pais, cuja cópia o barbeiro Sitole lhe mostra, que o vai emocionar sobremaneira mostrando-lhe sem sombra de dúvida que ela era, de facto, um ser excecional.

Finalmente, a hipnose que a misteriosa figura feminina lhe provoca leva-o a seguir o penoso caminho de um convento agarrado ao sonho de lá a encontrar e de constituir família com aquela que finalmente se lhe afigura como o modelo de mulher que toda a vida desejara (p. 156). A perspetiva do reencontro dá-lhe alento para chegar ao fim da caminhada, mas ao saber que Yara fora transferida para destino desconhecido, fica destroçado. Caminha, então, à deriva à beira-mar, só com a natureza como cúmplice do seu intenso sofrimento, até sentir que sai do seu corpo: as ondas do mar o acariciam, as árvores escutam seus desabafos, os pássaros o tentam consolar e a lua se torna sua aliada[21]. É, então, uma pedra que agarra com toda a sua força que o faz reviver dando-lhe a ilusão de ter em seus braços essa mulher avidamente procurada. Naquele lugar adormece sonhando com ela, mas ao acordar surge o vazio: a mulher terá realmente existido ou foi um sonho? Seja como for, sem fronteira definida entre sonho e realidade, «numa vida algo limite», ele subverte o mito da velhice como o fim da vida, imprópria à paixão, fazendo de um amor hors norme a sua razão de viver.

Conclusão

A guerra na Babilónia trouxe morte, sofrimento, orfandade e estropício - «meninos que ficaram órfãos, (…) velhos abandonados na solidão dos lugares destroçados. (…) uma mulher grávida a quem os soldados estupraram» (p. 123). Yara parte sob as bombas atiradas contra o seu povo. A guerra na Babilónia, figura da África, traz a perda da identidade e representa, sem dúvida, o fim de certos mitos: «o mundo não é o que me parecia anteriormente. Ele é feito de salpicos de refugiados e apátridas. Tal como na Babilónia, na África, há gente que perdeu a noção da sua história e origem por causa do sofrimento» (afirma Yara, p. 123). Tal como o povo africano, ela nutre um sonho: o de acabar com o mito da mulher sereia. De facto, depois de ter enviuvado sete vezes, de ter escapado à guerra na Babilónia, e de um percurso acidentado pelo deserto, deseja casar-se e ter uma família. Mas a sua busca utópica de felicidade, forjada na dor e no sofrimento, representará o malogro do sonho africano após as almejadas lutas pela independência que desembocaram em guerra e pobreza. A experiência gorada da figura feminina («de Yara o mito é algo que lhe fugia», p. 154) surge, pois, como prefiguração das frustrações de um povo que sonhou ser livre mas se viu aprisionado na miséria e devastado por conflitos - África dilacerada pela ambição dos poderosos, é «um chão que geme, que grita, que sofre (…) porque em todo o lugar os homens são caçadores furtivos que a si próprios se azagaiam na floresta das suas incontroladas ambições».[22]

Embora virgem depois de ter casado sete vezes, ela ousa ainda amar o jornalista acreditando que mais importante ainda que a virgindade do corpo seria a pureza de sua alma. A tentativa de reconquista de uma identidade perdida após a guerra na Babilónia, a busca da felicidade amorosa com o jornalista para além dos obstáculos, representam, pois, a crença na reanimação e no progresso do continente africano após o mito independentista que não trouxe nem o progresso nem o desenvolvimento esperados. A dimensão humana de Yara remete para o sofrimento das gentes africanas maceradas pela guerra mas que ainda assim perseguem a busca de ideais e de sonhos iminentemente humanos - «pelos lugares por onde passei há gente que nada tem (….) mas as pessoas são talhadas ao humanismo no meio do sofrimento porque passam» (p.125).

Por seu lado, o narrador procura com sofrimento esta mulher que apenas viu uma vez e lhe desapareceu de vista. Enquanto a mulher sonha utopicamente acabar com o mito da mulher sereia eternamente virgem, ele, já avançado em idade, ao invés, se lança na conquista de um mito: a realização amorosa plena, depois de tantos fracassos e já idoso, com uma virgem sereia enigmática e fugidia que matara os seus sete maridos. Desmistificando preconceitos e interditos, a construção da sua utopia assenta também na eterna possibilidade do sonho. Mas, a impossibilidade do reencontro de Yara, o malogro da sua busca, representará também a falência do mito que alimentou as gerações africanas na luta pelas independências: o novo dia que raiou sobre o continente veio infelizmente carregado de incertezas e dor. O fim do sonho parece realmente absurdo: a virgem desapareceu do convento porque a sua mulher, Maria Cambaco, que o tinha deixado e reconstruído sua felicidade com outro, chegou antes dele ao lugar dizendo que ele procurava Yara para a matar. É então assim que um homem e uma mulher ávidos de felicidade, procurando-se mutuamente sem saberem, e não se reencontrando por razões absurdas, nos revelam um mundo às avessas onde o vazio existencial que assola as personagens se torna semelhante ao que as independências criaram nas populações africanas face à ocidentalização das culturas autóctones. Estas se sentem à deriva e sofrem na pele as incoerências e os desajustamentos de uma nova e estranha ordem. Tal como o narrador caminha à deriva pela beira-mar, as novas nações africanas em permanente ebulição parecem, por vezes, em desnorte. Atingindo o seu auge na praia, o sofrimento do jornalista[23] representa o reavivar das dores do continente, não já sob a ordem esclavagista ou colonial, mas sob uma neo-colonialidade impregnada de dificuldades e desigualdades. Contudo, a pedra que encontra e que transporta consigo, objeto inanimado que paradoxalmente lhe dá a sensação de transportar uma mulher amada, lhe permite converter o insucesso da busca na miragem de um futuro brilhante: «quedo-me e adormeço com a pedra entre os braços. Neste dia sonho que me casara com Yara» (p. 161). Urge preservar ideais não obstante os fracassos! Assim, destruindo o mito de que o fim de vida exclui o sonho, a pedra parece dizer-lhe que sob os destroços das lutas independentistas ainda há esperança para a terra africana: há que renascer!

Por conseguinte, não obstante a busca utópica das personagens se afigurar como uma peregrinação fracassada em direção a um ideal, ela é, antes de tudo, o trilhar de um caminho espiritual, a descoberta de que nunca é tarde para se encontrar uma nova razão para a vida: «o meu caminho está coberto de mistérios de um novo sonho» (p. 125), afirma o protagonista. O percurso iniciático das duas personagens parece, portanto, remeter para a reanimação do continente africano após o fim do mito que alimentou as primeiras lutas independentistas. De facto, depois do sofrimento da guerra e do deserto, Yara tenta recomeçar uma vida normal com o jornalista e este, por seu lado, acredita no amor e na felicidade ao lado dela depois de tantos fracassos amorosos.[24] O reiniciar do sonho e a esperança na felicidade abrem, pois, simbolicamente uma estrada de otimismo ao homem africano.

 

Referências

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SWAIN, Tânia (2007), «Meu corpo é um útero? Reflexões sobre a procriação e a maternidade», in Maternidade e feminismo, estudos interdisciplinares, Cristina Stevens (org), Florianópolis, Edunisc, pp. 203-247.         [ Links ]

TIMOTEO, Adelino (2008), Yara, a virgem da Babilónia, Texto Editores Lda, Maputo.         [ Links ]

 

Notas

[1] Vide SIMMEL, Georges, “A cultura feminina” in Philosophie de la modernité, p. 159. O pensador alemão identifica a cultura objetiva que domina o mundo capitalista com a cultura masculina.

[2] Veja-se Helen Carr, por exemplo, que constata, sem ambiguidade, que não-europeus e mulheres ocupam o mesmo espaço simbólico no discurso colonial por serem considerados «parte da natureza e não da cultura», incapazes, passivos, imaturos («in the language of colonialism, non Europeans occupy the same symbolic space as women. Both are seen as part of nature, not culture (...) passive, child-like, unsophisticated, needing leadership and guidance, described always in term of lack»), CARR, 1998: 159-160.

[3] Esta mesma explicação é dada na página 78 do romance. João Barbosa Rodrigues transcreve a lenda no seu ensaio: «Lendas, crenças e superstições», in Revista Brasileira, tomo X, pp. 35-37. Iara significa «mãe-d’água» ou «senhora d'água», de "í" água e "ara" senhora (o autor escrevia com "y" por causa da pronúncia). Ver, também, BRANDÃO, Toni, A Iara.

[4] «A história de Yara é semelhante a um rio, um rio com um curso misterioso», p. 82.

[5] «Uma beleza como ela, não parecia coisa deste mundo», p. 77.

[6] «Não entendo absolutamente o motivo por que ela deseja que eu seja o seu saco de desabafo» (p. 14), diz o jornalista/narrador.

[7] «Não sei se ela se terá apercebido que batera em porta errada», p. 14.

[8] Ver pp. 112-114.

[9] Ver pp. 118-121.

[10] Na cultura ocidental «a mulher que pare com dor, que aleita com sacrifício, que conduz a criança em seu frágil colo, é o ideal máximo de feminilidade que o século XIX preconizou.» (NUNES, 2000:80). É por isso que as teóricas do feminismo, entre as quais Bell Hooks, vão procurar «desconstruir a categoria ‘mulher’ e argumentar que o género não é o exclusivo determinante da identidade da mulher» (Hooks, 1994:77).

[11] In SWAIN, 2007:204.

[12] In ELIADE, 2001: 120-121.

[13] Amadou Hampâté Bâ, filósofo e escritor senegalês, postula mesmo que na mulher se manifestam forças cósmicas através da maternidade. Vide Aspects de la civilisation africaine.

[14] A problemática corpo/maternidade associada ao domínio da mulher/mãe é objeto de estudo das feministas. Veja-se, por exemplo, STEVENS, 2007.

[15] Esse seu desejo vem explicitado na pag. 152.

[16] Vide p. 20.

[17] Vide p. 28.

[18] Vide p. 107.

[19] Vide p. 30.

[20] Vide pp. 17 e 19: «Nos minutos subsequentes à revelação da sua virgindade enchi-me de perguntas», «sem respostas para as perguntas que me assaltam».

[21] Vide p. 160.

[22] Vide p. 122.

[23] Veja-se a seguinte passagem: «só as árvores escutam meus soluços incontidos, só o mar dá ouvidos às minhas lamúrias, só as dunas (…) é que sentem verdadeiramente quanto é a amargura dentro de mim.», p. 159.

[24] «A novidade da chegada dela é que veio suscitar a esperança, acordar desejos de amar em muitos que não o sentiam há séculos», p. 154.