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Revista Diacrítica

versión impresa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.28 no.3 Braga  2014

 

TRIBUTO A LUUANDA

O Livro

 

Ana Paula Tavares[1]

 

Era uma vez um livro. Era uma vez um livro e as suas três histórias. Era uma vez um livro e a cidade que o sustenta "tinha mais de dois meses a chuva não caía. Por todo os lados do musseque, os pequenos filhos do capim de Novembro estavam vestidos com pele de poeira vermelha espalhada pelos ventos" Era uma vez um livro. As marcas das falas dos arredores da cidade arrastam a linguagem para dizer das vidas dos gestos e das memórias. Matéria frágil e fugaz que o livro fixa. A palavra inaugura aí o seu reino imitando o gesto, o muxoxo, as falas das mais velhas e dos miúdos.

"A porta inchada com a chuva, não entrou no caixilho dela. Bateu com força uma vez, duas vezes, ficou depois a ranger, a chorar baixinho essa saída de Zeca. Vavó Xixi no meio da cubata escura e cheia de fumo mal soprado, olhava a saída do neto, segurando nas mãos a tremer as raízes de dália e abanando a cabeça num lado e noutro, sem mesmo dar conta, parecia era um boneco de montra de lotaria." (Luuanda, "Vavó Xixi e Seu Neto Zeca Santos")

Era uma vez um livro, suas estórias, sua escrita que levanta voo na língua portuguesa e se espalha por caminhos de outras línguas para contar as histórias com a verdade que é a verdade dos livros: "Minha estória. Se é bonita, se é feia, os que sabem ler é que dizem. Mas juro me contaram assim e não admito ninguém que duvida de Dosreis, que tem mulher e dois filhos e rouba patos, não lhe autorizam trabalho honrado; de Garrido Kam’tuta, aleijado de paralisia, feito pouco até por papagaio, de Inácia Domingas, pequena saliente que está a pensar criado de branco é branco… de Zuzé, auxiliar, que não tem ordem de ser bom, de João Via-Rápida, fumador de Liamba para esquecer o que sem está a lembrar, de Jacó, coitado do papagaio de musseque, só lhe ensinaram as asneiras e nem tem poleiro nem nada…

E isto é verdade, mesmo que os casos nunca tenham passado." (Luuanda, "Estória do ladrão e do papagaio").

Era uma vez um livro, suas histórias, seus heróis sem comida, sem escola, mas a falar alto e a apropriar-se do espaço que lhes pertence num mundo fragmentado e injusto. Na contenda surgem e são nomeadas as verdades no teatro da vida e da luta. O espaço é a cidade de Luanda que as personagens atravessam dia após dia a minar a sociedade quieta e branca na sua solenidade.

Era uma vez um livro que inaugura a festa da palavra que inicia assim uma tradição, a de visitar o lugar de outras palavras para dar notícia do que se passa para além da fronteira do asfalto: gente que vive, adoece, celebra e chora. Aquilo que o colonialismo dividiu é posto em causa dentro e fora da moldura e a linguagem é eleita factor de perturbação. Aprisionada pela escrita, ela unifica o espaço e o tempo do vivido e do literário em busca de uma identidade que é da ordem da história.

"A estória da galinha e do ovo. Estes casos passaram no musseque Sambizanga, nesta nossa terra de Luanda" (Luuanda, "Estória da galinha e do ovo")

Era uma vez um livro que fez a sua própria estória: quando consolida a prosa angolana, dá conta de um projeto estético a cumprir-se numa dada geografia e não permite que o compromisso ideológico fragilize a importância do texto.

Era uma vez um livro e suas estórias.

 

Notas

[1]Ana Paula Tavares é reconhecida escritora angolana, sobretudo poeta, embora também se tenha dedicado à crónica e à prosa. Licenciada em história pela Faculdade de Letras de Lisboa (1982), é Mestre em Literatura Africana pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, tendo-se doutorado em 2010. Foi a coordenadora do Gabinete de Investigação do Centro Nacional de Documentação Histórica, em Luanda, entre 1983 e 1985 e foi Diretora do Gabinete Técnico da Secretaria de Estado da Cultura, também em Luanda, de 1987 a 1991. Em 1985, publicou a sua primeira antologia de poesia, Ritos de Passagem (1985). Enquanto membro da União de Escritores Angolanos, fez parte do júri do Prémio Nacional de Literatura de Angola de 1988 a 1990. Publicou as antologias de poesia O Lago da Lua (1999); Dizes-me coisas amargas como os frutos (2001), Ex-Votos (2003) e Manual para Amantes Desesperados (2007). Em prosa, publicou A Cabeça de Salomé (2004) e, com Manuel Jorge Marmelo, O Homem que chorava no Rio (romance, 2005). Participou ainda em várias antologias de contos, onde explora a faceta de prosadora e a sua obra está traduzida em várias línguas. O Sangue da buganvília (crónicas, 1998) reúne a sua participação em programas radiofónicos. Como historiadora fez um valioso trabalho de compilação e organização de textos sobre a história de Angola a partir do espólio que se encontra em Portugal, na Torre do Tombo. Publica em 2010, Como Veias Finas na Terra, a sua sexta antologia poética, e em 2011, Amargos como os frutos. Poesia reunida (edição brasileira).

Ganhou o Prémio Mário António de Poesia 2004, da Fundação Calouste Gulbenkian e, em 2006, o Prémio Nacional de Cultura e Artes de Angola. Em 2013 ganhou o Prémio Literário Internacional Ceppo Bigongiari, promovido pela comunidade de Pistoia, Toscana.