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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.28 no.3 Braga  2014

 

TRIBUTO A LUUANDA

Tenras e vívidas memórias de Luuanda

 

São Lima[1]

 

Alda Espírito Santo, claro. Foi ela quem me franqueou o palpitante e sofrido e rijo coração de Luuanda. Pela materna e reta mão, Luuanda entrou e ficou para sempre aconchegado às minhas referências, ao meu imaginário. Luuanda permanece em mim como um marco geracional.

Era então uma adolescente ávida de leituras, lançada numa viagem à descoberta dos escritores dos recém-libertados países africanos de língua portuguesa. Devorava-os.

Aconteceu em plena tertúlia, uma daquelas tertúlias em que ela nos guiava e nos incentivava, reajustando a necessária ênfase em determinado verso, corrigindo um erro de pronúncia aqui, um tropeço na História de África ali, desvendando mundos, semeando livros, transmitindo exemplos. Acabáramos de ler A Vida Verdadeira de Domingos Xavier e cabia-me fazer um breve resumo do livro, partilhar as impressões que a obra causara em mim. A matriarca escutou com aqueles seus olhos grandes e ternos e indagadores. Antes mesmo das palavras, aqueles olhos disseram aprovação.

– Luuandino Vieira é um colosso.

Agitou a cabeça, reiterativamente, para cima e para baixo.

– Um colosso. E Luuanda? A camarada já leu Luuanda?

Foi o livro seguinte, da coleção pessoal, com a sua distinta assinatura na primeira página. Mastiguei velozmente as páginas. O precário quotidiano dos musseques no período colonial, o dia-a-dia do povo, o racismo, a oralidade, tão intensa, que dava comigo, amiúde, lendo os diálogos em voz alta, imitando o sotaque popular luandense, soletrando as falas em Kimbundu, sentindo-me tão, tão próxima das personagens, das suas estórias, seus dramas, suas lutas e disputas, seus anseios, seu modo tão improclamado de resistir, suportando as agruras da vida.

Em pouco tempo, Luuanda passara de mão em mão, o círculo de leitura estava fechado e Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos entravam nas nossas vidas. Numa manhã de nuvens brancas – mangonheiras no princípio; negras e malucas depois – a trepar em cima do musseque.

Foi a estória que mais nos comoveu e começava assim, revelando a sede da natureza, o intrusivo controlo policial e a arquitetura desordenada, a arquitetura da pobreza.

Tinha mais de dois meses a chuva não caía.

Por todos os lados do musseque, os pequenos filhos do capim de novembro estavam vestidos com pele de poeira vermelha espalhada pelos ventos dos jipes das patrulhas zunindo no meio de ruas e becos, de cubatas arrumadas à toa.

Memorizei esse começo, esse anteceder da chuva anunciada por vavó Xíxi.

Vavó Xíxi carregando o peso dos anos e da miséria, remexendo no lixo, comendo raízes de dálias e contorcendo-se com dores de barriga, vavó Xíxi acendendo o lume sem ter o que cozinhar, vavó Xíxi e a força das suas lamentações, vavó Xíxi reclamando, xingando sempre a preguiça e a vaidade de Zeca que nunca mais encontrava trabalho.

Vavó Xíxi, a língua sempre lépida, a língua insubmissa à fome:

"Se gosta de peixe d’ontem, deixa dinheiro hoje, para lhe encontrar amanhã." E nós imitávamos vavó Xíxi, carregando nas interjeições e tudo.

E Zeca. Zeca e sua camisa florida, as calças vincadas, Zeca e as farras, Zeca e seu amor por Fininha, Zeca que não encontrava trabalho, Zeca roído pela lombriga da fome, Zeca e sua vergonha final, desmoronando-se num choro de menino no ombro de vavó.

Vavó Xíxi era-nos muito próxima. Condoía-nos muito a sua fome, tão velha que era. Mas havia mais: algo no seu jeito de falar, algo no seu modo de se lamentar, algo, na forma enérgica como admoestava constantemente o neto Zeca Santos, nos fazia lembrar uma mais-velha da nossa própria família. Zeca também passava fome e muita, mas era novo, tinha uma camisa florida, ia a festas, namorava, saía de casa todos os dias e nunca encontrava trabalho.

Porém, no dia em que Zeca mostrou a vavó Xíxi as costas rasgadas pelo cavalmarinho do branco sô Souto, no dia em que Zeca foi chicoteado e chamado de filho de terrorista, só por ter ido pedir trabalho seguindo o conselho de vavó, nossa também foi a sua raiva e esse calor mau secava as lágrimas lá dentro de nossos olhos também.

E quando, bem no fim, Zeca desabou sobre o ombro de vavó Xíxi e chorou toda a dor do seu ventre e do ventre de vavó, havia apenas uma velhinha e seu neto feito monandengue encurralados pela fome. E foi aí, só aí, que as nossas simpatias, a nossa solidariedade de leitores adolescentes, até então bem mais firmes do lado da anciã, se repartiram ao meio, igualmente, qual um gomo de profunda tristeza, por vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos.

Travámos também conhecimento com Xico Futa e Garrido Kam’tuta e Lomelino dos Reis, vulgo Dosreis, testemunhámos o seu encontro na cadeia, a solidariedade que pode unir os marginalizados mesmo nas situações de grande desespero e desesperança.

A Estória da Galinha e do Ovo, passada no musseque Sambizanga, "nesta nossa terra de Luanda", por volta das quatro horas, pôs o riso e gargalhadas nos nossos corações. Acho que, na tertúlia, coube à Leopoldina recontar essa estória, partilhar as suas impressões, explicar o significado.

Estávamos todos à espera daquela parte em que Beto imitava o cantar do galo. Que foi descrita por Leopoldina com palavras próprias, mas que agora transcrevo do livro.

E então sucedeu: Cabirí espetou com força as unhas dela no braço do sargento gordo, arranhou fundo, fez toda a força nas asas e as pessoas, batendo palmas, viram a gorda galinha sair a voar por cima do quintal, direita e leve, com depressa, parecia era ainda pássaro de voar todas as horas.

Rimo-nos e batemos palmas também, com uma alegria esfusiante.

A matriarca sorriu um sorriso redondo e guiou-nos na busca do significado daquele incrível voo de uma gorda galinha angolana pelos angolanos céus de Sambizanga, quando eram cinco e meia da tarde e o céu azul não tinha nem uma nuvem daquele lado sobre o mar.

Eu recontei a estória de Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos.

 

Notas

[1]Conceição Lima, poeta e jornalista são-tomense, é licenciada em Estudos Africanos, Portugueses e Brasileiros pelo King’s College, Londres, com o grau de mestre em Estudos Africanos pela School of Oriental and African Studies, SOAS, Londres. Na televisão são-tomense é apresentadora do programa Cartas na Mesa que lidera audiências.

Pela editorial Caminho publicou O Útero de Casa (2004), A Dolorosa Raíz do Micondó (2006) e O País de Akendenguê (2011). Está traduzida para o árabe, espanhol, francês, galego, inglês, italiano, servo-croata, turco e shona.