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Revista Diacrítica

Print version ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.27 no.2 Braga  2013

 

Orbae matres. A dor da mãe pela perda de um filho na literatura latina Cristina Santos Pinheiro, Lisboa, fundação Calouste Gulbenkian, fundação para a ciência e a tecnologia, 2012. 530 pp. ISBN: 978-972-31-1436-2

Virgínia Soares Pereira*

*Universidade do Minho, Instituto de Letras e Ciências Humanas, Departamento de Estudos Portugueses e Lusófonos, 4710-057 Braga, Portugal.

virginia@ilch.uminho.pt

 

O volume em apreço, da autoria de uma docente da área de Estudos Clássicos da Universidade da Madeira, Cristina Santos Pinheiro, é o resultado de uma longa investigação que culminou (mas não terminou) na realização da dissertação de doutoramento sob o mesmo título. Nas palavras da A., “O projecto desta dissertação nasceu na sequência da união das áreas de Psicologia e de Estudos Clássicos numa estrutura nova e sem precedentes a que se deu o nome de Departamento de Psicologia e Estudos Humanísticos.” (p. 3). A inesperada afinidade de interesses entre estas duas áreas e o próprio e acentuado interesse de Cristina Santos Pinheiro pelo tema da condição feminina e das suas vivências, da sua força e das suas fragilidades, obtiveram como resultado um livro admirável e surpreendente, na sua dupla estruturação e na profunda humanidade que o envolve, que dimana da A. e se comunica ao leitor.

Para tal não deixa de contribuir o horizonte temporal escolhido para palco e cenário da investigação – os finais da República e o Principado de Augusto –, que é um tempo rico de contornos e matizes, de luzes e sombras, de tradições e de inovações, marcadamente acentuadas no tempo de Augusto no que à reavaliação moral da sociedade diz respeito, porquanto, como escreve Cristina Pinheiro, “Nesta restauração de costumes que Augusto pretendia, a existência feminina recebeu atenção singular e as mulheres da casa imperial assumiram uma importância determinante na criação da imagem pública dos imperadores que lhe sucederam.” (p. 5). Neste tempo, política, arte, religião, literatura e legislação conjugam-se, diz a A., na definição de papéis sociais e do papel da mulher, nomeadamente na questão do casamento, da maternidade e da morte.

É com este pano de fundo que o tema se desenvolve ao longo das suas 530 páginas, em duas partes distintas: A Parte I (cerca de duzentas páginas) é de âmbito histórico e sociológico e ocupa-se da saúde da mulher no que se prende com a maternidade (e o modo como é vista nas obras de medicina ginecológica), e aborda ainda questões relativas ao “enquadramento jurídico, social e moral da maternidade”, além de tratar de matérias como taxas de natalidade, doenças e causas de morte entre adultos e crianças, e ainda cerimónias fúnebres. Para este estudo são convocadas autoridades como o Corpus Hippocraticum, Plínio, o Velho, Sorano de Éfeso, Celso, que documentam como é antigo o interesse dos estudiosos pelos gynaikeia (estudos ginecológicos). Esta secção tem a ilustrá-la um conjunto de 10 quadros que reúnem interessantes informações sobre o tipo e local de sepultura de crianças e dados numéricos provenientes de escavações arqueológicas, realizadas em várias zonas e relativas aos primeiros séculos imperiais; acresce que todos estes dados são recolhidos em fontes perfeitamente identificadas.

A Parte II é de feição eminentemente literária e começa por traçar um quadro panorâmico sobre a teorização retórica do lamento nos autores clássicos, a que se segue um olhar atento sobre a expressão da dor e do luto na literatura latina, revisitados através do estudo de algumas obras de três vultos da maior envergadura poética: Virgílio, Ovídio, Séneca.

É difícil escolher entre estas duas secções tão distintas, mas ambas tão ricas de informação, de perspetivas, de sensibilidade poética, de humanidade. Entre os realia e a sua representação literária, a dissertação traz ao nosso conhecimento não só as mulheres que sofreram por serem mulheres, mães, e, sobretudo, matres orbae, enquadradas numa sociedade que tendia a reconhecê-las sobretudo como garante da tradição e perpetuação familiar, mas também a dor das mulheres da tradição mítica que a literatura representou. Para esta segunda parte, são carreados, num primeiro capítulo, estudos teóricos sobre o treno, o lamento, a consolação (documentados em algumas obras de Cícero, Rhetorica ad Herennium, Quintiliano, Séneca, Valério Máximo). Segue-se uma detida análise do sofrimento representado nas principais figuras femininas da Eneida, que refletem a mundividência do Mantuano e constituem como que o seu implicit comment:a dor de Dido, amante abandonada que não teve filhos; os lamentos desesperados da mãe do jovem Euríalo, caído em combate (a este lamento e às suas fundas implicações no universo feminino e épico do poema, são consagradas cerca de vinte páginas de minuciosa e sensível análise estilístico-literária); Juturna e a dor perante a morte iminente do irmão Turno; Evandro e Mezêncio chorando a morte dos filhos Palante e Lauso, respetivamente, caídos em combate; outras tantas mortes que constituem presença inevitável num poema épico caracterizado por uma forte componente guerreira. Note-se que a ocorrência, na Eneida,de tantas mortes ante diem tem sido objeto de inúmeras e por vezes contraditórias análises, perspetivas, conclusões, embora todas elas redutíveis, em última análise, às duas visões dicotómicas que têm norteado os estudos do epos virgiliano, uma épica e optimista, outra pessimista e profundamente trágica. Mas a A. traduziu muito bem esta dupla visão, só aparentemente paradoxal. Como escreve, na p. 276, a concluir o capítulo consagrado à Eneida: “Para nós, que lemos a Eneida neste início do século XXI, o luto e o sofrimento carregam um peso negativo que recai sobre quem deles beneficia. Para Vergílio e para os Romanos do seu tempo, são elementos intrínsecos da vitória e um preço a pagar pelo triunfo, é certo, mas também pela conquista da paz. É a parta uictoriis pax de que Augusto se vangloria nas Res Gestae (2.43-44).”

Depois da Eneida, a A. faz incidir a sua atenção em várias matres orbae e outras figuras dolorosas do universo ovidiano das Metamorfoses e dos Fastos. Refiram-se: a dor de Clímene e das Helíades perante a morte de Faetonte, o sofrimento de Agave e a morte de Penteu, Ino e Atamante, Ceres e o doloroso sentimento de perda pelo rapto de Prosérpina; a infinda dor de Níobe, que perdeu doze filhos, “seis filhas e seis filhos vigorosos” (como lembrou Homero, no final da Ilíada) e a sua transformação em pedra; a vingança de Procne e o assassínio dos filhos; Alteia e as irmãs de Meleagro, Alcmena (mãe de Héracles), a nora Íole e o relato doloroso da transformação da irmã, Dríope, em pedra; a suprema dor de Hécuba, que viu morrer todos os seus filhos (cerca de vinte páginas dedicadas a esta figura mítica que ilustra paradigmaticamente, mais do que qualquer outra, a inconstância da fortuna); são ainda objeto de atenção duas outras figuras míticas, Vénus e Aurora. Cristina Pinheiro, procurando delinear os contornos dominantes em todas estas figuras, conclui que são convencionais os traços da representação ovidiana do amor materno, que a dor infinda faz com que a mulher se comporte como um animal ou fera, e que a mulher orbata nunca deixa de ser sentida como um ser inútil à sociedade, pois a perda de um filho acaba por afetar a já frágil dignitas social da mulher.

O último grande capítulo da dissertação é dedicado a Séneca e às figuras femininas da sua dramaturgia, nomeadamente Andrómaca, Hécuba e Medeia, símbolos inquestionáveis da maternidade trágica. Uma análise profunda das Troades (“As Troianas”) comenta a tragédia das duas primeiras mulheres, Andrómaca (mãe de Astíanax) e Hécuba (mãe de Políxena). São mães inconsoláveis que perderam os seus filhos, vítimas de vingança no contexto atroz da guerra. Por sua vez, a tragédia Medeia representa, como todos sabem, a mulher que se privou dos filhos, por vingança, por amor.

Estes são os grandes capítulos que compõem o volume, que encerra com uma breve conclusão, a que acrescem uma Bibliografia (pp. 487-508) e um Index Locorum (pp. 509-530), que são de regra, sem dúvida, e da maior utilidade numa obra de recorte académico.

A extensão do volume não nos permite apresentar dele uma visão mais circunstanciada. Mas importa dar particular ênfase a alguns aspetos dignos de nota: o interesse das referências médicas e jurídicas relativas ao tema em estudo, a abundância de notas esclarecedoras e atinentes às fontes consultadas, a elegância da escrita e a acribia das constantes análises estilístico-literárias e dos comentários de inúmeros passos extraídos de Virgílio, Ovídio e Séneca, que ilustram de forma magistral as múltiplas variáveis da condição feminina: a fragilidade da mulher, a maternidade, a frustração, a dor, a vingança, etc… Nas palavras de Cristina Santos Pinheiro, que encerram este seu estudo (p. 485): “A mater orba é uma figura aterradora que representa aspetos inquietantes da humanidade: o sofrimento, a frustração do futuro, a imprevisibilidade da fortuna. Mas é precisamente devido a essa dimensão humana, é porque qualquer indivíduo se vê representado na imagem da mãe que chora a morte do filho, que ela constitui um dos motivos mais patéticos e apelativos da arte e da literatura.”

Assim termina este valioso e surpreendente estudo. Ele comprova, sem dúvida, uma constante dos estudos que se acercam da matéria e dos tempos clássicos: a sua perenidade, a sua vitalidade, a sua capacidade de continuar a interpelar-nos. Olhar o mundo que nos rodeia sem conhecer os Clássicos é possível, segundo alguns, mas a acuidade desse olhar tende forçosamente a perder-se.