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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.28 no.3 Braga  2014

 

TRIBUTO A LUUANDA

Luuanda: o livro dos cheiros "fétidos" dos outros

 

Adelino Timóteo[1]

 

No final da década de oitenta chegou-me às mãos esse livro, Luuanda, numa edição das Edições 70. Era o tempo do boom dos escritores africanos, que as Edições 70 publicavam. De certo, Luuanda de Luandino Vieira chegara-me às mãos e já o escriba era uma lenda, através das suas narrativas mito-poéticas.

O estilo coloquial adoptado por Luandino Vieira foi talvez um calcanhar de Aquiles neste primeiro contacto, ademais porque ele havia apostado na ‘crioulização’ do português como língua de expressão. A linguagem coloquial repercutiria no falar desta gente dos subúrbios de Luanda, com uma forte componente recreativa e de neologismos. Decifrar Luuanda foi possível através de dois livros ensaísticos que as próprias Edições 70 haveriam de publicar. Esses dois livros foram santo-e-senha para ler Luuanda e aperceber-me que a componente lúdica era uma marca do coração do texto luandinense.

E nisto Luandino Vieira tornou-se como um bilhete de identidade que me permitiu atravessar por certas zonas-tabus, funcionando como uma senha para conspurcar o português padrão, de Portugal. O resultado foram os seguintes contos que publiquei no Diário de Moçambique: "Zeferino, o homem que morreu três vezes" (10/09/94), "Rodrigues, o herói da independência" (9/06/94), "O barrigudo" (04/03/95), "A chave final do julgamento de uma prostituta" (18/03/95), "O tio colorido" (14/01/95), "O pescador e a velha" (1/07/95), "Massinga" (27/0595), "O Pretuguês" (1995?), "A Ana da Inhamudima" (1995?), entre outros, que embora não publicados em livro, constam do espólio do ensaísta Pires Laranjeira. O desvio do padrão normal, além de funcionar como uma profanação aos ditames instituídos pelas escolas oficiais resulta junto dos leitores, por seu efeito e cumplicidade, num efeito que rapidamente cria uma zona / espaço de interação rápida escritor / leitor.

No Moçambique da primeira metade de 1990, reparei que o Suleiman Cassamo e Mia Couto representavam esta corrente. Reparei que outro escritor luso-moçambicano, Ascêncio de Freitas, glosava com muita naturalidade neste campo onde o viveiro eram os musseques, ou seja, os subúrbios. A crise editorial dos anos 90 terá levado a que aqueles meus escritos e outros que saíram na página "Diálogo", do Diário de Moçambique, permaneçam ainda hoje não publicados, depois de uma tentativa com o Mia Couto e o pai, Fernando Couto, de lhes dar a estampa em 1996, através da Ndjira.

A literatura que se fazia nos anos 90 em Moçambique não tinha outra forma de escapar à corrente de Luandino Vieira, pois com a guerra em curso e a ruralização das cidades este espaço de convergência criou esta forma de estar na literatura, marcada pelo conflito entre a norma e o desvio. Os deslocados de guerra e o enfraquecimento do sistema de educação, com a fuga de cérebros, aceleraram a mussequitização do português e da língua em Moçambique. Se por um lado tínhamos bem assegurado que o Guimarães Rosa era o pai da suburbalização do português literário, por outro era evidente que Luandino Vieira era / é o nosso pai africano nesta corrente. O Bahassane Adamodjy, com o seu livro Milandos de um Sonho (2001), editado pela Quetzal, haveria também de marcar essa tendência inevitável na prosa, e José Craveirinha, na poesia.

O título do livro "Luuanda" representa, a meu ver, uma catarse, operando no contexto de uma nação e literatura que se pretende instituir. E as décadas 80 e 90 caracterizaram-se sobretudo pela fermentação do imaginário africano e do reconhecimento das literaturas africanas de expressão portuguesa. As vivências de Luandino Vieira nos musseques de Luanda lhe deram / emprestaram uma matriz que irá marcar toda a sua obra posterior e de muitos outros angolanos, como o Manuel Rui que em "Quem me dera ser onda" faz a caricatura da transposição / transferência dos costumes e do linguajar dos subúrbios no espaço urbano. É o que, em bom rigor, poderíamos chamar a bantunização do português angolano e moçambicano que este Luuanda vem consagrar / conceptualizar, pela sua publicação em 1963, e um sem número de edições que lhe seguiram. Ressuma, o português de Portugal enriqueceu com a bantunização que Luuandino Vieira operou através da escrita com um forte cunho de oralidade (ovambundo e quimbundo), criando um espaço de aproximação entre o narrador / poder colonial e o leitor / escritor lançando mão de provérbios, ditados e valores dos usos e costumes até então ocultos e que irão ganhar um forte eco entre os confrades, o que justificou o Grande Prémio de Novelística da Associação Portuguesa de Escritores (APE).

"Minha estória. Se é bonita, se é feia, os que sabem ler é que dizem. Mas juro me contaram assim e não admito ninguém que duvide. (...) E isto é verdade, mesmo que os casos nunca tenham passado", assim escreveu ele em Luuanda. Expressão essa reveladora de fidelidade do escriba com a tradição, e não só, de comprometimento com o meio em que vive, desempenhando ele a tarefa de portador da sociedade em que está inserido.

Em Luuanda, Luandino Vieira forneceu-me / emprestou-me um narrador que não precisa de ser cunhado com uma forma oficial que o autorize a escrever, não sendo ele mais do que co-produtor de uma nova língua portuguesa e paralela que vive e opera num espaço confinado e clama por um reconhecimento. Será por isso que o livro continua incólume, na sua inter-temporalidade. Ele chamou-me atenção para uma escrita despojada de artifício e de maniqueísmo. Uma escrita que ventile o ar e o aroma do espaço e lugar com que ela faz corpo.

A missão da escrita literária é resgatar o imaginário cultural e levá-lo a perdurar. Augurado este pressuposto, só assim se compreende a sobrevivência deste livro que influencia a minha escrita em Nós, os do Macurungo (2013), na perspectiva de que há um narrador, a seu modo, preocupado com a recreação da língua e em salvar a oralidade, a partir de uma periferia que irá influenciar e catalisar a mudança ao nível do próprio sistema linguístico / padrão literário nacional.

Luandino Vieira representa para mim um escritor que, com esta forma de operar a escrita e a língua, me transmite um à vontade quanto ao meu lugar na escrita, livre de qualquer rococó, livre de qualquer etiqueta que privilegie a posição da escrita literária feita actualmente nas antigas colónias, por isso reclamando um tratamento mais sério, pelos estudiosos e editoras, à evolução ao longo dos cinquenta anos, que as literaturas africanas foram tomando, à injusta e redutora imagem que a limita a dois ou três nomes reconhecidos, enquanto aos demais lhes é dada uma posição subalterna.

Uma vez aqui chegados, Luandino Vieira, inventor de uma marca literária que se compatibiliza com o seu meio e o seu tempo mereceria, a par desta homenagem pelos 50 anos deste Luuanda, uma nata e plêiade de escribas que lhe dessem eco, em se tratando ele de pai deste modus de fazer literatura, desse modus de rasgar a gramática e voltar a juntar o puzzle dos papéis, a seu modus encantatório e maravilhosamente belo, pois é com ele que se sente o cheiro "fétido" dos outros que atormentam ainda, hoje, a preguiça de embrenhar nos subterrâneos de África que mais de quinhentos anos passados, continua por descobrir.

A síndrome que levou ao assalto da APE e a desculpa para se não reconhecer mérito ao Luuanda, depois dos prémios que mereceu, continua a povoar o meio inóspito dos estudos literários onde determinados círculos críticos e intelectuais mantêm latentes a alergia à aceitação natural da herança africana, e assim o mérito da chama de Luandino Vieira continua na penumbra, essa mesma que continua acesa nos musseques de Luanda, de Maputo, da Baía, e retintamente está desfocada nos escaparates das livrarias de Lisboa, reincidente dos "cheiros fétidos dos outros" que alimentam o folclore e a nostalgia de um paraíso perdido.

 

Notas

[1]Adelino Timóteo nasce a 3 de fevereiro de 1970, na cidade da Beira, Moçambique. Formado em docência de língua portuguesa, não chega a exercer a sua profissão. Também licenciado em Direito, exerce a atividade de jornalista, combinando-a com as artes plásticas e escrita literária. Em 2004 e 2007 foi respetivamente homenageado pelo Instituto Superior Politécnico e Universitário (ISPU) e Conselho Municipal da Beira, no primeiro caso pela sua poesia, no segundo pelo seu contributo cultural para a urbe, como escritor e artista plástico. Em 1999 venceu o Prémio Anual do SNJ para a melhor Crónica Jornalística. Em 2001 venceu o Prémio Nacional Revelação de Poesia AEMO. Um excerto dos seus poemas, traduzidos em Italiano, consta da revista Dis/Uguaglianze.

Publicou os seguintes livros de poesia: Os segredos da arte de amar (1999, AEMO), Viagem à Grécia através da Ilha de Moçambique (2002, NDJIRA), A Fronteira do Sublime (AEMO), Dos Frutos do Amor e Desamores até à Partida (Prémio BCI/AEMO 2011) e Livro Mulher (2013, Alcance Editores). Na prosa, se lhe destacam: Mulungu (2007), A Virgem da Babilónia (2009), ambos pela Texto Editores, Nação Pária (2010), Nós, os do Macurungo (2013), Não Chora, Carmen (2013), essas pelas Alcance Editores, Na Aldeia dos Crocodilos (2014 –conto infantil, edição Contos pelo Mundo), Apocalipse dos Predadores (Chiado Editora, Portugal). Ele está antologiado na Antologia da Poesia Moçambicana Nunca mais é Sábado (Dom Quixote, Lisboa), Colectânea Breve da Literatura Moçambicana (Identidades), Poesia sempre (2006, Biblioteca Nacional do Brasil) e Capitalismo um feito Revolução um direito (Galiza, Espanha), entre outras.