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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.27 no.3 Braga  2013

 

Diegese, linguagens, língua e cinema: The Artist de Michel Hazanavicius

Diegesis, language(s) and cinema: The Artist, by Michel Hazanavicius

José Teixeira*

*Departamento de Estudos Portugueses e Lusófonos, Universidade do Minho, Braga, Portugal.

jsteixeira@ilch.uminho.pt

 

RESUMO

Neste texto, procuraremos analisar como é que no filme The Artist (O Artista), de Michel Hazanavicius, a utilização do som serve os propósitos semióticos que o estruturam enquanto filme (aparentemente) mudo. Tentaremos evidenciar a composição da estrutura diegética e a sua relação com os valores semióticos que os elementos sonoros vão adquirindo ao longo do filme. Procuraremos, igualmente, demonstrar como, na sua globalidade, o filme se constitui uma referência simbólica à relação entre as variadas formas de linguagem que o cinema abarca e a língua, bem assim como ao longo de todo o filme se estruturam os elementos simbólicos que permitem a referida leitura global.

Palavras chave: The Artist (O Artista); cinema e linguagem; cinema e semiótica.

 

ABSTRACT

This paper will analyze how in the film The Artist, by Michel Hazanavicius, the sound is used in order to serve its semiotic structure as an apparently silent movie. We will try to show the composition of the diegetic structure and, throughout the film, its relation to the soundtrack semiotic values. It is also our aim to demonstrate how the film is a symbolic reference to the relationship between pictorial and verbal languages that is usually the basis of movie. We will analyze as well how throughout the film some symbolic elements are structured allowing an overall and coherent reading of the film as a vision of the relationship between words and images in the communicational process.

Keywords: The Artist; cinema and language; cinema and semiotics.

 

1. Cinema e diegese

Imaginemo-nos numa época em que as imagens eram raras, de pouco rigor naturalista e apenas acessíveis a minorias. Passar a poder ver imagens reais e em movimento, foi, sem dúvida, um dos grandes espantos no dobrar do século XIX para o XX. O rapidíssimo sucesso dos cinematógrafos e da indústria do cinema evidencia o porquê de as iniciais experiências dos irmãos Lumière em 28 de dezembro de 1895, na cave do Grand Café, em Paris, se terem constituído como marcos balizadores, na contemporaneidade, da comunicação através da imagem.

E foi a imagem que, nesta forma de comunicar (ou nesta indústria, como se queira) ocupou todo o centro do processo nas primeiras três décadas da sua existência. Cinema era imagem. Imagens em movimento, claro, mas essencialmente imagens que costumavam ser sincronizadas com os sons que um piano ou uma orquestra, na sala de projeção, podiam acompanhar. E este enlace sentido como necessário entre as imagens e o som possível mostra o desejo que, desde o início, o cinema sentiu de ser uma forma de comunicar, de se constituir como objeto não apenas semiótico mas igualmente diegético. O som do piano ou da orquestra metonimizavam em sinestesias possíveis o movimento rápido ou lento, a alegria ou o pavor que as imagens no ecrã procuravam transmitir. O chamado overacting, tão característico dos atores desses filmes (exagero das expressões faciais nas emoções e movimento), não é mais do que a tentativa levada ao limite de que haja uma narrativa a ser entendida pelo espetador.

Não é de admirar, por isso mesmo, que, nesta dinâmica narrativa que o cinema desde o início perseguiu, uma outra técnica complementar fosse essencial: os quadros de letreiros inseridos como frames entre os demais, ocupando a totalidade do ecrã. Era fundamental que o espetador percebesse a essência da trama narrativa e essas inserções graficamente verbalizadas conseguiam cumprir a finalidade.

Com o surgir do cinema sonoro, predominante apenas a partir de 1929, as possibilidades narrativas transformam-se. Já não é necessário o overacting, já não é preciso inserir quadros com letreiros explicativos ou narrativos: as personagens podem falar e, portanto, o cinema pode, na história das artes, cumprir cabalmente, pela primeira vez, o desejo de reproduzir a realidade em narrativas. A arte de mostrar (e não apenas contar) estórias o mais realisticamente possível passa a ser, definitivamente, o cinema. A literatura, o balé, a ópera e o teatro justificar-se-ão, cada vez mais, a partir daí, por outros critérios, mas não com a necessidade de serem essencialmente suportes diegéticos.

A história da chamada sétima arte mostra como esta dupla faceta de que é composto um filme – imagem e som / palavras – se pode entretecer, ora valorizando-se mais os aspetos verbais e a trama narrativa, ora a plasticidade que a fotografia, a imagem e modernamente os chamados efeitos especiais conseguem construir. E este diálogo entre as duas forças componentes (a importância das palavras e a das imagens) constitui-se frequentemente no centro da discussão do que é a essência do cinema.

2. The Artist (O Artista) de Michel Hazanavicius: filme mudo ou sonoro?

Por esta exigência de um filme ser prototipicamente uma estória mostrada, uma estrutura narrativa baseada nas interações humanas, parece ser implícita a necessidade de, no moderno conceito de cinema, um filme ter de conter os dois aspetos atrás referidos (imagens e palavras) e que, portanto, o cinema mudo não possui as potencialidades narrativas do filme dialogado. Ora Michel Hazanavicius pretende mostrar que não. Que o cinema, mesmo assentando numa trama diegética, pode quase dispensar as palavras. Que a comunicação não se reduz à verbalização e que a riqueza dos contextos situacionais e paralinguísticos que as imagens transcrevem podem ser suficientes para a construção e descodificação da narrativa. E realizou O Artista.

A ação do filme decorre entre 1927 e 1932. George Valentin (Jean Dujardin) é um famoso ator de filmes mudos que se cruza com uma candidata a atriz, Peppy Miller (Bérénice Bejo). George recusa-se a aceitar os filmes sonoros e a sua carreira entra em declínio, ao inverso da de Peppy, sempre em ascensão. Há a tradicional aproximação amorosa entre os dois e Peppy salvará George (que falira ao tentar continuar a produzir e realizar filmes mudos) conseguindo que ele seja contratado para, com ela, fazerem um filme sonoro, um musical.

O filme costuma ser apresentado como filme mudo. E embora a sua estrutura predominante se assemelhe aos filmes mudos, em rigor o filme não deve ser nem entendido nem classificado desta forma. Primeiro, por causa do óbvio: os filmes mudos não tinham som e banda sonora e este tem. Além disso, em O Artista há momentos que nunca poderiam pertencer a um filme mudo, quer por causa da parte do som e das palavras realizadas, quer por causa da própria estrutura narrativa, como se procurará demonstrar. O filme recupera, isso sim, a estrutura de base de um filme mudo, mas de uma forma palimpséstica que o espetador reconverte. Como nós, espetadores, vemos George a ver os seus filmes, temos 3 planos a considerar:

 

 

No plano em que estamos (3) ouvimos sons e, logo por isso, não se pode dizer que é um filme mudo. Na realidade, ouvimos a orquestra que aparece em 2 e que acompanha os filmes 1 e ouvimos igualmente a banda sonora do próprio filme O Artista.

Não ouvimos, contudo, os sons de 2, correspondentes à ação e por isso, para nós, ele é como que um filme mudo. A orquestra que ouvimos como banda sonora, para além da que acompanha os filmes de 1, interpretamos como se fosse uma orquestra presente no cinema em que estamos para acompanhar o plano 2.

Aliás, assentando o filme na relação entre o cinema mudo e o sonoro, ele só vai poder representar a variedade de ângulos e visões que essa duplicidade implica através de processos de interferência entre as duas tipologias, o mudo e o sonoro. E são as interferências entre o mudo e o sonoro e os respetivos valores semióticos que acarretam parte da originalidade do filme. Vejam-se alguns pontos.

George ri-se sarcasticamente quando lhe mostram a nova possibilidade de os filmes terem som. O produtor diz-lhe que aquilo é o futuro. “Se isso é o futuro, podes bem ficar com ele!” responde, simbolizando a eterna resistência à inovação. Na sequência seguinte, contudo, dá-se um ‘milagre’: ouve-se o primeiro som integrado na ação do filme e não apenas da orquestra. No seu camarim, George fica espantado ao ouvir o som do copo a poisar. Repete a experiência de poisar o copo para confirmar que ouviu mesmo. Quando ouvimos o barulho do copo, também nós nos surpreendemos, porque não era suposto ouvirmos sons nos espaços diegéticos em que George se insere. Mas a personagem surpreende-se mais do que nós, o que para nós-espetadores é estranho, porque o imaginamos num universo onde se ouvem sons (universo diegético do filme), estando nós noutra dimensão que não pode ouvir os sons que as personagens de 2 ouvem, porque supostamente estaríamos a assistir a um filme ‘mudo’. A surpresa da personagem faz com que tenhamos que imaginar que ouvia os mesmos sons que nós, ou seja apenas a música e que as palavras que trocavam não eram sonoras, havendo apenas as letras que apareciam nos ecrãs.

Ele e nós, espetadores, ouvimos também os sons de vários objetos que o rodeiam e que deixa cair, percebendo perfeitamente os ruídos típicos das respetivas quedas no chão. Tenta, a personagem George, então, verificar se se ouve a si próprio a falar. Não se ouve. Tenta gritar, mas não se ouvem os sons. Ouvem-se os ruídos dos objetos a cair, do telefone a tocar e do cão a ladrar. Ele quer gritar, mas da sua boca não sai qualquer som. Apenas se ouve, cada vez com mais intensidade, o som do telefone a tocar. Fica apavorado e sai do camarim. Na rua, ouve as bailarinas a rir. Uma pena a cair lentamente, ao bater no chão, faz um barulho que para ele é ensurdecedor.

Acorda, estava a sonhar. Resolve-se assim o aparente absurdo perante nós, espetadores. Mas isto implica que não estamos a assistir a um filme mudo, mas a um filme sonoro que imita na maior parte da sua estrutura um filme mudo. É óbvio que esta duplicidade, este fingimento do sonoro como mudo permite-nos compreender melhor a luta interior da personagem, dos seus fantasmas e receios perante a possibilidade de o som destruir o conceito que ele tem de cinema, dando-nos também a nós, espetadores, a sensação de estranheza que a personagem experimenta.

Desta forma, temos que a única ‘exceção’ à não sonoridade é o sonho em que se ouvem os ruídos dos objetos, mas não as palavras. Até aqui, podemos considerar, portanto, que é um filme que imita um filme mudo, mas que pode representar momentos com sonoridade dos objetos. Mas só em sonhos. E por isso, no universo das vidas diegéticas das personagens, é um filme mudo.

 

 

No entanto, este confronto entre o mudo e o sonoro vai prosseguir até ao fim. Quando George diz a Peppy que é impossível ela ajudá-lo, que é um falhado e que ninguém o quer ver a falar, não há, durante toda a cena, um único som. Silêncio absoluto e completo. Nem a música da banda sonora.

Então Peppy diz-lhe para confiar nela e que há uma coisa que podem tentar. E imediatamente começa o som da dança e do sapateado que os dois fazem. Verdadeiramente, é o primeiro momento em que o filme é sonoro, sem ser no sonho. Mas é só sonoro neste passo, porque não se ouvem as palavras do diretor que assiste à cena, mas que pelos lábios em grande plano se percebe dizer Terrific!

Quando terminam o sapateado e eles ficam em grande plano, vê-se a expressão preocupada e assustada de George (Figura 3) e começa a ouvir-se ...a respiração dos dois depois da dança. É o primeiro som sem ser o da música da dança e do sapateado. Verdadeiramente é o momento do início do sonoro em O Artista e é a respiração humana, resultante de um grande esforço, que simboliza esta passagem para o sonoro. A certeza de que o filme agora é sonoro só é dada ao espetador quando depois de um longo silêncio se ouve o realizador dizer um “Corta!” bem definido. E a cena final do filme é em pleno sonoro, mostrando o início de nova cena, ouvindo-se “Som!”, “Câmara!”, “Ação!”. E O Artista é agora um filme sonoro.

 

 

Sendo assim, ter-se-á que completar o esquema atrás apresentado de molde a poder verificar o processo gradativo de sonorização que o filme vai adquirindo (Figura 4).

 

 

Desta forma, a própria estrutura sonora do filme é ela mesma aquilo que o filme retrata: a passagem do cinema mudo para o sonoro. Dizer, portanto, que O Artista é um “filme mudo” é não apenas não ser exato, mas não ter percebido que ele pretende ser e representar aquilo que nunca existiu, a transição mudo-sonora materializada.

3. Comunicação, linguagens e palavras

Numa sociedade como a atual, recheada de processos e instrumentos hipercomunicativos, O Artista pretende, de certa forma, recuar ao início das tecno­logias da comunicação. À sociedade das infinitas imagens em infinidades de cores, o filme contrapõe o preto e branco da génese. Ao uso abundante da palavra oral e escrita, o filme contrapõe a quase ausência de verbalização, como era timbre do cinema mudo. Regressa-se ao tempo cinematográfico em que a linguagem é (quase) sem língua, em que a comunicação se faz utilizando prioritariamente a contextualização do ato de comunicação e as palavras se reduzem ao raro e essencial. Não é por acaso que a primeira sequência do filme é o herói a ser torturado e as primeiras palavras do primeiro letreiro (verbalizando a fala do torturado) são “I won’t talk! I won’t say a word!!!” [Não falarei! Não direi uma palavra!!!]. O filme abre assim para nos lembrar que, por vezes, falar pode ser trair, as palavras nem sempre são a melhor forma de expressão. Não dizer uma palavra pode ser comunicar. É nesta base que o filme pretende questionar a necessidade imperativa das palavras para a comunicação. O carrasco tortura-o e ordenar-lhe “Fala!”; o herói resiste e só diz que não diz nem uma palavra.

Ao longo de todo o filme, George é o símbolo da comunicação sem palavras, de que comunicar não implica o uso da palavra como as pessoas o fazem. Quando a mulher tenta falar com ele, diz-lhe: “We have to talk, George.” “Why do you refuse to talk?”. As frases são propositadamente ambíguas: o recusar a falar, é mais do que falar com ela, é simplesmente a recusa em usar palavras.

E quando ela lhe diz “I’m unhappy, George” e a resposta dele é “So are millions of us”, não podemos ver simplesmente um diálogo que se refere à relação entre os dois (praticamente nunca aflorada no filme). Os milhões que são infelizes são os que, mesmo falando muito na sociedade da hipercomunicação, continuam sem verdadeiramente comunicar, como que dizendo que nem sempre a novidade tecnológica na comunicação acarreta a felicidade prometida.

Para George, as palavras são sinónimo de pesadelo. Depois de descobrir que Peppy lhe tinha comprado no leilão tudo o que era dele, foge de casa dela. Ao admirar roupa de cerimónia numa montra, um polícia fala para ele. Não consegue compreender as palavras (vê-se uma boca em close-up a falar e ele muito assustado) e vai-se embora. Refugia-se na sua casa que ardeu e sente-se atordoado por palavras que imagina os outros a dizerem-lhe (Figura 5). As palavras são mesmo, para ele, um autêntico pesadelo.

 

 

Mas outros elementos do filme reforçam esta ideia de que comunicação e linguagem abarcam muito mais do que as palavras. Um dos elementos centrais do filme é o cão, acompanhante inseparável de George (o retrato que se vê melhor, pendurado no camarim, é o do cão). Ao longo de todo o filme, o cão comunica não apenas com George, mas também com o espetador. Por exemplo, não vemos o beijo de George a Peppy. Quando supomos que se vão beijar, é o cão que é focado e é pela atitude do cão (que tapa os olhos e baixa a cabeça) que percebemos que eles se beijam. A mensagem é óbvia: os animais não ‘falam palavras’, mas percebem e comunicam. Nem sempre são precisas as palavras para comunicar.

Numa outra sequência, no fim de assistir ao filme de Peppy Miller Guardian Angel,uma senhora interceta George e pergunta se o pode interromper. Ele julga que o vai reconhecer como uma antiga estrela de cinema. Mas a senhora só quer fazer festas ao cão e diz: “If only he could talk!” [Se ao menos ele pudesse falar!]. É o vício de pensar que a expressão tem que ter palavras. O cão transmite tudo que é possível transmitir. Para George Valentin, é bom ele não falar, mas ser o que é. Para quem não dá valor à expressão sem palavras, o cão deveria falar. E o cão vai falar na cena seguinte.

Em casa, George assiste a um dos seus antigos filmes mudos. Sente-se um falhado, destrói as bobines, arranca a película e deita fogo a tudo. Entretanto, tenta salvar um filme dos que estavam a arder. O cão, vendo-o rodeado de chamas, sai disparado a correr, chega ao pé de um polícia e ladra freneticamente. O polícia manda-o calar e ele atira-se para o chão imitando um morto. Uma senhora diz ao polícia que o cão está a dizer que alguém precisa de socorro. O polícia ao princípio muito cético, finalmente convence-se, corre atrás do cão e vai salvar George. O espetador percebe que o cão falou sem usar palavras. Mais uma vez, a mensagem central do filme.

Um outro elemento que em O Artista representa a comunicação sem palavras é a dança. A dança dispensa a comunicação através das palavras, porque a dança é, em si mesma, no filme, comunicação no sentido mais intenso. É sintomático, para este simbolismo, a cena em que George Valentin no estúdio de gravação só vê umas pernas a dançar por baixo do cenário (Figura 6). Manda levanta-lo mais um pouco. Não o tira, não vai à volta para ver toda a pessoa / rapariga que não sabe quem é. Responde à dança dela, dançando também. A dança é mais expressiva que as palavras... Só bastante depois é que manda retirar o cenário que os separava e reconhece a rapariga que conhecera no encontro com a imprensa (Peppy). E será a dança, na última cena, a representar a única forma possível de compatibilizar o aparentemente incompatível, a estabelecer a passagem para o sonoro, a garantir a harmonia dos dois mundos, do antigo (mudo) e do novo (sonoro), harmonia representada no happy ending final.

 

 

4. Estratégias semióticas em O Artista

O cinema é, por excelência, o porto onde todos os códigos podem acostar. A sua multimodalidade de técnicas e componentes permite que se conjuguem as semânticas literárias, linguísticas, musicais, pictóricas e todas as demais que a sua versatilidade pode abarcar.

Para procurar quais os códigos e estratégias mais estruturantes que subjazem a O Artista, temos que partir da constatação daquilo que o filme procura ser: não tem a pretensão de revolucionar o cinema nem tão pouco pretende constituir-se como filme de autor no sentido mais forte da expressão. O filme, antes pelo contrário, baseia-se num roteiro extremamente simples e tão pouco original que pode mesmo ser visto como uma sequência de clichés: o galã tradicional no seu apogeu conhece a rapariga em início de carreira, apaixonam-se, ele vai caindo e ela subindo, ele entra numa fase de autodestruição, ela salva-o, ficam juntos, final feliz! Só que esta trama é propositada e cumpre o desiderato essencial do filme: mostrar o início ingénuo do cinema, mostrar como com técnicas rudimentares se pode fazer arte, mostrar como o grande problema desses primeiros tempos (não se poder usar a linguagem verbal a não ser muito subsidiariamente e por exceção) pode transformar-se numa virtude na medida em que, muitas vezes, as palavras são redundantes para a comunicação.

Por isso, a evidência de os formatos utilizados replicarem a época que se quer retextualizar, o início do cinema. Daí que o filme pretenda ser visto como um filme mudo (embora em rigor não o seja, como vimos atrás) usando os formatos relativos ao género, desde a (tendencial) ausência de som, o preto e branco em vez de cor, o formato de ecrã de 4/3 e não um formato mais panorâmico e até a tipologia das letras utilizadas no próprio título e na apresentação inicial do elenco e da produção (Figuras 7 e 8). Todas estes elementos se comportam, obviamente, como elementos metonímicos para reenviarem o espetador para aquela época e aquele género de cinema.

 

 

 

Mas, como é fácil de entender, o filme tem que se servir de técnicas e focalizações que não são as do cinema mudo. Como já indicamos, a estrutura do filme é uma narrativa que contém e explicita outras narrativas constituídas pelos filmes em que George é ator (Figuras 1, 2 e 4). Para dar esta perspetiva ao espetador, usa-se um enquadramento pouco provável no cinema mudo, que é pôr George por trás do ecrã onde são projetados os filmes, precisamente no momento em que aparece a indicação THE END. A inversão das letras na suposta tela de projeção (Figura 9) é um excelente indício que permite enquadrar George espetador de George ator.

 

 

Uma outra aparentemente pequena subversão dos códigos do cinema mudo é usada no momento mais dramático do filme. George, desesperado e sentindo que a sua carreira tinha chegado ao fim, fecha-se na sua casa, na sala onde guardava os filmes que tinha incendiado e pega numa pistola. Entretanto vemos Peppy a conduzir vertiginosamente o carro que nunca conduzira na tentativa de chegar a tempo e de o impedir de cometer o ato de desespero. Vemos depois George a meter a pistola à boca, fechar os olhos, sair-lhe uma lágrima e aparecer num quadro a onomatopeia “Bang!” que habitualmente representa um tiro. Mas em vez de vermos George morto, aparece o carro conduzido por Peppy que batera contra uma árvore. Houve, nitidamente, uma subversão dos códigos dos filmes mudos na relação entre acontecimento-transcrição sonora: as letras aparecem sempre para representar o som inserido da cena anterior e não o da seguinte. Portanto o “Bang!” deveria representar o som da pistola. Ao representar o choque do carro, esta pequena subversão dos códigos narrativos aumentou o suspense e a alegria do happy ending. Mas, uma vez mais, a subversão deste código evidencia que O Artista não é um filme que obedeça unicamente aos códigos do cinema mudo: serve-se deles para nos iludir e, neste caso, aumentar o suspense numa determinada sequência.

Porque pretende constituir-se como estrutura referencial (embora recriada) de um modo de fazer cinema (o cinema mudo), O Artista pode ser considerado simultaneamente um índice e um símbolo do papel da língua entre as várias linguagens que permitem a comunicação e que o cinema comporta. Por isso, é impossível vermos o filme apenas no seu plano diegético de base sem constantemente vermos o simbolismo que este aparente ‘filme mudo’ aponta. Esta macroestruturação simbólica é repetida ao longo do filme em microestruturas em que um elemento (A) simboliza um outro elemento (B) de uma forma ostensiva ou apenas quase subliminar (Figura 10). Esta interrelação ao nível microssequencial pretende lembrar-nos a cada passo que o filme tem de ser visto como um símbolo, como uma realidade que representa uma outra realidade que temos que apreender. Elementos aparentemente neutros possuem grande carga simbólica que uma menor atenção pode deixar escapar se só se olhar para a narrativa básica.

 

 

Por exemplo, no camarim de George, Peppy enfia o seu braço direito no casaco dele que está pendurado e abraça-se como que se preparando para dançar. É surpreendida, ele entra, e ambos percebem que se estão a apaixonar. Em fundo, muito disfarçado (Figura 11), um título de um filme (“Thief of Her Heart” – O Ladrão do coração dela, à letra), que aparentemente nada tem a ver com a cena, mas que simboliza (ou indicia) aquilo que facilmente o telespetador adivinha.

 

Há frequentemente esta estratégia narrativa de um segundo plano menos evidente indicar o primeiro plano que se quer evidenciar num jogo de índices e símbolos que nos querem lembrar que a leitura de O Artista deve ser feita no plano simbólico.

Podemos ver esse simbolismo igualmente na última cena do filme mudo produzido por George, e que o leva à ruína, em que ele, enquanto personagem, se enterra até desaparecer em areias movediças, como metáfora evidente do enterro de uma época que passara, aspeto que só ele não tinha compreendido. E assim, até o “The End” que sublinha a cena final se torna um indício simbólico da cena e da metáfora que ela representa.

 

 

 

Numa outra sequência, enquanto o filme (mudo) de George é um fracasso, o dela (sonoro) é um mega sucesso: chama-se Beauty Spot (Figura 14), que pode significar Ponto, Sinal, Pinta / Mancha de Beleza. É evidente a referência à pinta que ele lhe colocara junto aos lábios (um dos códigos de glamour da época) dizendo que se quisesse vencer teria que ter alguma coisa que as outras não tinham. É a ironia simbolizada de ter sido ele que não percebeu o que tinha que ter para alcançar o sucesso e a referência a que a novidade é sempre um ponto de beleza, ainda que mais tarde possa vir a ser também abandonada, quando deixar de ser novidade.

 

 

Esta simbologia entre os títulos dos filmes e o destino das personagens é quase obrigatória. Ele, esmagado pelo fracasso, cai bêbado nos bares: Peppy manda recolhê-lo para um quarto na casa dela, e na cena seguinte o título do filme em exibição e em que ela é a estrela é “Anjo da Guarda” (Guardian Angel – Figuras 15 e 16).

 

 

Esta correlação que se quer transmitir ao espetador entre cinema e vida (o cinema como espelho da vida ou a vida como espelhada no cinema) é, por vezes, apresentada de forma mais subtil.

George teve de leiloar tudo o que tinha para arranjar algum dinheiro porque ficara falido com os gastos com o filme mudo que teimara em produzir. No fim do leilão e já sem mordomo e carro (leilão em que as peças foram compradas, sem ele saber, pelo motorista e empregada de Peppy, mandados por ela) ao atravessar a rua quase que é atropelado. Em exibição num cinema (Figura 17) está o filme Lonely Star [Estrela Solitária]: metáfora evidente e símbolo da personagem. O pormenor de quase ser atropelado ao passar em frente ao cinema destina-se apenas a que reparemos melhor no título Lonely Star, já que George demora mais a passar porque olha para trás com receio de poder aparecer novamente algum carro.

 

 

5. Conclusão: comunicação, cinema e arte

É esta multiplicidade de correspondências simbólicas que nos obriga a ver O Artista no seu todo como um símbolo de encadeamentos simbólicos. Ele pretende representar não apenas o óbvio (os primeiros passos do cinema), mas questionar até que ponto a comunicação na sociedade das TICs não sobrevaloriza a redundância que a palavra em excesso pode ter.

Quando a mulher acusa George de ele não falar (“Why do you refuse to talk?”) e diz que se sente infeliz, a resposta dele (“So are millions of us”) não é apenas referente àquela situação concreta em que considera que as palavras não ajudam nada, mas à palavra vazia e irrelevante a que qualquer um pode, hoje, dar uma dimensão global.

Por isso, apesar de ser um filme a-normal, O Artista não pretende ter uma dimensão inovadora, nem a nível técnico, nem a nível de conceito de cinema. Pretende, apenas, apresentar-se com a ingenuidade de quem quer recuperar a essência da comunicação e de mostrar que ao comunicarmos nem sempre as palavras são o essencial. Há muitas linguagens que não precisam da língua ou apenas a utilizam de uma maneira muito contida e que o cinema é lugar privilegiado que possibilita o encontro de todas elas de quase infinitas formas. Mesmo as mais primitivas (as do cinema mudo) podem ser profundamente comunicativas e ainda hoje nos encantarem quase como encantaram as salas de há um século. Na sua simplicidade, O Artista (e não é por acaso que tem este título) é uma homenagem ao cinema enquanto arte e à sua história, às possibilidades que oferece, não somente enquanto divertimento, mas também enquanto forma de compreensão e comunicação daquilo que consideramos que nos faz mais humanos. É, de certa forma, uma maneira de mostrar porque é que é chamado de sétima arte: não apenas por ter sido a sétima a surgir, mas talvez por ter mais a ver com a ideia de o sete ser o número perfeito.

 

Referências

Bignell, Jonathan (1997), Media Semiotics: An Introduction, Manchester University Press.         [ Links ]

Buckland, Warren (2000), The cognitive semiotics of film, Cambridge University Press.         [ Links ]

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Metz, Christian (1974a), Film Language: A Semiotics of the Cinema [trans. Michael Taylor], New York: Oxford University Press.         [ Links ]

Metz, Christian (1974b), Language and Cinema [trans. Donna-Jean Umiker-Sebeok], The Hague: Walter de Gruyter.         [ Links ]

 

[Recebido em 8 de maio de 2013 e aceite para publicação em 30 de setembro de 2013]