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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.27 no.3 Braga  2013

 

Dores dos Santos, Salomé ou a exaltação do milagre

Dores dos Santos, Salome or the exaltation of the miracle

Maria Eugénia Pereira*

*Universidade de Aveiro, Centro de Línguas e Culturas, Aveiro, Portugal.

epereira@ua.pt

 

RESUMO

Dores dos Santos e Salomé são os nomes que José Rodrigues Miguéis usou para definir a dupla identidade da personagem feminina do Milagre segundo Salomé. Autoexilada do mundo que a rodeia, esta mulher evolui de forma complexa, como se, na sua busca da felicidade e, consequentemente, de identidade, promiscuidade, devassidão e misticismo se conjugassem perfeitamente com ingenuidade, pureza e realidade. Dores dos Santos parece querer assumir o papel tradicional feminino: nascida para sofrer, entrega-se ao homem para encontrar aquilo que ela pensa ser a felicidade. Contudo, é com “o nome para batalhas de amor-fingido”, Salomé, que recupera a dignidade humana, que encontra o verdadeiro amor: meretriz pelo corpo, anjo pela alma, a fé num homem-redentor, capaz de a salvar pelo amor, alimenta-lhe a alma e purifica-lhe o coração. Encarnação da pureza, Salomé dá realidade física à Virgem mãe de Deus pela força do seu ser e torna-se O milagre da humanidade.

Palavras chave: José Rodrigues Miguéis; O Milagre segundo Salomé; mulher anjo / meretriz; Virgem mãe.

 

ABSTRACT

Dores dos Santos and Salomé are the names that José Rodrigues Miguéis has used to define the double identity of the female character in the novel Milagre segundo Salomé. Self-exiled from the world enveloping her, socially cast off, this woman develops in a complex manner, as if in her search for happiness and, consequently, for her own identity, promiscuity, licentiousness, and mysticism are perfectly combined with ingenuity, purity and reality. Dores dos Santos appears to wish to take on the traditional female role: born to suffer, she surrenders to a man to find what she believes to be happiness. However, it is with “the name for battles of fake-love” that Salomé reclaims human dignity, thereby finding true love: a prostitute in body, an angel in soul, the faith in a redeeming man who is able to rescue her through love, feed her soul and cleanse her heart. As embodiment of purity, Salomé imparts physical reality to the Virgin mother of God through the strength of her being and thus becomes the miracle of mankind.

Keywords: José Rodrigues Miguéis; O Milagre segundo Salomé; angel-woman / prostitute; the holy Virgin.

 

*

No romance O Milagre segundo Salomé, logo na primeira frase, o narrador esboça o retrato de um jovem, e define-lhe, desde logo, o futuro: “Tinha dezasseis anos, e a sombra dum buço na carantonha lorpa, talhada a enxó na matéria-prima de que ao tempo se faziam marçanos, conselheiros, deputados e bispos (…)” (Miguéis, 1974, vol. I: 11). Ainda sem identidade, mas já com uma visão crítica do indivíduo e da sociedade, o narrador vai avançando na descrição daquele que pensamos, por ora, poder vir a ser o protagonista da história: Severino Zambujeira. “Severino aumentou de peso”, diz-nos o narrador, “e a carantonha luzente de gordura e saúde ganhou-lhe expressão menos desconfiada e boçal. Tinha nos olhos uma vivacidade que alternava entre humilde e curiosa. Mas nada lhe escapava.” (Idem, 23); “(…) Severino acariciou [as notas], cheirou-as com volúpia, e tornou a guardá-las” (Idem, 24). As descrições, sugestivas de interpretações, impulsionam no leitor o desejo de começar a construir a identidade desta personagem e a querer desvendar o seu lugar no universo romanesco. Segundo Vincent Jouve o fenómeno explica-se pelo “intérêt que nous éprouvons pour les personnages [qui] ne vient […] pas de ce que nous y reconnaissons de nous-mêmes (...), mais de ce que nous y apprenons de nous-mêmes” (1992: 235). E é no compasso de espera criado pelo narrador que o leitor vai alimentando a sua imaginação.

Enquanto artefacto do criador, esta entidade masculina abre o romance para revelar a intenção do autor: por ora, fazer-nos pressentir a presença da visão psicossocial do narrador e, de seguida, dar o lugar àquela que realmente assumirá o protagonismo da história – Dores-Salomé. Cada frase, cada parágrafo onde Severino Zambujeira aparece é, pois, fruto de um querer, de um pensar autorais.

Miguéis, ao começar a sua obra com esta personagem masculina, estabelece um compromisso com o leitor, orientando-o desde logo no sentido de este reconhecer, nesta representação masculina, a figuração de um anti-herói. Inspirando-se nas raízes oitocentistas, e relembrando, mais concretamente, a estratégia diegética flaubertiana, o romancista aponta para interpretações e ajuda o leitor a formalizar uma imagem mental sobre a / da personagem. Guia-o e indu-lo, quer pelo contexto, quer pela linguagem do romance, a compreender que Severino, apesar da sua densidade e da sua complexidade, não será o protagonista deste romance.

1. Dores dos Santos: a virgem humilde

Ora, se Miguéis, ou o narrador, tinham dedicado o primeiro capítulo, com o título paradoxal “Onde trinta anos vagarosos passam depressa”, a Severino Zambujeira, eis que, no segundo capítulo, chamado “O pão da fome”, surge uma figura feminina, que parece beneficiar logo da simpatia do narrador:

O sol envolveu-a no seu cobertor radioso de ternura e calor. (…) Calada e fiel, prestável, um palminho de cara sem cor, os modos acanhados, a cintura frágil, os braços delgados. (…) Mas ela, Dores dos Santos não tinha a quem pudesse convencer. (Miguéis, 1974, vol. I: 25, 26 e 27)

Parece estar em uníssono com a natureza e possuir todos os atributos da personagem romântica: é doce, frágil, pura e tem por nome um dos plúrices títulos pelos quais a Igreja Católica venera a Virgem Maria: “Dores”.[1] Mas a ligação da personagem à religião e ao sagrado prolonga-se no apelido, “dos Santos”, como se o autor pretendesse que o leitor estabelecesse de imediato contacto com as dimensões divina e fantástica da personagem.

Ora, de seguida, o narrador parece se ter esquecido do seu apelido e faz apenas uso do nome, “Dores”, quando narra a sua juventude miserável. Encontramos representada a personificação da mulher-anjo, que tem fé no Outro e no futuro e que, por isso, sempre que a vida lhe sorri, vive “numa espécie de entressonho, à margem da realidade” (Idem, 36). O narrador, por sua vez, enceta o caminho do hétero-conhecimento e tece o seguinte comentário: “Há destas naturezas, que da mais pequena coisa tiram partido: uma gota de água lhes mata a sede, uma migalha as nutre” (Idem, 39). Dores sofre as vicissitudes da pobreza, a exploração do homem pelo homem. No entanto, o sofrimento parece fortalecer-lhe a alma e a fé que tem no ser humano. No limiar do divino, ou pelo menos do sobre-humano, Dores aceita o Outro, por mais vil, mais desumano que ele possa ser e é essa característica, que se vai manter ao longo de todo o romance, que vai permitir que se lhe atribua a classificação de heroína.

Dores parece querer assumir o papel tradicional feminino: nascida para sofrer, entrega-se ao homem para encontrar aquilo que ela pensa ser a felicidade. Pela sua natureza romântica, pelo seu aspeto angelical e ao mesmo tempo sensual, a personagem vai-se tornar objeto admirável de desejo e simultaneamente ser inalcançável, no tocante à nobreza de alma da personagem. Virgem humilde, “anjo”, ficá-lo-á para sempre, mesmo quando se encontra “nas chamas do Inferno” (Idem, 84). Para que esta pureza e esta inocência sejam aceites pelo leitor, a descrição do seu corpo surge, pela primeira vez, segundo o ponto de vista da dona Rosa, a proprietária do bordel onde ela vai trabalhar:

E quando finalmente o seu corpo surgiu, radioso de alvura na fraca luz de saleta, estátua de pudor e timidez, Vénus inconsciente da sua divindade, o rosto afogueado a esconder-se nos cabelos soltos, um braço em curva tentando encobrir os seios polidos, a mão esquerda a proteger a fonte da vergonha e da desgraça, um joelho sobreposto ao outro em pose que ela nunca vira, a dona Rosa não pode disfarçar um sobressalto e ficou muda de admiração. Só passados uns instantes conseguiu dizer:

- É uma escultura… uma Salomé!

Sabedora do ofício e sensível à beleza, tinha um nó na garganta: só uma mulher pode talvez aliviar todo o poder de sedução num corpo feminino. Imóvel no seu canto, Dores era a incarnação da pureza e da voluptuosidade, do pudor que, resistindo, mais aguça o desejo e a vertigem da posse. (Idem, 85-86)

Autoexilada do mundo que a rodeia, esta mulher evolui de forma complexa, como se, na sua busca da felicidade e, consequentemente, de identidade, promiscuidade, devassidão e misticismo se conjugassem perfeitamente com ingenuidade, pureza e realidade.

2. Salomé-Dores/Dores-Salomé: virgem ou prostituta

O narrador intervém sempre que surge a necessidade de enaltecer os valores morais da personagem, sempre que ele quer partilhar a grandiosidade espiritual desta mulher com o leitor:

O ofício horrorizou-a: não tanto por julgá-lo pecado – as subtilezas da Moral e da Teologia estavam fora do seu alcance – nem sequer degradação social, de que não tinha uma ideia bem clara; nem mesmo pela submissão a que se condenara: mas pelo espectáculo do macho egoísta e guloso, que não lhe podia entender a inocência nem o pudor. (Idem, 87)

A cada intervenção, o narrador revela estar do lado desta personagem, partilhar com ela princípios, sentimentos e dor. O leitor penetra na consciência de Dores, agora também Salomé, por via do olhar, da perceção do próprio narrador, que também sabemos ser personagem. Do domínio do possível, esta entidade feminina resulta da combinatória do interior e do exterior e, por tal facto, ela vai sofrendo uma evolução, que a vai tornando cada vez mais densa e complexa.

Ora, este percurso para a heroicidade é marcado por experiências e vivências que, aos olhos de uma sociedade religiosa e conservadora, são anti-heroicas: envereda pelo caminho da depravação e da imoralidade, o da prostituição, para fugir à miséria e à tristeza. Contudo, o narrador escolhe uma linguagem poética para sensibilizar o leitor e para lhe provar que a personagem se mantém espiritualmente imaculada, como se o corpo não tivesse conseguido vencer o espírito, como se a lascívia nunca lhe tivesse corroído a alma: ela continuava a ser “uma flor impoluta boiando num paul. O sonho e a pureza, como dois anjos invisíveis, sustinham-na no espaço, sobre o abismo, sem cair” (Idem, 105). Consegue resistir à provação amando o filho que traz no ventre, e o narrador, de forma a prender o leitor neste meio-termo identitário, chama-a Salomé-Dores: está presa entre a promiscuidade, a devassidão e a inocência, a pureza. Esta mulher passa por realizações catárticas que a enriquecem sem nunca a transformarem.

Sempre que a personagem se encontre numa situação de autenticidade afetiva e moral, o narrador faz uso do nome composto, utilizando ora Salomé-Dores, ora Dores-Salomé, consoante a liderança da identidade. A dupla identidade surge quando a personagem confraterniza com as suas colegas da desgraça, quando se abre e quando tem um discurso mais intimista:

A dona Rosa pôs-lhe médico à cabeceira, tratou-a com desvelo, cuidou do enterro, fez tudo. Felizmente, o feto estivera morto pouco tempo no útero, e Salomé-Dores restabeleceu-se depressa.. (…) percebeu vagamente que, por vezes, sujeitar-se é mais fácil do que rebelar-se em vão. E como havia de lutar, se não tinha nem conhecia ninguém além da senhora Engrácia, da dona Rosa, da Mouca, das companheiras que a amparavam; nem outro refúgio, fora dali, senão a morte? (Idem, 87-88)

Perfeita de formas e bonita a valer, a Mouca não era triste nem desbragada. (…) Era com ela que Dores-Salomé se abria um pouco (…).

– (…) Eras uma tapadinha. Atão não vistes logo ó que ele andava? (…) Olha como t’ele soube levar ó castigo, a fingir-se de santinho! E no fim deixou-te co’a barriga cheia e passou-te a palheta! Caístes como um passarinho na rede. (…) Mas tu tão séria, criatura! Credo, andas nesta vida, e é como se nunca tivesses conhecido um homem. Atão não é? – rematou ela com pena. Aquela Salomé tinha um ar de santa. (Idem, 93-94)

A alma fica exposta e, por tal facto, a dupla identidade desta personagem é evidenciada, vencendo, por vezes a Dores, outras, a Salomé. Ora, o facto é que o leitor ainda não consegue superar as suas indecisões, optar por uma ou por outra das identidades, completar os “espaces d’indétermination” (Jouve, 1992: 34) deixados voluntariamente pelo criador.

3. Salomé: a milagreira

Mas eis que o narrador esclarece que a personagem feminina decide abdicar do seu nome de nascença – que lhe conferiu, ao longo de muitos anos, uma identidade, que a mantinha ligada a um passado – para assumir um outro, “Salomé, um nome para batalhas de amor-fingido” (Miguéis, 1974, vol. I: 89), e que, doravante, lhe irá servir de “armadura defensiva” (Ibidem). Perde o nome Dores para proteger a alma: “Alguns valentões obstinados tentaram despertá-la, pervertê-la, convertê-la ao prazer: acabavam por desistir, esgotados. A fama correu: diziam-na sempre-virgem, que nenhum homem a pudera desflorar” (Idem, 91).

Miguéis escolhe Salomé, a divindade mais afortunada do eterno feminino, a figura que, no Novo Testamento, no capítulo 14 (6-11) do Evangelho de São Mateus, no capítulo 6 (21-28) do Evangelho de São Marcos, pela sua dança sensual, encanta Herodes, o seu padrasto, que acaba por lhe prometer o que ela quiser. Ela, influenciada por sua mãe, Herodíades, pede a cabeça de João Batista. Herodes atende ao seu pedido pelo facto de este ter sido feito em público e dá-lhe a cabeça de João Batista numa bandeja de prata, que ela oferece à mãe.

Na Idade Média, a história de Salomé aparece entre representações da vida de São João Batista, e a dançarina torna-se o símbolo do ideal de beleza da forma humana. Nos séculos posteriores, Salomé adopta a forma de mulher fatal e torna-se tema recorrente. A figura assume o plano central de dramas e não mais o papel secundário que a narrativa bíblica lhe tinha reservado: o mito é retratado por Caravaggio, Gustave Moreau, J. K. Huysmans, Gustave Flaubert, Stéphane Mallarmé, Jules Laforgue, Oscar Wilde, Richard Strauss, etc.

Tal figura tem a transgressão, o mistério e simboliza, ao mesmo tempo, coisas paradoxais. Mexe com os sentidos humanos, causa ebulição, provoca um sentimento de inquietude e estranhamento, a sensualidade do seu corpo tornando-a contraditória: é mulher / animal; é ser humano / ser divino; é ser natural / ser artificial; é mortalidade / imortalidade; é sagrado / profano. Em suma, Salomé ultrapassa os limites do real.

José Martins Garcia diz-nos que a escolha do nome das personagens, enquanto ato criador, é fonte de preocupação para o escritor, pois pode estar relacionado com o devir de quem o porta e, assim, possuir uma forte carga simbólica. O nome é, para Miguéis, “a certidão de nascimento da máscara” (2001: 111), por isso conferiu o nome Salomé a esta sua criação feminina.

Com o nome da meretriz, a personagem feminina de Miguéis desempenha um papel, mas continua, efetivamente, a agir em função de um devir no qual mantém a fé – deixar essa vida e ficar ao lado de um homem que a trate bem e ter filhos –, não perspetivando mais ter o amor de que sempre sonhara ao seu lado. O narrador emite, mais uma vez, uma impressão, que coloca a personagem numa dimensão outra que a realidade palpável, como se a natureza deste ser estivesse cada vez mais perto do divino e do sagrado: “O sonho e a pureza, como dois anjos invisíveis, sustinham-na no espaço, sobre o abismo, sem cair” (Miguéis, 1974, vol. I: 105).

Salomé recalca o seu sofrimento, aceita-o enquanto provação, ponte a transpor, porque, tal como nos explica Florence Godeau, “l’intériorisation de la loi morale et la prégnance des processus morbides de culpabilisation déterminent des stratégies inconscientes d’autoflagellation et des processus de repli interdisant l’épanouissement initialement escompté” (Godeau, 2010: 3). É, por isso, imprescindível que nos debrucemos sobre o ponto de vista de outras personagens, que analisemos o olhar que elas depositam sobre essa mulher.

Com efeito, embora falemos dela como de uma personagem-herói, pela resistência ao mundo do pecado e da devassidão, também outras personagens, com o seu percurso existencial, satélite ao do herói, propiciam essa atribuição: Severino Zambujeira e o narrador-personagem, Gabriel Arcanjo.

Ora, descobrimos que, ao lado de Severino Zambujeira, Salomé deixa cair a armadura que a protege, habitualmente, dos homens e que se abandona pela afeição que nela nasce. A voz do narrador faz-se ouvir para nos envolver no sentimento nascente da personagem: “o Zambujeira, como um génio dos contos de fadas, mandou-a reconduzir ao jardim de São Pedro de Alcântara, e ela voltou à Travessa da Queimada julgando pisar um colchão de molas ou de interrogações” (Miguéis, 1974, vol. I: 155). Tal como a heroína, pressentimos que esta figura masculina vai fazer parte do seu futuro próximo. Contrariamente aos outros homens, este soube ler no mais íntimo do ser desta mulher: “A Salomé é diferente das… outras. Os seus modos… E não é só isso: alguma coisa que tem lá dentro, e não mostra, e que eu julgo adivinhar, sabe?” (Idem, 161).

As escolhas narrativas do romancista ajudam-nos a mergulhar na consciência de Severino Zambujeira – e, consequentemente, de Gabriel, o narrador-personagem – e, assim, a descobrir a visão que ele tem dela. Maria Angelina Duarte acrescenta, por isso, o seguinte sobre esta técnica de Miguéis:

Quando se começa a examinar a descrição dessas mulheres na obra de José Rodrigues Miguéis, fica-se imediatamente surpreendido pelo facto de não se conhecer a forma de pensar ou de sentir delas. A primeira pessoa, ou a perspectiva narrativa da omnisciência limitada utilizada em toda a obra de Miguéis, possibilita apenas ao leitor ver as mulheres através do olhar dos narradores masculinos ou protagonistas masculinos. Consequentemente, as verdadeiras motivações das mulheres não são conhecidas (…). O resultado é o leitor ficar com a sensação incómoda de nunca chegar a conhecer estas mulheres. (Duarte, 2001: 130)

Mais próxima de Maria, a mulher-redenção, Salomé sabe não ser esse O homem, o amor e a felicidade que ela procura, no entanto, aceita acompanhar Zambujeira e esforça-se para o fazer feliz. O narrador parece querer que aceitemos o lado mais obscuro desta personagem feminina e que a passemos a ver como um ser ambivalente cuja lógica existencial é a busca do equilíbrio. O mal reforça a sua fé, o bem intensifica a sua revolta[2]: ela é, pois, uma personagem densa, complexa e bipartida. Luta contra as vicissitudes da vida com o sonho, acreditando, ainda com mais convicção, no poder redentor do amor verdadeiro:

Porque o sonho, nela, era só de modéstia e obscuridade. Queria ter o seu homem, e tinha apenas um “amigo”; em vez da vida simples e laboriosa, a vacuidade mundana; em vez do amor… (…)

Nunca tinha conhecido em criança o amor. Iludira-se na sua dedicação ao velho. Retraída diante da função profissional, recusara-se a ter em conta essa força soberana da natureza, teimara em prescindir dela: deviam bastar-lhe o carinho e o prestígio do amante, a segurança e protecção. E via agora que isso não bastava a si mesma, com dúvida e tristeza, se poderia vir a amá-lo um dia: e sentia uma pedra pesar-lhe no lugar do coração. (Miguéis, 1974, vol. I: 208).

A angústia começa a dominá-la e a impedir que a sua vida quotidiana siga o seu rumo: não vendo, no dia a dia, nenhum futuro, volta-se para o passado, para aquilo que perdera, na esperança de lá encontrar a sua própria identidade. Michel Maffesoli compreende a angústia da seguinte forma:

A angústia (…) é um elemento essencial do mecanismo da violência. Não se pode prescindir dela. E isto porque ela é, stricto sensu, “intuição do nada”. O nada, neste sentido, é algo a viver. E é vivendo-o que se pode chegar a sobreviver, a um “mais viver”. A angústia atormenta o criador. Seja este profeta, revolucionário, artista ou pensador, ele fez deste conhecimento as bases da sua construção ou da sua reconstrução. Eu disse “intuição”: visão do interior. Porque é, somente, do interior que uma força se pode impor. Donde o seu aspecto doloroso. (Maffesoli, 2002: 63)

A intuição de Salomé leva-a a voltar-se para as origens, em busca de algo que nunca tivera – ou que muito cedo perdera –, à espera de um milagre na sua vida. Dirige-se, pois, para Meca, a aldeia que, outrora, fora o marco da sua existência. O narrador esclarece que ela “passou como uma visão” (…), que lhe cabia “bem o nome de visão: sobre a seda fosca do vestido, branco como um de Chopin, a ampla capa de veludo azul com forro de cetim rosa-pálido tinha reflexos cariciosos (…) ela tinha razões inconscientes para viajar assim (…)” (Miguéis, 1974, vol. II, 14).

A narrativa toma, então, uma dimensão mística, parecendo querer inspirar-se na Aparição da Senhora, na Cova da Iria, em 1917. Gérald M. Moser esclarece que o episódio da aparição de Salomé às três crianças poderia servir como “interpretação racional e plausível” (2001: 221) do Milagre de Fátima. Mas vejamos o que nos diz o “Auto da Aparição” de Gabriel Arcanjo:

Caso é que – rezam solícitos correspondentes – a treze de Abril e sexta-feira, ao sol-pôr, estando pesados e plúmbeos os céus, três crianças cujos nomes são de uma “bíblica” simplicidade: Jaquina, Maria e Manel, andavam a apascentar umas ovelhas no cerro de Lapa d’Ursos, sobranceiro ao lugarejo de Meca, quando, um pouco acima delas, no alto das rochas e sob as ramarias dum velho sobreiro que ali vingou crescer e afrontar os séculos e os temporais, se aperceberam de um clarão sobrenatural. Erguendo os olhos, avistaram uma figura de radiosa beleza, na qual sem hesitar reconheceram a benta imagem da Senhora das Dores, padroeira da freguesia, fervorosamente adorada na região. (Miguéis, 1974, Vol. II: 63)

Apesar da aproximação entre a Aparição da Cova da Iria e a da Lapa d’Ursos ser inequívoca, de sabermos que Miguéis, enquanto ateu, anticlerical e Republicano, pretendia criticar a igreja e a sociedade, há que refletir sobre o lado mais interessante do Milagre segundo Salomé: este mais da ordem do humano que do divino. Enquanto todas as outras personagens foram incapazes de desvendar o segredo do Milagre de Meca, Gabriel desvenda o verdadeiro prodígio do acontecimento: a própria Salomé.

Ser perspicaz – que partilha, com o escritor, os ideais políticos e sociais – Gabriel valoriza o Homem, enquanto ser uno e coletivo, e procura ler para além do percetível. Entende, pois, que o Milagre segundo Salomé é o do amor:

– Foste tu que fizeste o Milagre… os pastorinhos viram em ti a Virgem mãe de Deus, a encarnação da pureza, da virtude e do amor, e adoraram-te. Viram-te como eras – e és – através do luxo de Zambujeira e de tanta miséria: boa, virgem, maternal! (…) Tu és o único e o autêntico milagre. Deste-lhe a realidade física e não metafísica, como queria o filósofo deputado! Enquanto os outros tiraram dele a riqueza e o poder, tu colheste nele a redenção pelo amor… o nosso amor! Haverá maior milagre? (Idem, 341)

Diminuída pela vida, enaltecida pelo homem, Salomé passa pela estigmatização moral sem um só golpe: enquanto heroína, ela é o resultado de uma simbiose misteriosa entre o bem e o mal, e é com o Milagre que estes dois valores morais se fundem e geram sentimentalidade. Michel Maffesoli escreve que “A partir do momento em que se experimenta [o mal], integra-se um acréscimo de vida e isto em todos os aspectos desta” e que “reconhecer o aspecto estrutural do mal é participar, no sentido místico do termo, na força das coisas e no poder da vida” (Maffesoli, 2003: 53). Ao lado de Gabriel, Salomé encontrou o sentido da sua vida, e vice-versa, sendo, então, o milagre o da própria existência humana.

José Rodrigues Miguéis, no segundo volume do romance O Milagre segundo Salomé, retrata a evolução psicológica desta personagem feminina, enquanto descreve, com toda a minúcia, os acontecimentos históricos que a rodeiam. Ora, o facto é que só a descobrimos por via do olhar masculino, ou do narrador-personagem Gabriel Arcanjo ou dos outros protagonistas homens que, em algum momento, cruzaram a sua vida, e ficamos, por isso, com a impressão “incómoda de que nunca chega[mos] a conhecer [essa] mulher” (Duarte, 2001: 130). Mas o importante é que a protagonista feminina foi sujeita a um processo dinâmico de construção e é sob o nome de guerra, Salomé, que recupera a dignidade humana, que encontra o verdadeiro amor: meretriz pelo corpo, anjo pela alma, a fé num homem-redentor, capaz de a salvar pelo amor, alimenta-lhe a alma e purifica-lhe o coração. Encarnação da pureza, Salomé dá realidade física à Virgem mãe de Deus pela força do seu ser e torna-se, então, O milagre da humanidade.

 

Referências

Carvalho, José (2011), Portugal reza com Maria,Lisboa, José Carvalho e Zebra Publicações.         [ Links ]

Duarte, Maria Angelina (2001), “José Rodriges Miguéis e as suas mulheres”, in Onésimo Teotónio Almeida (coord.), José Rodrigues Miguéis: Lisboa em Manhattan, Lisboa, Estampa, pp. 129-139.         [ Links ]

Garcia, José Martins (2001), “Gabriel: a máscara translúcida de Miguéis”, in Onésimo Teotónio Almeida (coord.), José Rodrigues Miguéis: Lisboa em Manhattan, Lisboa, Estampa, pp. 109-128.         [ Links ]

Godeau, Florence (2010), “De l’assujettissement à l’effacement : le déni du sujet féminin et sa dénonciation dans quelques récits du tournant des XIXe et XXe siècles”, Silène. www.revue-silene.com/f/index.php?sp=liv&livre_id=151 [Consultado a 12 de março de 2012].         [ Links ]

Hamon, Philippe (1977), “Pour un statut sémiologique du personnage”, in id., Poétique du récit, Paris, Seuil, pp. 115-180.         [ Links ]

Jouve, Vincent (1992), L’effet-personnage dans le roman, Paris, PUF.         [ Links ]

Maffesoli, Michel (2002), Entre o Bem e o Mal. Compêndio de Subversão Pós-Moderna, trad. Joana Chaves, Lisboa, Instituto Piaget.         [ Links ]

Miguéis, José Rodrigues (1974), O Milagre segundo Salomé, vol. I e II, Lisboa, Estúdio Cor.         [ Links ]

Moser, Gérald M. (2001), “Miguéis – Testemunha e Viajante”, in Onésimo Teotónio Almeida (coord.), José Rodrigues Miguéis: Lisboa em Manhattan, Lisboa, Estampa, pp. 217-241.         [ Links ]

 

[Recebido em 8 de maio de 2013 e aceite para publicação em 30 de setembro de 2013]

 

Notas

[1] A devoção à Nossa Senhora das Dores tem origem no encontro de Maria com o seu filho a caminho do calvário. Nos primórdios da Igreja, a festa era celebrada com o nome de Nossa Senhora da Piedade e da Compaixão. No século XVIII, o papa Bento XIII determinou, então, que se passasse a chamar de Nossa Senhora das Dores. A ordem dos servitas foi responsável por criar uma devoção especial conhecida como “As Sete Dores de Nossa Senhora”, que nos lembram os momentos de sofrimento e entrega de Maria ao seu Senhor. São elas: a profecia de Simeão (Lc 2, 35); a perseguição de Herodes e a fuga da Sagrada Família para o Egito (Mt 2, 14); a perda do Menino Jesus no Templo de Jerusalém (Lc 2, 48); o encontro desta Mãe com o Seu Filho, carregando a cruz no caminho para o calvário (Lc 23, 27); a crucifixão de Jesus na cruz (Jo 19, 25-27); a lançada no coração e a descida de Jesus da cruz (Lc 23, 53); o sepultamento de Jesus e a solidão de Nossa Senhora (Lc, 23, 55) (cf. Carvalho, 2011).

[2] Após o abuso do Tesouras, segue o caminho da prostituição, mas a sua fé, quer no Homem, quer no amor, quer em Deus sai reforçada; em sentido inverso, quando, ao lado de Severino Zambujeira, pretende transformar-se numa outra mulher, digna e séria, a insatisfação que ela sente vai desencadear uma profunda angústia existencial.