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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.27 no.3 Braga  2013

 

Sombrias manobras do amor: (in)evidências em Alanis Morissette

Love’s shadowed elusiveness: (un)evidences in Alanis Morissette

Diogo André Barbosa Martins*

*Doutorando em Ciências da Literatura – Ramo Teoria da Literatura, associado ao Centro de Estudos Humanísticos (CEHUM), Universidade do Minho, Braga, Portugal.

dioguito.dioguito@gmail.com

 

RESUMO

Pretende-se interpretar duas letras de Alanis Morissette, incluindo o videoclipe de uma delas, no sentido de compreender de que modo a própria visibilidade inerente ao que no discurso é, por definição, comunicável tende a esboçar sentidos inesperados (da ordem do não-dito entre o dito), nos vaivéns entre o texto, a imagem e a música. Sendo as lyrics morissetteanas reconhecidas pela sua exacerbada filiação autobiográfica, de que maneiras consegue o self realizar-se minimamente na e pela escrita de caráter íntimo, quando o que melhor caracteriza a intimidade é, em termos agambenianos, a sua pura singularidade como experiência e, portanto, o facto de ser absolutamente intraduzível ou irrepresentável?

Palavras chave: autobiografia; devir-paisagem; voz; desejo.

 

ABSTRACT

We aim to interpret two lyrics by Alanis Morissette, including the music-video of one of them, in order to understand how the former visibility that confers discourse to its own communicability is able to produce unexpected meanings (the un-said between what is being said), in the crossovers intertwined between text, image and music. Since Alanis Morissette’s lyrics are known for their explicit autobiographical tone, how can the self at least feel accomplished by writing in an intimate mode, if intimacy, in Agamben’s terms, is defined by its pure singularity as a form of experience and thereby being absolutely untranslatable or irrepresentable?

Keywords: autobiography; becoming-scenery; voice; desire.

 

Andamos em tormenta como em mar,

com outrem, e connosco em diferenças

Sá de Miranda

Se ver para crer define, por excelência, a atitude desconfiada de alguns céticos em matérias que primam pelo seu défice de objetividade, ler para crer poderá, de algum modo, servir de mote para o caso das autobiografias e dos autorretratos literários: ler para crer, não numa confessada sinceridade autoral (que a palavra, por mais que se queira, apenas consegue figurar e desfigurar), mas na precedência existencial desse autor, dessa pessoa e, enquanto pessoa, desse magma de intensidades, experiências únicas e sentidos intraduzíveis. A existência precede a ontologia. Neste sentido, a escrita íntima comporta, na sua definição mais lata, os gládios da sua execução técnica versus o espelhamento de um pressuposto si interior: recuperando Jean-Luc Nancy, escrever é ex-crever (que, por sua vez, recupera o ex-time heideggeriano via Lacan, a não coincidência do sujeito consigo mesmo, ao dizer que tem um corpo e não que é um corpo, etc.) e a intimidade, vista por si mesma, é apenas o que é, esse id sensível, anterior à linguagem e a outros lenitivos da simbolização. Falou-se de espelhamento do eu, reencenando Narciso vendo-se / lendo-se na água / página do texto – mas a própria noção de espelho é, por si só, outro tópico embaciado por sombras e polémicas: pense-se apenas no nosso reflexo que só existe na medida em que o / nos vemos invertido(s). O eu que aí se vê e assim se crê (como um eu) está encurralado, segundo as conhecidas teses lacanianas, num plano meramente imaginário: daí as neuroses, as psicoses, toda uma angústia a tentar consolar o desejo de uma identificação que, levada às últimas consequências, jamais teve ou terá lugar neste mundo.

Para o efeito, polémicas e dissensos categoriais à parte, assumir que Alanis Morissette é uma cantautora autobiográfica tem, pelo menos para a própria, benefícios consoladores: entre as infinitas definições líquidas que circulam entre os textos da pós-modernidade, achar uma só que lhe sirva de repouso é, no mínimo, eticamente salutar, ainda que para os críticos académicos isso soe a algo esteticamente infecundo.[1] Se o termo autobiografia convoca a noção de um eu e de uma interioridade emocional, para Alanis Morissette a escrita de canções recobre circunstâncias episódicas deste género: “I feel (sometimes exhaustingly) attuned and affected by the subtle exchanges that pass seemingly benignly between us as human ships” (Morissette, Dec. 5, 2011) – e eis, então, que surge uma pulsão para a escrita, feita de snapshots e outros materiais condutores de fugacidade.

Detenhamo-nos, assim, na natureza das suas próprias palavras: escrever pressupõe uma existência viva de si mesma e em si mesma; essa existência é inevitavelmente performativa (acontece pelo simples facto de já existir, não pode escapar a essa condição); ademais, incarna-se (existir é ter corpo, com tudo o que a fenomenologia sobre ele escreveu e continuará a escrever; ter corpo é sentir – I feel); a consciência de si sofre, por vezes, um excesso dessa natureza de ser um ser sensível, senciente e sentido – de sofrer, portanto, de hiperconsciência (sometimes exhaustingly); envolve empatia, contacto, afetos, deixando marcas em si e nos outros (attuned and affected); nem tudo é da ordem do objetivo ou do inteligível (the subtle exchanges), nem sequer da ordem da diafaneidade absoluta (os laços sociais são paranoicos, suspeitam sempre das primeiras intenções e muito mais das segundas: that pass seemingly benignly); a sociabilidade implica mediação, uma zona de interfacialidade (cf. Sloterdijk, 2002)[2] que não está em mim ou em ti, mas nesta química impercetível, neste campo de forças, que é o que abre este espaço para a nossa relação acontecer (o entre: between us); uma relação que é, portanto, química, volátil, imprevisível, pródiga de coisas subjetivas – memórias, piadas, obsessões, fotografias, parcelas (os mitemas barthesianos) –, que existem na qualidade de diferenças puras, em permanente travessia ou em fluxo, como todo o relativismo transiente encapsulado em forma humana (as human ships; note-se o as comparativo, que inquina um evidente desajuste ontológico, o da persona / máscara, que Agamben qualifica de especial, que vem de uma species, de um uso ou de um gesto).[3]

A intimidade é, então, extremamente sensível ao toque (ou à visão, que é háptica), mas não lhe é subsumível: vive de uma tensão constante, de um entre. De modo análogo, a escrita íntima – ou, simplesmente, a escrita – envolve tensões, intenções e intencionalidades; se equiparável ao toque, opera a consciência de uma distância conceptual, topologizando a materialidade do corpo e determinando, assim, aquilo que Jean-Luc Nancy define como a sua “arealidade” (Nancy, 2000: 42-43). Tocar um corpo, diz Nancy, é um gesto impossível: o tocar não absorve; limita-se tão-só a mover-se ao longo das superfícies e texturas que inscrevem e excrevem um corpo. Daí que a condenação ao simbólico possa ser / parecer intransponível: não se pode tocar o corpo sem evitar “significá-lo ou obrigá-lo a significar”, mas tal precocidade ou convencionalidade de resposta, segundo Nancy, esconde a evidência mais fulcral, que é o facto de escrever não ser significar: não adianta perguntar “como tocar (n)o corpo?” ou “como tocar?”; é preferível asseverar logo que sim, que tal acontece na ex-crição, ou seja, numa escrita endereçada ao corpo-fora, a uma escrita que de escritura não tem nada.[4] Por isso, o recentramento na euidade do sujeito e na sua massa referencial, desde as Confissões agostinianas à fotografia de perfil de um usuário do Facebook, passa necessariamente por uma reconfiguração do real subjetivo, por muito que a mitologia romântica (a do eu refletido na sua obra) figure ainda como a imagem mais familiar ao senso comum (jargão: a poesia exprime sentimentos… porém, mesmo um ready-made de Duchamp, feito à medida para cortar com a aura museológica, pode ainda assim ser emocionalmente neutro?). Como assinala Claire Legendre, “Le réel – dont le soi et l’intime sont les corrélats irréductibles – n’est pas intrinsèquement noble ou abject, mais il est matière à œuvres, transcendées ou non” (in Le Magazine Littéraire, 2013: 47).

Volte-se ao ver para crer. Alanis Morissette nasceu e cresceu na plenitude da hipervisibilidade e da emancipação universal da imagem. A sua música tem um rosto: o seu, cartografado de diferentes maneiras, maquilhado com estas ou aquelas cores, mas sempre reconhecível nos vários videoclipes que acompanharam a sua promoção comercial. Se durante muito tempo a imagem fora demonizada, tal se deveu, como nota Marie-José Mondzain (2009: 16), ao facto de ela ter sido (con)fundida com um sujeito, logo passível de ser vilificado com uma culpa (ecos cristológicos da Paixão, do verbo feito carne que é depois desfeito na cruz): a iconocracia leva-nos a crer nas imagens como potências que impulsionam crimes, alienação e suicídios (o ícone mortifica o referente e, à parte estes preciosismos da semiótica, acaba matando a própria pessoa à qual se reporta a referência: pense-se em Marylin Monroe via Warhol e ainda em Jimi Hendrix, Kurt Cobain, Amy Winehouse ou Whitney Houston – gente da música, cuja voz fora simultaneamente devorada pelos ouvidos e pelos olhos, pela premência da imagem forçada a tornar-se pública e a exasperar). Guy Debord fizera juízos reprovadores em relação à sociedade do espetáculo, pensando a exterioridade como a encenação de um vazio que fora usurpado às consciências individuais, súbitas marionetas movidas sem fios: a exterioridade devém a própria essência. Debord resume o caráter nefasto do olhar contemplativo na posição ocupada pelo espetador, que assiste, impávido, comfortably numb (à la Pink Floyd), a uma representação daquilo que lhe é negado e subtraído: a posse da sua própria essência, aplainada na forma de sombras projetadas (“plus il contemple, moins il vit”, Debord, 1992: 16). O discurso de crise encontra, neste exemplo, uma parte da vasta cultura psicopatológica, refém do seu próprio luto pela ‘morte de Deus’, depois pela ‘morte do autor’ e, enfim, pela morte de tudo o que antes se julgava ser uma base segura de sentido (as meta-narrativas).

No entanto, pensadores como Omar Calabrese, Mario Perniola, Jacques Rancière, Eduardo Prado Coelho ou J. A. Bragança de Miranda têm uma vasta produção crítica, de pendor filosófico, no sentido de não condescender aproblematicamente com a tanatologia fácil hodierna (herdeira descontextualizada do pessimismo adorniano), que perpetua a desilusão do progresso iluminista e decreta todas as plataformas multimodais (nomeadamente, a questão do digital) como a encarnação própria do Maligno. A questão é que o ser humano – o de agora e o de sempre, a deslizar o dedo num ebook ou a cravar o sílex num menir – vive de representação e por ela se mediatiza, construindo a sua versão de autenticidade mediante condições epistémicas flexíveis, que estão em consonância com o tempo em que se aplicam. Desmistifique-se, portanto, a essência “de uma linguagem de puros referentes a que encostaríamos ofegantes o nosso corpo e a nossa alma”, uma linguagem anterior ao domínio simbólico e à força gravítica das paixões humanas e da predicação: “Nós estamos simultaneamente fora e dentro da realidade tal como a realidade está fora e dentro de nós – e nesse mecanismo dificilmente há lugar para um espectador e um espectáculo, agora incorporados na imanentização de tudo” (Coelho, 2004: 56).[5]

Mario Perniola afirma que a sua investigação filosófica é animada não pela imagem de um mundo vazio – kénosis –, mas pela imagem de um mundo pleno, em que tudo está disponível – pleroma (coadunável com a fruição intensíssima de imagens que subjaz ao conceito de museu imaginário, a partir de André Malraux). Desdobrando este mundo, num gesto evocativo da pli deleuziana fecunda em enigmas (cf. Deleuze, 1988), Perniola insiste numa “filosofia do presente”, ou seja, num pensamento que dá cor ao presente contraposto ao ausente, “como um pensamento do presente e da presença”, sem cair na ufania do passado, e na consequente obesidade nostálgica, nem numa noção esfumada de esperança, como a que anima os utopismos: daí que o simulacro, ao invés de ser demagogicamente aviltado “como sinónimo de mentira ou de engano”, mereça, pelo contrário, ver reconhecida a sua qualidade de “garantia da dignidade da cópia, do seu direito a durar”, no facto de “acentuar e sublinhar a presença física do passado no presente” (Perniola, 1994: 73-74).

Neste âmbito, pense-se a imagiologia centrada em Alanis Morissette, cuja música vem acompanhada por imagens, as mesmas que, em 1995, dominaram o canal MTV com os vídeos de You Oughta Know, Hand in My Pocket ou Ironic, elevando o seu álbum de estreia internacional, Jagged Little Pill, a um fenómeno de histerismo que os críticos compararam ao de Elvis Presley ou dos The Beatles. Segundo Perniola, o modo como a videoarte se institucionalizou, precisamente, como arte, com aura e solenidade, por contraste com a visualidade neutra e homogeneizante das emissões televisivas, deve a sua força argumentante àquilo que, anteriormente, enformara as ambiguidades técnicas e ontológicas inerentes ao intimismo da escrita autobiográfica: “Se a televisão oferece a imagem do mundo externo, o vídeo proporciona-nos a imagem do eu: tratar-se-á de uma espécie de confessionário, através do qual o autor se confronta directamente com o espectador” (idem, 46). O que parecia estar intrinsecamente associado a um eidos tecnológico-eletrónico, e por isso constituir uma ameaça à tradição subjetiva da cultura ocidental, assume-se como a sua legítima herdeira (cf. ibidem).

Outro tópico a reter é o de uma certa continuidade ontotecnológica substancial que revê nos vídeos os traços que, noutros tempos, paradigmaticamente literários, descreviam o espiritualismo confessional e introspetivo de gérmen agostiniano, depois a ensaística de Montaigne, as Confissões de Rousseau, até à generalização do habitus diarístico. Para o estudioso francês Raymond Bellour, mencionado por Perniola, “a obra vídeo tende a criar não uma autobiografia – como na tradição clássica das escritas do eu – mas sim um auto-retrato do artista: já não conta uma história, mas oferece uma imagem do eu” (idem, 46); “a passagem da autobiografia literária para o auto-retrato vídeo estaria isenta de fracturas” (idem, 47), condensando assim a solenização desta nova forma de materialização artística, com um alcance extraordinário a nível de difusão mediática (motivo, portanto, para a sua demonização, no seguimento da lógica adorniana a respeito da indústria cultural e da cultura de massas). A arealidade do corpo-vídeo – expeausition (Nancy, 2000: 33) – , do corpo como lugar imanente, amplia as margens de indecidibilidade fractal, o tal excesso de presença, segundo Perniola, que impossibilita que o apreendamos “numa só visão: a própria vista aí se distende, aí se apaga, não abarcando a totalidade dos aspectos” (Perniola, 1994: 44); um défice háptico que, no entanto, contribui para a “glória da presença local” (idem, 63).

Posto isto, não parecerá abusivo apreender afinidades entre as letras de Alanis Morissette e a sua transposição fílmica, sob a forma de videoclipes de natureza promocional, na medida em que escrita e imagem (sendo que a própria escrita é liminarmente um dispositivo gráfico, que a poesia visual, do Barroco aos concretistas, procurou pôr em relevo) contêm um mesmo reduto psicológico, passível de uma inscrição naquilo que o arqueólogo do íntimo, Peter Sloterdijk, em Écumes (2005), denominou como egotécnicas: formas mediais silenciosas da escrita e da leitura, que impulsionaram o diálogo interior, o exame de autoconsciência e a documentação íntima, como a rotina ligada ao diário pessoal (o eu como célula ou camera silens).[6] Eis, portanto, a pedra-de-toque sobre o qual se alicerça, primeiro, a interpretação de Unsent, segunda faixa promocional do álbum Supposed Former Infatuation Junkie (1998), e cujo vídeo fora realizado pela própria Alanis Morissette; segundo, a interpretação do tema Surrendering, o penúltimo do terceiro disco de originais da artista, Under Rug Swept (2002), cuja análise se justifica pelo teor do seu conteúdo semântico, que tece estreitas aproximações com o do outro tema proposto. Em resumo, a resignada (mas insistente) experiência de incomodidade, de quem seguiu a sua vida abdicando, porém, de um eu manifestamente presente e alinhado consigo mesmo: em Unsent e Surrendering, subsiste, entre linhas e entre notas, um travo de melancolia, esse temperamento saturniano que o psicólogo fenomenologista Ludwig Binswanger, na senda da sua analítica existencial (Daseinsanalytik), define como uma perda que está consciente da sua reiterada consumação, da estase inerente ao seu reenvio cíclico: ao contrário do pessimista, o melancólico sabe que uma ameaça de perdas futuras apenas faz sentido se olhar de frente para esses pressentimentos de perdas como algo que aconteceu (cf. Binswanger, 1987: 48).

Unsent – uma carta chega sempre ao seu destino

Pensando-se em Freud e nas preocupações que inquietavam os seus próximos (como Ernest Jones) face ao aparente fascínio do pai da psicanálise pelas ciências ocultas (o fenómeno da telepatia e outros melindres paranormais) – fascínio que poria em causa a objetividade científica da psicanálise enquanto domínio controlado do saber –, Jacques Derrida, em Psyché: Inventions de l’autre (capítulo “Télépathie”), refere que Freud se esforçava por manter a cientificidade do seu labor no estudo dos segredos pulsionais, da força dos instintos e da corporalidade do psiquismo, ao mesmo tempo que retirava do ocultismo certas ambiguidades operacionais, como o que nele se assume como inexplicável e incerto, constatando que uma teoria do inconsciente é impensável sem uma teoria do fenómeno telepático (cf. Derrida, 1987: 248). Neste ponto, interessa dar ênfase à configuração teórica de “estrutura de postal” inerente à comunicação (struture cartepostalée), que o conto de Arthur Schnitzler, Fräulein Else, indiretamente expunha: segundo Derrida, o primado das forças comunicacionais da telepatia é a razão pela qual uma carta não precisa efetivamente de chegar ao seu destino (cf. idem, 249). Deste modo, o vínculo teórico entre a psicanálise e a telepatia partilha, pelo menos em parte, noções caras às teses e interesses freudianos como os de transferência, tradução, transposição ou conversão analógica. Os mecanismos de deslocação e condensação que (re)produzem as formações do inconsciente atuam como processos de figuração entre a linguagem e as imagens: imagens que estão no lugar das palavras, palavras que tinham antes em seu lugar uma representação visual do acontecimento – aquilo a que Rancière atribui o nome de equivalências figurativas: “sistema de relações entre semelhança e dissemelhança que põe em jogo várias espécies de intolerável” (Rancière, 2010: 140).

É no quadro de uma struture cartepostalée que as intencionalidades de Unsent revelam – e re-velam, fazendo jus ao prefixo de negação no título – a sua motivação pulsional, por um lado, e o seu virtuosismo técnico-compositivo e performativo, por outro, justapondo essa motivação e esse virtuosismo num mesmo plano tensional. Muito simplisticamente, este tema não passa de um conjunto de cinco cartas endereçadas a cinco ex-namorados, cada um deles alcunhado sem qualquer subtileza lírica: cinco epístolas profanas que podem ser lidas na íntegra, sem que isso condene a canção a sofrer baixas de sentido. O título, como nota McDonald (1998), torna-se subitamente obsoleto, tendo em conta que a canção existe, isto é, existe como canção e, por ser uma canção, é tornada pública, devindo uma partilha com o mundo.[7]

O título atinge uma dimensão quase metafísica: se as cartas não são enviadas, o mesmo não se pode dizer das mensagens e do secretismo que, supostamente, as mesmas resguardariam (a tal turbulência telepática sondada por Freud e explanada por Derrida). De igual modo, as imagens do videoclipe não seriam mais do que vislumbres rememorativos, fulminações íntimas que não existiriam a não ser na mente do sujeito (e toda a memória autobiográfica, assim o diz Proust e a neurobiologia do fenómeno consciente, é feita de verdades subjetivamente condicionadas, algures entre o real e o irreal, entre o vivido, o sentido e o desejado, a longas expensas com o que, entretanto, se recalcou ou se esqueceu). A existência fílmica de Unsent corrobora, do ponto de vista técnico, a dissidência ontológica que está na origem do próprio tema musical (neste sentido, o vídeo é um meta-vídeo), da mesma maneira que o título da canção insinua que a mesma jamais deveria ter existido (isto é, publicamente). As cinco cartas foram desengavetadas, mas a canção impõe-se performativamente com direito próprio, engendrando um espaço irreal que só a si pertence, espaço esse no qual as cartas podem simular um pacto de confidencialidade, como se fossem remetidas a si mesmas e o título mantivesse literalmente o seu sentido: o fantasma de um eterno presente, semelhante ao que se congela na e pela imagem fotográfica (as snapshots), vagamente hipnótico.[8]

A alienação é intentada pelo próprio vídeo: ao captar cenários, falas e tempos dispostos de forma dessincronizada em relação ao texto da letra musical, cria-se uma espécie de clima de irrealidade, uma atmosfera de sentido nostálgico por uma experiência que, mais do que verdadeiramente vivida, parece uma criação imaginária do sujeito, uma ficção produzida pela máquina do desejo, como uma errância onírica e impressionista (vê-se o vídeo e, simultaneamente, sente-se como é ver aqueles cinco microcosmos pelos olhos de quem os recupera pela memória; capta-se, assim, uma ambiência sensitiva, e não propriamente uma conversão de sujeitos em objetos). Para o efeito contribuem a orquestração musical, os enlevos dos sintetizadores, o dedilhar intimista e experimental das guitarras acústicas, a percussão subtil e convidativa, a coincidir com o tom narrativo da voz emissora, entre a serenidade constativa e a impaciência triste, a ténue angústia de quem falhou em cinco relacionamentos sem perceber ao certo porquê. De facto, em cada uma das situações inter pares, persiste uma ambivalência duvidosa e não uma segurança afetiva (que corresponderia por alto à imagem arquetípica do sentimento amoroso entre amantes ideais): de um modo geral, as cinco cenas insinuam a ameaça ou a consumação resignada (embora parcialmente em suspense) do fim da relação amorosa. Por ordem: primeiro, Dear Matthew.

 

 

Dear matthew I like you a lot I realize you’re in a relationship with someone right now and I respect that I would like you to know that if you’re ever single in the future and you want to come visit me in california I would be open to spending time with you and finding out how old you were when you wrote your first song

Na primeira cena do vídeo, as legendas apresentam interjeições, reticências e monossílabos – cool!, hmmm…, ok… – ao serviço de uma impaciência e falta de à-vontade entre os dois, que se salvam pela porta de saída, desfocada e deixada em último plano (é o vazio último do que resta de pessoalidade na relação: sob o espectro do desconforto, resta um beijo de despedida, um goodbye e mais nada). As falas da protagonista atestam sentimentos de incerteza e insegurança: formas de cortesia inerentes a I guess ou I feel like I already have [interrupted you much] tendem a aliviar o outro da responsabilidade infernal de proferir diretamente a sua vontade de abandonar aquele impasse, minimizando assim os efeitos demolidores da linguagem.

Segundo, Dear Jonathan. Num café (tons cromáticos mais carregados e escuros, adensados pelo fumo do cigarro de Jonathan, aquele namorado), trava-se uma conversa pautada pela desconfiança da mulher perante os compromissos do amante, que parecem votá-la à exclusão. É notório que o plano do rosto feminino seja progressivamente ampliado, com as falas do par projetadas sobre si, sobre o seu silêncio no momento em que o outro lhe responde, impingindo-lhe, falicamente, esses arremessos incondicionais: isto é, o silêncio distendido nas pausas, que permitem ao outro ter espaço e tempo disponíveis para falar, reveste-se de uma conotação simbólica política, no quadro das distribuições posicionais do género. Não se trata, portanto, apenas de silêncio, mas igualmente da condição de ser silenciada: o feminino devém um objeto de palavra sem, de facto, lhe ter direito. No final, lê-se nas legendas o facilitismo a que ela se entrega no sentido de agir o mais convenientemente possível perante as agendas masculinas; um caso prototípico de submissão feminina ao convencional sexo forte, que fuma ociosamente o seu cigarro, indulgente, sabendo-se, por imunidade sociocultural e simbólica, no direito de não ter de dar satisfações sobre a sua vida privada (deixando, assim, antever o motivo pelo qual a relação não perduraria).

 

 

Dear jonathan I liked you too much I used to be attracted to boys who would lie to me and think solely about themselves and you were plenty self-destructive for my taste at the time I used to say the more tragic the better the truth is whenever I think of the early 90’s your face comes up with a vengeance like it was yesterday

Terceiro, Dear Terrance. A cena, ao ar livre, é idealmente a mais romântica: sol, beira-rio, risos. A pensar na esteira de Mario Perniola e daquilo que o filósofo italiano entende como a visualidade egípcia ou enigmática da videoarte contemporânea, a rememoração de Terrance, o destinatário da terceira missiva postal, partilha mais fortemente a emanação coisal que define o devir-paisagem das singularidades humanas. Antes de mais, uma diferença a assinalar: coisa não é o mesmo que objeto, que, à letra, designa algo que fica sempre aquém do nosso alcance, continuamente arremessável e indisponível (ob-jecto). Por coisa, entende-se a evidência intacta de uma presença, a sua exterioridade pura (cf. Agamben), à semelhança indiscernível das coisas entre as coisas no mundo natural, ao qual pertencemos (antropomorfismos, prometeísmo da consciência e humanismos ensimesmados à parte) por coabitarmos uns com outros e com outras coisas. Perniola estriba-se em Rainer Maria Rilke (poeta-fetiche de Morissette, por sinal): a ideia de que ao devir-paisagem não fica implícita uma menorização do indivíduo, que perde a sua centralidade no mundo fenomenal, mas antes a intenção de tornar o indivíduo mais amplo – “(…) isto é, segundo Rilke, arriscar-se para o espaço aberto, ter a morte atrás de si e não à frente, sair do tempo concebido de modo rectilíneo e, pouco a pouco, tornar-se espaço” (Perniola, 1994: 80).

A revisitação do passado, parcelado e consubstancializado na pessoa / paisagem de Terrance, encontra aqui plausíveis pontos de contacto: parece longínquo, com um misto de incompreensibilidade (reforçada pela dúvida final: what was wrong with me?), que inquieta na justa medida em que se a-presenta impassível para fazer feedback das minhas projeções românticas sobre ele, devindo puro ecrã, tal como qualquer paisagem ou qualquer imagem, no sentido liminarmente superficial da sua ontologia, ou seja, paisagem ou imagem enquanto realidade(s) plena(s) impenetrável(eis).

De facto, estamos habituados a pensar que atrás de qualquer gesto existe um acto de vontade: a paisagem, pelo contrário, não quer nada. ‘Com os homens – escreve Rilke – não costumamos intuir muito através das suas mãos, e muitíssimo através do rosto, no qual, como num quadrante, estão visíveis as horas que regem e pesam a sua alma no tempo. A paisagem, pelo contrário, não tem mãos, não tem cara – ou então é só cara.’ Do mesmo modo, a civilização da coisa e do look não tem cara, ou então é só cara. Nem sequer a visão do cadáver evoca tão fortemente a impressão de uma vida tornada coisa, pois remete para uma dimensão temporal que foi interrompida. Só a múmia egípcia evoca uma vontade tão radical de tornar-se coisa. (idem, 87-88)

 

 

Dear terrance I love you muchly you’ve been nothing but open hearted and emotionally available and supportive and nurturing and consummately there for me I kept drawing you in and pushing you away I remember how beautiful it was to fall asleep on your couch and cry in front of you for the first time you were the best platform from which to jump beyond myself what was wrong with me

Na letra, o polissíndeto encavalga a ondulação do delírio rememorativo, tentando listar à toa as virtudes do namorado num encómio que se pretende, apesar das motivações selvagens do desejo (de qualquer desejo, mas sobretudo deste tipo particular de desejo, o amoroso), minimamente disciplinado, para não soar abusivo nem embaraçar o alvo a que se destina: you’ve been nothing but open hearted and emotionally available and supportive and nurturing and consummately there for me. No vídeo, trava-se um diálogo amistoso, com uma dose substancial de cinismo (da parte da figura feminina), que usa o sentido de humor para traçar os contornos do âmago do problema conjugal (aquilo que, na sua aceção, impediu a relação de continuar) e, desse jeito, contornar o próprio âmago do problema e o modo como isso a afeta. O tema é o medo, ou a ambivalência entre amor e medo (quiçá, a sua consubstancialidade), no sentimento de entrega que subjaz a toda e qualquer forma de intimidade que se deseja correspondida, mutuamente partilhada, sob um desígnio de confiança absolutamente disponível. Afetivamente, no texto epistolar, a protagonista assume a sua ambivalência insuperável, passível de ser comparada ao relaxamento lúdico do neto de Freud que, lançando para longe um carrinho – Fort! – e logo de seguida puxando-o de volta para si – Da! –, orientou o mentor da psicanálise no sentido de edipianizar esse jogo, vendo nele a substituição da ausência materna – Fort! – pela sua presença imaginariamente substituída ou compensada – Da!. Em Unsent, este jogo de ausência / presença de Terrance resume-se numa linha: I kept drawing you in and pushing you away.

Na transposição fílmica, as legendas amplificam a imperscrutabilidade do impasse, que resiste à predicação. Depois de lhe perguntar se ele tenciona visitá-la futuramente, ao qual ele denega pelo humor (faz-se de difícil, mas de forma a tornar sobressaliente o fazer-se e não o difícil), riem-se os dois (a distensão permite-lhes uma unidade telepática; a gargalhada autentifica o uso partilhado do mesmo código: ambos se sentem nervosos, logo ambos se esquivam pelo riso); de seguida, ela comenta: whatever [faz as verdades flutuarem, aliviando o peso gravítico – que o riso denega – do que antes se enunciara], you’re probably scared to spend that much time with me in close quarters. I can completely appreciate that [aplaude a coragem do outro por assumir generosamente a não-correspondência amorosa, o facto de ele não mascarar a vulnerabilidade que tateia, por dentro, a confiança imperiosa em deixar que alguém – ela, fenomenologicamente intrusiva, pelo simples facto de ser ex-cêntrica ao centro ontológico dele – entre no seu mundo mais íntimo, mesmo que essa entrada viesse apenas confirmar a impossibilidade de ele ceder às resistências que definem a sua condição de ser vulnerável]. Terrance responde-lhe à letra, ainda que adornando o discurso com risos, e, nesse sentido, isto é, pela confissão literal, dá visibilidade à espessura que o medo o retrai de tentar esvanecer: o medo de desproteger a sua vulnerabilidade, cedendo-a ao desejo do outro – I am, quite frankly. You frighten me (ou seja, “sim, o teu amor incomoda-me, tu estás demasiado a mais em mim”). O risco da proximidade excessiva passa, portanto, pela impossibilidade de concretizá-la. O repto de Terrance possui a qualidade de um performativo: o seu significado coincide com o ato de ser enunciado. Assim, estar in close quarters na própria linguagem devém uma condição animicamente insustentável, na medida em que não permite uma mediação, seja da ordem de um conceito, seja da ordem de uma representação (o sujeito masculino não tem como se proteger do amor não solicitado: como um insulto, este amor é uma pura experiência da linguagem) (cf. Agamben, 2013: 12).

No momento em que soa what was wrong with me, distendendo as sílabas tónicas de wrong e de me (o que, em termos de equivalência semântica, daria azo a um autorretrato psicopatológico, irrealizável: o eu como algo que está/ é errado, ontologicamente falível e falhado), a câmara enfoca no plano do rosto de Terrance, sorrindo: a lembrança deste rosto, assim iluminado pela ambiência natural da paisagem, acentua a sua perfeição (sempre idealizada, subjetivizada), ao contrastar, precisamente, com a tal pergunta que serve de epílogo a esta terceira carta. Um rosto masculino sereno, que a técnica cinematográfica deixa em suspenso, como o flash decisivo pelo qual a aura de alguém conquista a sua derradeira representação, ainda que bordejada de uma certa flutuação mental derivativa, como uma orla de sentido: recorda-se de intimidades da ordem do assim e do qualquer agambenianos, isto é, as singularidades puras evocadas na sua absoluta irreparabilidade – “a experiência, absolutamente não-coisal, de uma pura exterioridade” (Agamben, 1993: 54), como a beleza de adormecer on your couch [o sofá, não a cama, que é o lugar simbolicamente designado para esse efeito; o sofá sonda o imprevisto, a inocência de um erotismo muito mais delicado, quase transcendente] ou a beleza em ter chorado in front of you for the first time [no sentido em que uma mulher que chora apenas quer dizer isso, que se sente momentaneamente frágil, em busca de um certo refúgio defensivo e consolador, e longe de quaisquer insinuações ideológicas tentadas a desconstruir, à força, a imagem do feminino como equacionável à languidez emocional]. Tal idealização de Terrance apenas reforça a sua inacessibilidade, que a queixa amorosa afere no remate inquisitivo. Em jeito de rebaixamento da autoestima e de proposição autoacusatória, sou levada a crer, portanto, que o problema está em mim. Este perplexo what was wrong with me – o tempo verbal pretérito torna omnipresente o passado – inquina a vida psíquica do eu, confinado numa culpa irremediável, o que distorce a construção da sua temporalidade, segundo Binswanger, estrangulando momentos estruturais dessa construção: vivência do presente, retensão do passado, protensão voltada para o futuro, que fica desenraizada da experiência sensível do presente (cf. Binswanger, 1987: 33).

Quarto, Dear Marcus.

 

 

Dear marcus you rocked my world you had a charismatic way about you with the women and you got me seriously thinking about spirituality and you wouldn’t let me get away with kicking my own ass but I could never really feel relaxed and looked out for around you though and that stopped us from going any further than we did and it’s kinda too bad because we could’ve had much more fun

Regressam os cromatismos quentes, em parte simbolicamente associáveis a um momento erótico mais intenso, entre quatro paredes de uma sala, junto à lareira, onde os dois protagonistas se beijam: ela, uma jovem cauta, com maneirismos de inocência, e ele, com um ar desinibidamente másculo, virilmente sabedor de tacticismos da sedução. O que parecia estar a correr bem é quebrado pela inquietante estranheza – Freud e o célebre Das Unheimliche (1919) – de um comentário masculino: I’m so proud of you. O assentimento do dito, preso à sua literalidade, poderia ser motivo de congratulação consoladora: eu estou a agir bem, logo isso é positivo, logo devo sentir-me feliz. Porém o não-dito é contextual: aqui encena-se, de novo (e a repetição ou o duplo inscrevem-se no quadro freudiano da mencionada inquietante estranheza dos déjà-vu’s familiares), o perfil falogocêntrico explícito de um homem que, seguro do efeito apaziguador do seu paternalismo, diminui a condição daquela jovem mulher pensando estar, às avessas, a engrandecê-la, comparando a sua “disponibilidade (tão rara) para mergulhar em novas águas” (tradução livre do que a legenda afere) com o que outras mulheres recusariam fazer. O que é elogiado como audácia é sentido pela elogiada como uma dissociação de si mesma: por outras palavras, ela não se revê no discurso do outro – e esse espelho linguístico embaciado apenas lhe devolve o sentimento de total incompreensão. Quando Marcus remata as suas opiniões com you know, esta expressão confirmativa, de valor neutro quanto à sua expressividade, não abre espaço à discussão: ela é invadida pela sobreposição do outro, pelos pressupostos dele, sendo-lhe negado, no fundo, o direito à palavra, a uma margem de liberdade onde pudesse reivindicar a sua pessoa, com um punch do género no, I don’t (know) (que acabaria por arruinar a performance ilocutória de Marcus e, em geral, qualquer performance comunicativa).[9] Na letra, este dissenso, mais do que intrínseco à linguagem, é do foro da ontologia, é anterior ao dito, logo da ordem do sentido (e do agir), como se deduz a partir de you wouldn’t let me get away with kicking my own ass but I could never really feel relaxed and looked out for around you though.

Por outras palavras, a relação não funciona: não há comunicação desvelada entre amantes, há apenas máscaras performativas – e ela acabou de perceber que ele lhe havia imposto uma, da qual ela nunca suspeitara. Tal anagnórise vem reforçada pelo movimento ascético da câmara: se no início o plano da imagem alberga o par, centrado, à medida que Marcus vai fazendo os seus comentários falsamente inofensivos a câmara assume uma posição cada vez mais distanciada dos dois, filmando-os do alto e acentuando, por via de uma distância cambaleante (o efeito amadorístico é transversal aos cinco cenários de Unsent), a isolação crescente sentida pela personagem feminina.

Quinto e último, Dear Lou.

 

 

Dear lou we learned so much I realize we won’t be able to talk for some time and I understand that as I do you the long distance thing was the hardest and we did as well as we could we were together during a very tumultuous time in our lives I will always have your back and be curious about you about your career about your whereabouts

A última cena do vídeo é, de todas, a mais silenciosa: o namorado estaciona o carro, de noite, ela entra, o carro arranca, cumprimentam-se (um hi recíproco, mera formalidade) e nada mais dizem um ao outro (nada que seja legendável, portanto). Observando atentamente os gestos do par, nota-se que os seus olhares evitam a reversibilidade do contacto, embora inconscientemente: há uma dessincronização de timing, porque, quando ele lentamente lhe dirige o olhar, ela tem o rosto voltado de frente; quando é a vez dela de o espiar com subtileza, ele cumpre a sua função de condutor, dirigindo o olhar para a estrada, os espelhos do carro, alguma sinalética rodoviária. A certa altura, percebe-se que ele tenta colocar o braço nas costas do banco da acompanhante, na iminência de poder tocá-la, gesto que de imediato ela retalia com alguma brusquidão corporal, como se essa aproximação gestual pesasse pela ousadia ou pela insinuação de um resgate de intimidade que, naquele preciso momento, já se mostra desgastado e inconveniente.

O facto de não se manifestar diálogo, justificando-se assim a ausência de legendas, permite que a audição da letra constituinte da última carta não fique obstruída por qualquer desvio de atenção ou colateralidade informativa. A música, em sentido lato, cumpre momentaneamente uma função parecida com a de uma banda sonora: acompanha um desfile de imagens, posto ad oculos, distanciado mas emancipado, com o assentimento de Rancière, implicando uma “gestão emocional do desejo de ouvir a voz da imagem”, ou seja, de lhe atribuir um rosto que fala (a função da prosopopeia, cf. Mondzain, 2009: 68-69). Deste modo, asserções como I realize we won’t be able to talk for some time ou we were together during a very tumultuous time in our lives tornam-se filmicamente visíveis, coordenando-se assim a palavra com a imagem, ou vice-versa. A resolução, porém, acresce-se de périplos muito ténues, mas suficientemente fortes para que tal resolução, pelo menos interiormente, não se dê como consumada.

O vídeo termina com uma questão feita por Lou à personagem de Morissette – what are you thinking? –, compreensível, por um lado, tendo em conta o silêncio e o efeito desconfortável que o mesmo intensifica (compreensibilidade que, por isso mesmo, não justificaria quaisquer meditações em torno dessa pergunta); mas, por outro lado, incompreensível, se nos colocarmos na pele da figura feminina, aliando essa posição ao discurso final da letra – I will always have your back and be curious about you about your career about your whereabouts (uma curiosidade que mantém próximo um objeto do desejo que, na verdade, se desejaria resolvidamente longínquo e esquecido) – e ao facto de a interrogação de Lou coincidir com o desfecho da imagem, como uma questão que fica no ar (de novo, a eternização fantasmática do presente, pulsão capaz de enigmar as imagens gravadas nas fotografias).[10] A última carta de Unsent funcionará, a seu modo, como uma possível resposta a esse tapa-buracos metafísico, embora não deixe de ser uma resposta inconclusiva. Entre essa indagação metafísica final (namorado) e o sentimento incontrolado de uma persistência nostálgica (o advérbio always a tingir o presente de continuidade com o passado e o futuro, em I will always have your back and be curious…), aquilo que resta é, porém, o fulminar de uma assombração – e é só no final que os rostos do par se olham nos olhos um do outro, em silêncio, depois da pergunta ter sido levantada, ficando os dois em suspenso, numa imagem (do mundo de fora, do mundo interior) sem legenda, ou seja, sem uma interpretação sugerida ao expectador, logo agenciando o imaginário e, neste sentido, as reticências que perfilham uma angústia de saber irresolvível, ou o ser humano como uma aporia profunda, que as situações mais quotidianas ou as coisas mais redundantes fazem por se (de)volver enquanto resistência de uma cifra.[11]

Considere-se, assim, o vídeo de Unsent e as suas especificidades – em súmula, o desajuste na correspondência fiel ou unilateral entre a imagem (com legendas próprias) e a palavra das lyrics – à luz dos seguintes critérios, juízos e consequentes efeitos:

(…) os video-clips mais interessantes são aqueles em que o cantor quase nunca aparece, e as figuras humanas, destituídas da voz, dão uma impressão de alheamento e de objectualidade espectral, pois parecem adquirir o estatuto de coisas. O efeito da video-music é radicalmente diverso daquele do cinema mudo: a música do video-clip mergulha a figura no silêncio a que, desde sempre, as coisas já se encontram abandonadas, enquanto (sic) a falta da palavra no cinema mudo não faz senão exaltar a eloquência e a expressividade da figura humana. (Perniola, 1994: 82-83)

Faz sentido, portanto, retomar Prado Coelho ou Rancière quando eles procuram vincar o facto de uma palavra ou de uma imagem não serem um duplo de algo real, como a tradição herdeira da alegoria platónica nos faz ainda crer. Uma representação, seja ela verbal ou imagética, é antes um “jogo complexo de relações entre o visível e o invisível, entre o visível e a palavra, entre o dito e o não-dito” (Rancière, 2010: 139). É esse entre, ponto que não é nem de partida nem de chegada, mas uma fuga por onde as interpretações não alcançam um refúgio ou uma estase cristalizáveis, que possibilita um comentário como o que se segue, de Glenn McDonald, fazendo assinalar o que Žižek lê como o caráter obsidiante do amor, o seu aspeto intolerável e asfixiante, quando um sujeito se sente invadido – ex-timado – por um amor que não solicitou.[12]

I know, from having sent some letters like this, and like the others in the song, that not everybody thinks they are a good idea. Does your best friend really want or need to know that you’re in love with them? Possibly they don’t even want to know that they’re your best friend. I understand the objection, but I guess I feel, in the end, that we are, most of us, the objects of few enough helpless desires in our lives that letting one go by without being aware of it is unacceptably tragic. (…) The most amazing thing, to me, is that Alanis manages to make a coherent folk/ pop song out of her confessions. Sparkling acoustic guitar, sawing synthesizers, percolating drums and springy bass could have just been disguises, but she finds ways to make the words and the music connect, letting a line skitter off, syncopatedly, across the floor at the end of one musical phrase, and then catching it up again in the next one. (McDonald, 1998)

As cartas de Morissette encenam, às avessas, a leitura žižekiana do conhecido relato de Freud sobre as brincadeiras do neto: o Fort! Da!, em vez de ser a recriação imaginária da mãe ausente que a criança deseja manter por perto, corresponde à válvula de escape que possibilita ao filho libertar-se temporariamente da asfixia maternal, isto é, do facto de ele ser o objet petit a da ternura ubíqua da mãe, do seu gozo (cf. Žižek, 2006: 75). Neste sentido, o papel de Morissette corresponderia ao desse superego maternal, que reaviva o espectro de um amor que a autora das cartas ainda deseja tornar público, insinuando que, à imagem do neto de Freud, ainda puxa as cordas do seu brinquedo – dear Matthew, dear Lou… – para bem perto de si, demasiado perto.

Surrendering – a beleza das possibilidades vazias

Numa das cenas de bastidores do DVD Feast on Scraps (2002), Alanis Morissette está sozinha no estúdio, em frente ao piano, a compor a música de Surrendering, tentando dispor harmonias para os primeiros versos do refrão. Ciente ou não disso, há uma câmara, imóvel, a gravar tudo, incluindo o momento em que Morissette, rendidamente vulnerável, começa a chorar, oprimida por palavras e tons musicais que insuportam animicamente aquilo que, por ser anímico, não se apazigua com pormenores técnicos, como os que estão na origem de qualquer suporte simbólico e simbolizador (a arte). O choro irrompe de uma carga – da alma, dir-se-ia, e por isso intolerável – que os ombros da escrita suportam apenas por fingimento. O processo de edição, a dado momento, corta aquele momento frágil e passa de repente para a artista, mais aliviada, a dialogar com alguém que estará, porventura, do outro lado do vidro (ainda que não seja visível), ao qual informa que terá de ir para outro sítio de maneira a conseguir terminar a letra, a mesma que admite ser uma das mais difíceis de cantar. O canto, então, não possibilita um salto para fora da dor, desse pathos arrancado à rede dos outros sentimentos e que ocupa todo o espaço anímico do sujeito (devindo uma espécie de categoria ontológica). A voz move-se na dor, mesmo que a escrita musical e o canto – que são técnicas, próteses, placebos, mecanismos defensivos – sustentem uma zona de cognoscibilidade, na qual o eu se sabe consciente de si e do que sente e, nessa medida, perfaz um pacto especial de distanciamento e de reconfiguração, que lhe assegura a (sobre)vivência. Os versos libertam as lágrimas reais do seu ónus afetivo, daquele choro cerrado que a câmara filmou, reorientando o pathos – ‘paixão’, ‘sofrimento’, mas também ‘caminho’, de path – do sujeito: “My songs always change my life – if I’m not all off my proverbial path, as soon as I start to write songs, it gently pushes me back on. I’m afraid of it sometimes” (Morissette apud Wild, 2001).

you were full and fully capable
you were self sufficient and needless
your house was fully decorated in that sense
 
you were taken with me to a point
a case of careful what you wish for
but what you knew was enough to begin
 
and so you called and courted fiercely
so you reached out entirely fearless
and yet you knew of reservation and how it serves
 
and I salute you for your courage
and I applaud your perseverance
and I embrace you for your faith in the face of adversarial forces
that I represent
 
so you were in but not entirely
you were up for this but not totally
you knew how arms length-ing can maintain doubt
 
and so you fell and you’re intact
so you dove in and you’re still breathing
so you jumped and you’re still flying if not shocked
 
and I support you in your trusting
and I commend you for your wisdom
and I’m amazed by your surrender in the face of threatening forces
that I represent
 
you found creative ways to distance
you hid away from much through humor
your choice of armor was your intellect
 
and so you felt and you’re still here
and so you died and you’re still standing
and so you softened and still safely in command
 
self-protection was in times of true danger
your best defense to mistrust and be wary
surrendering a feat of unequalled measure
and I’m thrilled to let you in
overjoyed to be let in kind

A terceira carta de Unsent, remetida a Terrance, a par das legendas que acompanham a rememoração visual (recorde-se: you’re probably scared to spend that much time with me in close quarters. I can completely appreciate that), poderia dispor-se como um dos painéis em que Surrendering seria a outra metade do díptico, sob o signo deste remate (o mesmo onde Morissette ficara em suspenso, no estúdio, repetindo para si até chorar): and I embrace you for your faith in the face of adversarial forces/ that I represent. Atente-se no liame aliterativo que, por sua vez, ao invés de unir assinala a fratura: your faith in the face, uma espécie de efeito de eco que, porém, não nos devolve a nossa voz, supostamente reconhecível, mas uma perplexidade solitária, que fica a ressoar sozinha. O eu assume-se como a representação de forças adversárias ou de forças ameaçantes contra as quais – ou face às quais (jogando-se com a homonímia dos termos: a face/ rosto a que fazemos face, entre prostração e bloqueio) – o outro é encorajado, não a perpetuar uma insistência (a provar a tudo o custo que a ama), mas precisamente o oposto, a desistir de o fazer (a provar irresolutamente que não sente amor pelo eu). De novo, à imagem da imagem de Terrance, este tu surge nimbado de um encanto natural que desperta, por ser assim, uma orla quase suprassensível: nas três primeiras estâncias, a reiteração das formas full e fully (e o efeito em eco transformante: you were full and fully capable) desenha um indivíduo altamente pós-moderno, uma autêntica ilha ou célula, segundo Peter Sloterdijk (2005), que, numa perspetiva sociopsicológica, tende a plasmar este confinamento atómico do sujeito em células habitacionais ego-esféricas (o single que, como reza o dito anedótico, em vez de casar e ter filhos, opta por um cão e um espaço bem mobilado – you were self sufficient and needless / your house was fully decorated in that sense).[13]

O tema progride no sentido de indiciar in crescendo os avanços na partilha da intimidade continuamente ameaçados pela sombra de um recuo preventivo, de um pé atrás (o do tu). Sob o signo da prudência – a case of careful what you wish for – o desejo interpõe entre si e o objeto a intransponibilidade, como um véu que, amiúde, vai sendo revelado para ser, de novo, re-velado, restituído à sua qualidade obstruente, à exterioridade absoluta que resiste a gestos amigáveis como os que so you called and courted fiercely e so you reached out entirely fearless pretendem sugerir, no sentido de minar as fórmulas e manuais de reservation. A tensão alimenta a energia do desejo: a cedência absoluta de um par, à imagem do yin / yang cósmico, é da esfera da idealidade; a não cedência ditaria um outro tipo de registo introspetivo, na esteira das queixas de amor não correspondido, do pranto individual, etc.. No entanto, este you cede e não cede, avança e recua, permite e interdita: not entirely, not totally, consciente do regime de ambiguidade tensional que advém da sua postura (you knew how arms length-ing can maintain doubt); engendra modos de se esquivar, a cosa mentale da sublimação (artística) que coloca a intolerabilidade do real bruto à margem de si mesmo (you found creative ways to distance / you hid away from much through humor / your choice of armor was your intellect). De facto, esta postura, sob os auspícios da ‘teatralização’, já havia sido notada por Freud em relação aos dissídios agónicos entre o Ego e o Id, como atesta o recurso às piadas para transformar uma realidade incómoda: não sendo possível negá-la, o you denega-a, com humor e inteligência, adelgaçando os seus espinhos e debilitando o adversário – and so you softened and still safely in command (plano do oximoro: o ameaçado que sub-repticiamente ascende ao lugar de ameaçador).

Lido sob um prisma de amplitude ideológica, o gesto de Surrendering, cinicamente louvado pelo eu, é por igual cinicamente louvável, nestes tempos de obrigatoriedade inquisitorial do gozo acéfalo capitalista, que rebusca tudo e tudo transgride, angustiado pela ausência de interditos que lhe barrem o confronto direto com aquilo que deseja (cf. Žižek, 2006: 70). Louvável, precisamente, porque teoriza em modos líricos acerca desse desleixe hipermoderno que obriga o indivíduo a gozar freneticamente. Por outras palavras: Morissette desvela que desvelou o bluff do outro e, por arrasto, das armadilhas sufocantes pós-ideológicas (e, acrescentaríamos, o bluff do seu próprio gozo masoquista, o seu objeto petit a, por amar quem não a ama, aplaudindo-o pela renúncia). Se antes o erotismo era tabu, o que estimulava a economia psíquica no plano da fruição imaginária (o fruto proibido como o mais apetecível), agora a pornografia é um dever, que prescinde de apelos individuais para que dela obtenham uma quota-parte, já que ela própria se oferece e se impõe ao nosso consumo (e o fruto, de tão permissivo que se tornou, apodrece sem que ninguém lhe toque). O gesto de Surrendering é, portanto, louvável dado que o eu, num sentido verdadeiramente revolucionário no plano do desejo, em vez de ceder à tentação de desejar ver os seus sonhos satisfeitos (ama-me, entrega-te a mim, etc.), obedece à Lei simbólica (a castração lacaniana: a Lei Paterna, barrando o sujeito, salva-o do abismo que seria estar demasiado próximo daquilo que deseja). O eu não goza, e nesse não gozar esconde perversamente do olhar do Outro o seu íntimo gozo secreto. Glenn McDonald comenta Surrendering nos seguintes termos: “Promises are cheap and easy; stopping the world is an offer you could make to a magazine cover, so how could making it to a person ever be anything but insulting? But congratulating them for not letting you drive them off, that is heroic” (McDonald, 1998).[14]

Este heroísmo ético do desejo refreado é explanável por recurso a um exemplo de Žižek: supor que, no filme de Clint Eastwood, As Pontes de Madison County (1995), Francesca (Meryl Steep) descobrisse que o marido, camponês modesto e sem grandes ambições, tinha estado desde o início ao corrente da sua infidelidade com o fotógrafo da revista National Geographic (Eastwood) e, compreendendo a importância dessa relação para a esposa, se mantivera em silêncio durante toda vida para não a fazer sofrer. O estatuto paradoxal de um saber do saber do Outro lacaniano reside neste enigma:

(…) como é possível que toda a economia psíquica de uma situação mude radicalmente não pelo facto de alguém descobrir directamente qualquer coisa que ignorava (um segredo há muito abafado), mas por acabar por descobrir que o outro (suposto saber) estava ao corrente desde o início e fingia nada saber só para salvar as aparências? Haverá situação mais humilhante do que a do marido que descobre subitamente que a sua mulher esteve sempre ao corrente da sua infidelidade, mas que sempre se absteve de lhe falar do assunto por uma questão de delicadeza ou, pior ainda, por amor por ele? (Žižek, 2006: 58, itálicos do autor)

Na canção, o render-se do outro a mim é aclamado como a feat of unequalled measure, ou seja, o reverso de self-protection mas não o seu exato contrário. Ficar rendido é também uma modalidade do distanciamento. Desta forma, Morissette desempenharia o papel do marido de Francesca, com o seguinte nó ético obscuro: eu sei que não me amas, sei de tudo o que se passou, mas faço de conta que nada sei por amor a ti – até ao momento em que componho uma canção sobre este assunto, tornando-o público, e, assim, tu ficas finalmente a par da seguinte fórmula ainda mais perversa que a do sujeito-suposto-saber: eu sei (agora, divulgada a canção) que tu sabes que eu sei que tu sabes – o que aumenta ainda mais a intensidade do meu gozo.

O regime desta poiese morissetteana não é tanto metafórica, mas mais metonímica, porque ao serviço de atos do discurso, pragmaticamente entendidos. O que liricamente é sugestivo de uma constrição emocional que, embora intrinsecamente agónica, comove e delicia o eu que canta, já o arranjo musical tende a dissimular essa atitude de verismo e lucidez apaziguada: um pop aéreo, um toque pânico inicial (de Pã, flauta, nuance tribal), como que anunciando uma manhã de luz coincidindo com uma ‘iluminação’ íntima, devendo-se a certas guarnições sonoras que reenviam para um subtil toque oriental (o mesmo que Morissette importou para os mantras do álbum precedente, Supposed Former Infatuation Junkie, composto no fim de uma viagem à Índia). Segundo McDonald (1998), “both the vocal melodies and guitar hooks swoop up and down scales as if gravity itself militates against any progress but one step at a time”. Em suma, voz, ritmo e arranjo musical produzem um efeito ‘feliz’ revelado, mas que re-vela uma causa (elegíaca) que sustém o masoquismo do eu: and I’m thrilled to let you in / overjoyed to be let in kind, ouve-se no fim, com um arranque energético musicalmente avassalador, antes de o tema insistir duas vezes no refrão e terminar.[15]

Neste contexto (que implica aquele outro sempre de vigília a respeito da escrita morissetteana: o da autobiografia), considere-se Mladen Dolar e a voz como um espelho acústico, uma forma rudimentar e ludibriosa de narcisismo e transparência:

It [the voice] is the first ‘self-referring’ or ‘self-reflective’ move which appears as a pure auto-affection at the closest to oneself, an auto-affection which is not re-flection, since it appears to lack a screen that would return the voice, a pure immediacy where one is both the sender and the receiver without leaving one’s pure interiority. (Dolar, 2006: 39)

“Singing”, segundo Dolar, “is bad communication” (idem, 30), no sentido em que a voz se sobrepõe à mensagem (um motivo que conduz, por exemplo, ao jargão segundo o qual muito do que se faz na música pop tem muita parra e pouca uva, sobretudo quando se tenta aportuguesar o que, em inglês, soa bem). Surrendering, em particular, usa e abusa desse handicap (o equivalente psicanalítico da castração): a voz como medium faz ecrã sobre a voz como mensagem, com um determinado conteúdo simbólico. É nessa medida que adquire um duplo papel paradoxal: é fetichista (tem-se como o seu próprio objeto) e também é signo de jouissance (a voz como objet petit a). Dolar explica o paradoxo e a sua ambivalência: “music evokes the object voice and obfuscates it; it fetishizes it, but also opens the gap that cannot be filled” (idem, 31). O ato de sentir prazer em falar, em cantar (voz-objeto-fetiche), encobre do olhar do Outro o gozo perverso do eu no prolongamento masoquista do seu gesto de amar (um surplus de voz-efeito – afinal, overjoyed e não simplesmente joyed – sobre a sua voz-causa).[16] Deficiências estruturais imanentes à palavra do discurso: são percetíveis “the infinite shades of the voice”, mas esta excede infinitamente o sentido (cf. idem, 13). Fonocentrismo e logocentrismo: do mediador mais materialmente dispensável, por contraste com a idealidade atribuível ao pensamento (o conteúdo transcendental que a voz veicula, por analogia com o Verbum divino que incarna numa mera vítima sacrificial), o que Surrendering simultaneamente revela e re-vela é uma voz que, enquanto e porque voz, equivale a um ato de fala, “in the same moment as need is transformed into desire; it is caught in a drama of appeal, eliciting an answer, provocation, demand, love” (idem, 28; neste contexto, pense-se no trocadilho lacaniano a respeito do grito: o cri pur, grito puro, inarticulado e a-significante, é convertido em cri pour, uma mensagem com destino, cf. ibidem). A autossuficiência narcísica é por essência disruptiva:

(…) for psychoanalysis, the auto-affective voice of self-presence and self-mastery was constantly opposed by its reverse side, the intractable voice of the other, the voice one could not control. If we try to bring the two together, we could tentatively say that at the very core of narcissism lies an alien kernel which narcissistic satisfaction may well attempt to disguise, but which continually threatens to undermine it from the inside. (idem, 41)

Pôr à prova o confessionalismo morissetteano na tentativa de testar a eficiência da sua ‘sinceridade’ autobiográfica é desvirtuar a ilusão de que este género de textos precisa para efervescer a sua tensão eidética. Ensaie-se, antes, pensar as palavras e as imagens a partir dessa precaridade material que ambas partilham, isto é, o facto de serem só palavras e imagens, e, no fim, talvez fique a sensação de que as manobras elusivas do eu cantado por Alanis Morissette são tão credíveis quanto as nossas, tão incongruentemente familiares, que até custa perceber como é que alguém do mundo artístico pode ser tão despretensioso ao ponto de fazer disso a matéria dos seus textos e, por breves instantes, sugerir que a vida até pode fazer sentido de todas as maneiras.

 

Referências

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[Recebido em 19 de setembro de 2013 e aceite para publicação em 22 de outubro de 2013]

 

Notas

[1] Uma vista panorâmica daquilo que se estuda nas humanidades interartísticas diria que o esquizo guattari-deleuziano, a pulverização identitária ou a própria destruição do sujeito, como a que é aludível na visceralidade dos quadros de Francis Bacon, têm sido a tendência ética/ estética mais preferida pelos hermeneutas. Quanto mais paranoico, descentrado e afiliado a uma qualquer crise, melhor para as exegeses, porque mais interessante se torna para desconstruir.

[2] Segundo Peter Sloterdijk, a tradição retratística e autorretratística ocidental assenta no primado do encontro facial herdado da cristologia pictural e plasmado noutras esferas – profanas – das experiências pessoais: “Derrière chaque portrait des temps modernes se dissimule le visage de l’Ecce homo – la scène primitive du dévoilement de l’homme avec laquelle Jésus, à côté de Pilate, a fait ses débuts comme transmetteur de cet impératif de la perception historiquement inédit (…)” (Sloterdijk, 2002: 178).

[3] A nossa imagem refletida no espelho, explica Agamben, é da ordem do insubstancial, do não-mensurável, pois só nessa condição é que pode figurar na superfície, sem ocupar um espaço que impedisse o espelho de refletir outras substâncias. É nesta ordem de ideias que um sujeito é um ser especial: não é uma coisa, mas uma espécie de coisa, coincidente com o seu “dar-se a ver” (Agamben, 2006: 78). “A pessoa é a captura da espécie e a sua ancoragem a uma substância, de forma a tornar possível a identificação. Os documentos de identificação contêm uma fotografia (ou outro dispositivo de captura da espécie)” (idem, 81). Trata-se do gesto impactante de dar a ver ao fotografado as perplexidades fisionómicas que uma reconfiguração identitária provoca quando a totalidade do corpo fica refém de uma parcela: o rosto, de súbito posto em ênfase pela imagem fotográfica, adquire uma consistência ao mesmo tempo indesmentível (existe / existiu mesmo) e misteriosa (o que diz uma imagem muda?).

[4] É o mesmo que admitir que uma coisa é viver ou sentir e outra é escrever (sobre o) que se viveu ou sentiu (uma ex-crita): “O que importa dizer é que isso – tocar no corpo, tocar o corpo, tocar, enfim – está sempre a acontecer na escrita. / Talvez isso não aconteça exactamente na escrita, se ela possuir um ‘dentro’; mas ao longo do bordo, do limite, da ponta, da extremidade da escrita, só acontece isso. (…) Tocar o corpo (ou antes, tal e tal corpo singular) com o incorpóreo do ‘sentido’, e assim tornando o incorpóreo tocante, ou fazendo do sentido um toque” (Nancy, 2000: 11).

[5] Ainda a propósito de Debord e do seu desdém pela exterioridade, considere-se a exterioridade enquanto tal, segundo Giorgio Agamben, que muitas línguas europeias exprimem pela noção de ‘soleira’, do que fica ‘à porta’, enquanto lugar de passagem: “A soleira não é, neste sentido, uma outra coisa em relação ao limite; é, por assim dizer, a experiência do próprio limite, o ser-dentro de um exterior. Esta ek-stasis é o dom que a singularidade recebe das mãos vazias da humanidade” (Agamben, 1993: 53-54).

[6] A propósito da escrita silenciosa e da heurística do silêncio: “L’individualité qui suit sa propre piste suppose que les individus puissent se retirer sur des îles de repos où l’on attire leur attention sur la différence possible entre les vois collectives et leurs propres voix intérieures. Le silentium monacal travaille avec cette différence pour trier le peu bruyant humain. In interiore homine habitat veritas: Augustin soutient que la vérité, après la césure du silentium, ne peut plus être trouvée que là où les choses se passent à voix basse (…). L’epoché de Husserl se rattache encore à cette culture du retrait hors du bruit de groupe qui règne dans nos têtes; ce que les phénoménologues appellent la mise entre parenthèses de l’attitude naïve face à la vie est en réalité une vacance active à l’égard des préjugés et des gesticulations qui font en sorte que l’intérieur soit aussi bruyant que l’extérieur” (Sloterdijk, 2005, 338-339).

[7] Os bastidores de Unsent são descritos em entrevista: “The main way in which Jagged Little Pill influenced Supposed Former Infatuation Junkie, she says, is that this time around, Morissette knew people would hear the songs, so she talked to a lot of the people that she wrote them about. (…) If You Oughta Know was songwriting as primal scream therapy, Unsent is songwriting as group therapy: She called all of the guys in the song, some of whom she hadn’t spoken to since she became famous. ‘It was hard’, she says, ‘but it was beautiful. I took responsibility. It wasn’t just me pointing the finger. I really don’t want to write another song where every night I sing it I feel a knot in my stomach.’” (France, 1999: 101)

[8] Bernardo Pinto de Almeida coloca a imagem fotográfica num regime inaugural de visibilidades, como se cada fotografia fosse sempre a primeira, próxima de uma fulminação epifânica: “Tudo o que dela se pode dizer virá sempre de um regime de ainda-não-saber, de um lugar de interrogação, de uma curiosidade, de uma nova asserção da particularidade” (Almeida, 1995: 28). Estes comentários justificam a sua pertinência neste estudo na justa medida em que Morissette costuma designar os seus álbuns como snapshots, instantâneos fotográficos que primam por uma certa natureza ‘selvagem’ e ‘imprevista’ no modo de captar subjetivamente o real (íntimo, pulsional), residindo aí o seu potencial para surpreender a própria autora: “I never really know the theme of an album until it’s finished (…). Only then can I see what’s emerged. For this [referente ao álbum Havoc and Bright Lights, 2012], I think it’s mostly the deepening of intimacy in relationships, including the one with myself” (Morissette apud Hall, 2012: 42).

[9] Afinal, o discurso quotidiano assenta em múltiplas ficções de expectativas que, sendo lidas muito literalmente, secam os diálogos: por exemplo, algo como “Podes-me passar o sal?” não pode ser percebido literalmente como uma pergunta – “Sim / Não / Talvez”, mas como um pedido (um ato de fala ilocutório indireto).

[10] Sobre as descoincidências entre o olhar e a voz, considere-se Mladen Dolar: “(…) the object voice emerges in counterpoint with the visible and the visual, it cannot be disentangled from the gaze which offers its framework, so that both the gaze and the voice appear as objects in the gaps as a result of which they never quite match” (Dolar, 2006: 67).

[11] Esse caráter coisal, ontologicamente enigmático, do devir-cenário é alinhável pelos eixos terminológicos de Perniola – o mencionado efeito egípcio – e pelos de Calabrese – a marca neobarroca.

[12] Invocando a intrusão destrutiva do alien, o monstro parasítico que Ridley Scott encenou: “Recordemos a célebre fórmula lacaniana: ‘Amo-te, mas por amar inexplicavelmente algo em ti que é mais do que tu, o objecto pequeno a, mutilo-te’ – a fórmula elementar da paixão destruidora do Real como esforço para extrair de ti o núcleo real do teu ser. É o que está na origem da angústia no encontro com o desejo do Outro: o propósito do Outro não é apenas a minha própria pessoa, mas o meu verdadeiro núcleo, que está mais em mim do que eu próprio, pelo que está pronto a mutilar-me para obter esse núcleo” (Žižek, 2006: 75-76).

[13] Segundo Sloterdijk, não é por acaso que a popularização universal do estilo de vida anexado aos apartamentos individuais coincide historicamente com as fenomenologias de Husserl e Heidegger: “(…) dans un cas comme dans l’autre, il s’agissait d’ancrer le sujet réfléchi dans un milieu mondial que l’on avait rendu radicalement explicite. L’existence dans un appartement monopersonnel n’est que l’être-dans-le-monde dans un cas unique, ou la réintégration du sujet jadis spécialement isolé dans un soi-disant ‘monde de la vie’, sous une adresse spatio-temporelle concrète” (Sloterdijk, 2005: 507-508).

[14] Se o amor correspondido designaria metaforicamente a conquista da felicidade, então este eu não quer ser feliz, em sentido lato. A felicidade é um exemplo de uma categoria não-ética: “intrinsecamente hipócrita”, segundo Žižek, ela leva-nos a crer que desejamos realmente o objeto do nosso desejo, quando, de facto, a tensão libidinal inerente à desposse desse objeto preenche o campo imaginário com projeções, fantasmas, fantasias, que nos permitem respirar. A tensão empobrece, até ao seu total desvanecimento, se a diferença entre imaginação e realidade for anulada. Se a transgressão se elevou ao estatuto de norma, uma existência angustiada é o preço a pagar pela ausência de culpabilidade no ato de nos entregarmos levianamente a todos os prazeres (cf. Žižek, 2006: 55-72).

[15] Tendo em conta a descrição do ritmo por McDonald, considere-se a seguinte leitura fenomenológica, que é coadunável com a lógica da revelação/re-velação do eu em Surrendering: “le rythme disjoint la succession de la linéarité de la séquence ou de la durée : il plie le temps pour le donner au temps lui-même, et c’est de cette façon qu’il plie et déplie un ‘soi’” (Nancy, 2002: 37-38).

[16] No fundo, por um lado, remete para a noção lacaniana segundo a qual o meu desejo constitui o desejo do Outro, “mais d’abord à ne garder qu’une opacité subjective pour y représenter le besoin” (Lacan, 1966: 813), opacidade que se confunde com a própria substância do desejo (cf. ibidem). O desejo como condição absoluta é o efeito do limite que a Lei constitui para o capricho do Outro, capricho que equivale à resposta do Outro ao pedido incondicional que o sujeito lhe dirige. Por outras palavras, é o desejo que impede o sujeito de ser esmagado “par le piétinement d’éléphant du caprice de l’Autre” (idem, 814). O desejo – que se origina da lei – assegura a liberdade do sujeito face às exigências do Outro, face ao imperativo superegoico: “il renverse l’inconditionnel de la demande d’amour, où le sujet reste dans la sujétion de l’Autre, pour le porter à la puissance de la condition absolue (où l’absolu veut dire aussi détachement)” (ibidem). Por outro lado, explica o paradoxo inerente à voz em contexto musical: segundo Dolar, em nota de rodapé, “the problem with singing – and, by extension, music – is that (…) it takes the object of the drive as the object of immediate enjoyment, and precisely for that reason misses it. Its aesthetic pleasure reinserts enjoyment into the boundaries of the pleasure principle” (Dolar, 2006: 197).