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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.28 no.2 Braga  2014

 

RECENSÕES

História prodigiosa de Portugal: mitos e maravilhas. Joaquim Fernandes, Vila do Conde: Quidnovi, 2012, 326 pp.

 

João Peixe*

*Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho; Braga Portugal.

jpeixe@ilch.uminho.pt

 

História Prodigiosa de Portugal: Mitos e Maravilhas não é mais uma história da nação. Assinado por Joaquim Fernandes, professor universitário e destacado investigador da história e da filosofia das ciências, o volume dá a conhecer alguns aspetos menos conhecidos da história de Portugal ligados à mitologia e ao sobrenatural. O livro relata – lê-se na capa – "feitos excecionais da lusitana casta". E o interior não defrauda o leitor. Pela pena esclarecida e inspirada do autor, somos levados a visitar Mitos e Maravilhas que povoa(ra)m o imaginário português. São lendas de antepassados míticos e relatos de intervenções sobrenaturais que, pela sua natureza, não cabem no registo oficial da historiografia da nação e das suas gentes. Todavia, porque criaram crenças e superstições, algumas que ainda hoje sobrevivem, são narrativas que moldaram a identidade cultural de um povo, com implicações diretas ou indiretas no seu devir.

O livro está dividido em duas partes, anunciadas no subtítulo da obra. A primeira dedica-se aos Mitos que a tradição inscreveu na nossa memória coletiva. Dos heróis míticos Tubal, Ulisses e Hércules, que deixaram a sua marca em terras lusitanas (pp. 13 e sqq.), à nobre linhagem do ilustre imperador Clarimundo, cujo sangue corria nas veias de D. Afonso Henriques (ibidem), as origens da casta lusitana são das mais auspiciosas que se podem desejar. Também não fi a fora de hipótese que os Açores sejam o que restou da Atlântida após o misterioso desaparecimento daquela terra e do seu povo bem-aventurado (pp. 27 e sqq.). E mesmo a fundação do reino estará abençoada pelo Filho de Deus, que, ao rei fundador e ao seu povo, outorgou as terras, auxiliou nos combates pela independência e vaticinou os maiores sucessos civilizacionais. A própria mãe de Jesus tomou à sua guarda o povo português, que desde então se tornou devoto mariano (pp. 69 e sqq.). Por outro lado, sempre dos Céus vieram preciosos augúrios astrológicos para guiar governantes, para avisar o reino de catástrofes e para valer a militares no campo de batalha (pp. 93 e sqq.). Do relato do autor, fi a a imagem de um povo eleito, predestinado a grandes feitos. Uma imagem que, com certeza, serviu para criar uma identidade nacional, importante para a agregar as pessoas em torno de grandes objetivos. Naturalmente, algumas destas narrativas foram decalcadas de outras mais antigas, que também terão galvanizado outros povos. Destacam-se, por exemplo, as semelhanças que entre D. Afonso Henriques e o Imperador Constantino que, em vésperas de batalhas decisivas, lograram obter decisivos sinais de Jesus Cristo (pp. 53-54); ou, então, o relato do comandante português que, qual Josué, consegue uma prorrogação da luz do dia sobre o campo de batalha e, qual Moisés, faz brotar água de uma rocha, para matar a sede aos seus militares (p. 61).

O último capítulo da primeira parte vai deter-se na contrapartida de tão grandes crenças no sobrenatural. Da mesma forma que se cria no sobrenatural divino, também se cria no sobrenatural diabólico. Nas palavras do autor, Portugal é um "país fidelíssimo que não tem rebuço de servir a dois senhores, deuses repartidos na gestão de dois territórios, disputados entre o Bem e o Mal, a Luz e as Trevas" (p. 123). Num reino sem o debate teológico suscitado pelos movimentos reformistas que houve noutros locais, a atenção e o combate da hegemónica Igreja Católica voltaram-se para as heresias, mormente as práticas judaizantes e, em menor escala, os pactos demoníacos. Para as primeiras, foi criado um discurso que demonizava os judeus (pp. 131 e sqq.), autênticos demónios que assombravam a vida dos cristãos, consumiam os seus recursos e acumulavam fortunas. Desta forma, fechava-se o processo de criação da identidade nacional. Se na política os Céus nos bafejavam, estava encontrado o inimigo infernal que vinha unir os cristãos contra tamanha ameaça. Concomitantemente, perseguia-se quem quer que fosse suspeito de celebrar pactos com o Demónio com vista à obtenção de benefícios não alcançáveis por via natural (pp. 140 e sqq.). Não deixa de ser interessante notar, acrescentamos nós, que, novamente devido à falta de debate teológico, a oração cristã, a bênção de espaços e edifícios e mesmo alguns dos sacramentos sagrados tivessem escapado a uma análise sobre a sua própria capacidade de obter esses tais benefícios sobrenaturais, porventura heréticos, segundo a própria definição contrarreformista. Pelo contrário, como se verá na segunda parte do livro, há numerosos relatos de curas milagrosas atribuídas à intervenção divina que, não obstante terem sido investigadas pelas diversas mesas da Inquisição do país, foram reconhecidas pela hierarquia católica.

A primeira parte do livro termina deixando de fora "O Desejado". É certo que o autor disseca toda a narrativa sebastianista num capítulo da segunda metade, mas o Sebastianismo em Portugal parece-nos mais do que uma "maravilha".

D. Sebastião é a encarnação portuguesa do mito universal que designaríamos de "Salvador Oculto", cuja expressão máxima está no culto messiânico da tradição judaico-cristã. Ora, o desaparecimento do rei em Alcácer Quibir deu o mote factual para a esperança generalizada no seu regresso, que, consumando-se, permitiria a salvação da Pátria. Esperanças que foram atualizadas em inúmeras intervenções literárias e não-literárias, do Padre António Vieira a Almeida Garrett, entre outros. Preferiríamos, pois, ver esta crença analisada enquanto mito constituinte da identidade, em vez de simples relato maravilhoso. Mesmo que a argúcia científica do autor o levasse a concluir a impossibilidade do Sebastianismo poder ser considerado um mito, gostaríamos de conhecer tal raciocínio.

Segue-se a parte das "Maravilhas". São oito capítulos que expõem os factos e os feitos que dão substância real à mitologia da nação, exposta na primeira metade do livro. Realidade que dá substância, mas que, ao mesmo tempo, alimenta o enraizamento desses mitos. O primeiro destes capítulos fala-nos da visita de "cometas", cuja leitura astrológica autoriza as mais diversas "profecias". Nos dois capítulos seguintes ficamos a saber da propensão do povo português para ter "visões" paranormais, para ver nascer inúmeras "santidades" no seu seio, para o culto de "relíquias", enfim, uma tendência invulgar para abraçar manifestações e cultos do sobrenatural, mas que, como observa o autor, está no limite da heresia. Nos capítulos seguintes, há espaço para o relato da ação de alguns serventes do tal senhor a quem o autor dizia na primeira parte que Portugal também serve. E são vários os "magos e curandeiros" que por terras lusas passaram, prestando vassalagem ao Diabo e demais demónios, operando benefícios e malefícios investidos do seu poder. Há também espaço reservado para as narrativas de "monstros" bestiais e outras "raridades", bem como para as histórias do "lendário oriental" que se trouxeram juntamente com as especiarias.

Dois outros episódios da história de Portugal merecem do autor uma atenção especial. Um, como já deixamos antever, dedicado ao "Sebastianismo e [aos] Sebastiões" que grassaram por esse país fora. Efetivamente, segundo o autor, não faltaram Sebastiões regressados de Alcácer Quibir ou quem visse o Encoberto aqui e ali. O outro destaque, também meritório de um capítulo exclusivo, é a Casa de Bragança que protagonizou a "fabulosa Restauração". Por anúncio divino e extraordinário valor, estava o Duque de Bragança fadado a conduzir o país de novo à sua autodeterminação. É essa predestinação excecional que este capítulo documenta.

Em geral, esta segunda metade do livro não apresenta grandes generalizações ou conclusões. Nela são descritos casos particulares que, afinal, são as manifestações, porventura previsíveis, de uma cultura produzida pelo conjunto de mitos analisado na primeira parte. Em todo caso, são "feitos excecionais" que justificam o adjetivo escolhido para o título da obra: "prodigiosa".

Estamos perante um trabalho de elevado valor cultural, um contributo importante para conhecer melhor a cultura do nosso país. É de salientar a profunda pesquisa por trás do volume nas nossas mãos: um trabalho meticuloso de consulta de fontes, nas mais das vezes desclassificadas pela sua natureza mítico-maravilhosa. Num registo que oscila entre o científico e o popular, entre o sério e o irónico, dando razão às palavras da contracapa, o autor leva-nos numa "visita guiada aos subterrâneos do [nosso] inconsciente coletivo". Destinado ao leitor comum, as fontes citadas, devido à vagueza da sua referência, poderão não satisfazer um público universitário mais exigente e habituado a bibliografias precisas. Sai o livro a ganhar em poder de recreação e facilidade de leitura.

Na mesma série, está anunciado um segundo volume com o promissor subtítulo: "Magias e Mistérios". Aguardamo-lo com expetativa.