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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.28 no.3 Braga  2014

 

LITERATURA – INTERCULTURALIDADE – PEDAGOGIA

A literatura intercultural: desafios e canonização

Intercultural literature: challenges and canonization

 

Gesa Singer*

*Faculdade de Filologia Alemã, Georg-AugustUniversität Göttingen, Alemanha.

Gesa.Singer@t-online.de

 

RESUMO

A história da literatura contemporânea escreve-se de maneira hesitante e com algumas reservas, no que diz respeito à germanística. Contudo, no âmbito académico surgem alguns movimentos e tendências que também abordam a questão da literatura intercultural. É neste contexto que se pode observar o empenho em estabelecer uma certa canonização de uma literatura tradicionalmente considerada menor. Neste artigo referimo-nos à respetiva valorização de autores, temáticas e círculos culturais relacionados com a literatura em língua alemã. Abordaremos as condições de receção e de prática pedagógica, questões incontornáveis para o tema da literatura intercultural quando se discutem a valorização e a mediação da literatura no contexto social e educativo.

Palavras chave: Literatura contemporânea, Literatura intercultural, valores de canonização.

 

ABSTRACT

The history of contemporary literature is hesitatingly and somewhat reluctantly written regarding German Studies. However, within the academic field some movements and tendencies that also address the issue of intercultural literature have appeared. In this context we can notice a commitment to establishing a certain canonization of a literature that was traditionally considered of minor quality. This article will refer to the respective valuation of authors, themes and cultural circles related to literature (mostly) written in German. It will also meditate on the conditions of reception and teaching practice that are compelling issues for intercultural literature when it comes to discussing appreciation and mediation of literature in the social and educative context.

Keywords: Contemporary literature, Intercultural literature, Canonization values.

 

1. Considerações prévias sobre o discurso do cânone

Atualmente, no âmbito da literatura intercultural contemporânea, há um debate aceso em torno do conceito de literatura em si, no que diz respeito à formação de cânones e processos de inclusão e exclusão, nomeadamente no sistema educativo. Neste contexto, a crítica literária e a sua influência na vida literária e noutras instâncias de mediação assumem um papel relevante. Deve-se acrescentar a relação estreita entre o livro e a personalidade e biografia dos autores e autoras, a qual, na literatura contemporânea, domina muitas vezes a leitura e a interpretação.

De acordo com Treml (2009), o "cânone" entende-se normalmente como algo que está em constante desenvolvimento: "O que se ‘desenvolveu’ existe, sem ficar totalmente transparente quem tenha sido o agente e de que forma se tenha efetuado este processo de desenvolvimento".[1] Segundo este autor, pode recorrer-se a abordagens da teoria da criação e evolução para explicar melhor a formação de cânones (Idem, 144) ou, nas palavras de Winko:

Regra geral, um cânone de textos literários não é um catálogo. É antes algo que pode ser reconstruído a partir da presença de textos literários e da comunicação sobre eles, que pode acontecer para diversos cânones em diferentes instituições e meios. (Winko, 1997: 597)

Sob esta perspetiva teórica[2], a consideração da chamada Invisible hand (Winko, 2013) pode contribuir de forma significativa para uma descrição dos percursos complexos relacionados com os processos de valorização (Wertschätzung; Karg, 2013) que permitem perpetuar a relevância de certas literaturas em diferentes contextos sociais (cf. Winko & Rippl, 2013).

No campo da literatura mais recente, é sobretudo a denominada literatura intercultural que está sujeita a processos valorativos de exclusão. Contudo, o fenómeno em si não é novo. A literatura intercultural já existia muito antes de o próprio conceito ter surgido, porque o entrecruzamento e confronto de várias culturas é um tema ancestral e a essência da literatura universal, tendo, por conseguinte, já entrado em diferentes cânones.[3]

Os processos de seleção determinaram desde sempre e ao longo dos séculos a interação entre a valorização de obras literárias e a formação de cânones. No que diz especificamente respeito ao fenómeno da ‘interculturalidade’, esse já se encontra nas literaturas ‘clássicas’, o que teve como consequência o surgimento de um novo campo de investigação dentro dos estudos literários.[4] Não será necessário passar pela referência obrigatória de West-östlicher Divan [Divã Ocidental-Oriental] de Goethe, para se reconhecer na literatura de séculos passados uma considerável diversidade de temas, motivos, caracteres, modos de falar, conflitos, etc. que fazem referência, ainda que de forma apenas implícita, a fenómenos de interculturalidade; contudo, a experiência intercultural em sentido biográfico escasseia no repertório de autores considerados clássicos. De modo geral, são as literaturas contemporâneas que se deparam com o problema de se afirmarem perante as literaturas ‘clássicas’ ou bem estabelecidas na vida literária, devido à falta ou à inadequação de critérios valorativas.

Na maioria dos casos são as convenções, tradições e mecanismos de conservação que mais contribuem para a génese e a permanência de um cânone, e estes fatores dizem respeito a uma camada social privilegiada pelo seu acesso à educação (cânones na educação, cânones académicos). Existem paralelamente alguns subcânones, como o da literatura trivial, entre outros. Trata-se, em primeiro lugar, de fornecer orientações e valorizações e, em geral, de estabelecer uma comunicação com sentido (vd. Treml, 2009: 148): "A grande contingência na produção de ideias leva à necessidade de marcações, a partir das quais os sistemas sociais se orientam e são capazes de comprimir e sincronizar a sua comunicação" (Idem, 149), – mais que não seja, para evitar a arbitrariedade. Portanto, devemo-nos interrogar sobre a seguinte questão levantada por Winko:

Serão os cânones hoje em dia dispensáveis porque a sua unidade já não é concretizável, ou já não serão desejáveis porque cada tentativa de chegar a uma maior unidade tem o preço de uma ratio de exclusão demasiado elevada? (Winko, 1997: 599)

Uma alternativa pode ser encontrada através da simultaneidade de cânones tradicionais e novos que "corresponde ao pluralismo no âmbito da germanística" (Ibidem):

segundo o modelo das escolas secundárias americanas, além dos cânones tradicionais dos ‘autores masculinos e de raça branca’, existem cânones novos de autoras e de diferentes grupos étnicos, cuja integração foi defendida na forma de cânones de grupos coesos. (Ibidem)

Com isso, um cânone literário "(…) constitui um fundamento importante para a comunicação académica e, não em último lugar, para a auto-entendimento" (Idem, 600).[5]

2. Breve história do discurso sobre a ‘literatura intercultural’

A emigração e a globalização como marcas do mundo atual constituem, no fundo, categorias extraliterárias. A produção literária relativa a estes fenómenos desenvolveu-se a partir da chamada ‘literatura de trabalhadores-hóspedes’ (Gastarbeiterliteratur)[6], na década de 1960, passando pela ‘literatura de migrantes’ (Migrantenliteratur), para chegar a um conceito aberto de "literatura híbrida" (Bhabha, 2000). Nesta evolução espelham-se não só algumas tendências socioculturais, mas também as orientações das políticas de imigração. Perante a omnipresente globalização e a abertura de muitas fronteiras, o debate sobre a literatura intercultural e a tentativa da sistematização deste fenómeno em termos académicos é o campo de investigação mais fértil na área da literatura contemporânea. No entanto, ainda não se chegou a resultados conclusivos. Por isso, contentar-nos-emos em referir algumas das posições mais destacadas que servirão de ponto de partida para uma melhor descrição do objeto aqui tratado.

No início, dos anos 50 até aos anos 80, falava-se da Gastarbeiterliteratur, também denominada Betroffenheitsliteratur, cuja tradução ‘literatura dos afetados’ deixa entrever a maior ênfase no caráter autobiográfico e, em termos coletivos, reivindicativo ou militante. Entretanto, foram-se desenvolvendo formas de literatura híbrida produzida por autores e autoras residentes em países de língua alemã com antecedentes de imigração (Migrationshintergrund).

O fenómeno a que se refere, porém, é já velho (…), tendo começado a desenhar-se com os esforços literários da primeira geração de ‘Gastarbeiter’ – à letra trabalhadores-hóspedes – que chegaram à Alemanha no princípio dos anos sessenta (embora os primeiros acordos Estado a Estado para o recrutamento de trabalhadores estrangeiros datem de 1955, com a Itália à cabeça). Chiellino, também autor de vários contributos, teve ele próprio uma participação ativa na configuração editorial e institucional desta nova literatura de língua alemã produzida por autores/as estrangeiros radicados na Alemanha, numa fase inicial com background migratório ligado ao trabalho, hoje nem sempre, até porque inclui elementos da segunda geração, já integrados na Alemanha, ou tendo lá chegado em criança. (Idem, 17).

Estas novas formas não estão focadas no tema do sentir-se estrangeiro, nem se ocupam primordialmente deste fenómeno, até porque um conceito de literatura contemporânea que esteja baseado numa linha conservadora de estudos literários que enfatize identidades nacionais essencialistas é sempre problemático. Durante algum tempo, as definições de "literatura de migração" ou "literatura de imigrantes" terão sido entendidas como satisfatórias, apesar das suas manifestas fragilidades concetuais.[7] A este respeito, Cerri levanta a seguinte objeção:

A ‘literatura de imigrantes’ é um conceito puramente biográfico, que exclui autores nascidos na Alemanha ou, como Feridun Zaimoglu, que foram para a Alemanha ainda crianças e se veem a si mesmos como alemães. Porque terão eles de ser etiquetados com um rótulo que diz respeito à geração dos seus pais e não à deles próprios? (Cerri, 2009: 11-12)

Deixando de lado os conceitos que partem da imigração, prevalece "um debate estéril sobre quem atribui a quê, quando e porquê os conceitos variados de inter-, trans-, multi-culturalidade e afins, assim como, por outro lado, abundam análises válidas de textos literários, que, isoladas, dificilmente se articulam entre si" (Weinberg, 2011: 93). Segundo Chiellino, o romance intercultural tem duas características: "uma perspetiva narrativa em língua estrangeira e o sentido latente da linguagem" (apud Cerri, 2009: 16). Mas há ainda outros critérios a considerar em relação ao fenómeno ‘intercultural’, uma vez que "a interculturalidade em muito ultrapassa o fenómeno da imigração (…)" (Seruya, 2005a: 19).

De acordo com Homi Bhabha (2000), as literaturas híbridas representam um terceiro espaço, no qual se desenrolam processos sociais de negociação entre ‘nativos e estrangeiros’, o centro e a periferia. Apesar de as considerações de Bhabha se basearem na situação (pós)colonial, podem ser transferidas com proveito:

Assim, a ‘literatura de migrantes’ perde o seu estatuto de ‘literatura de chegada’. No novo contexto teórico a categoria ‘híbrido’ não se cinge ao migrante, mas refere-se também à sociedade que acolhe; a ‘literatura de migrantes’ torna-se espelho do leitor alemão, ele também tornado híbrido. (Weinberg, 2011: 97)

Outro tema recorrente nas literaturas de cunho intercultural e muitas vezes de orientação explicitamente biográfica é o sentir-se estrangeiro. Trata-se de textos que se interrogam ao nível estético, de forma temática e linguística, sob o pano de fundo da migração, sobre uma vida que alterna entre duas ou mais culturas e diferentes línguas. Wrobel constata:

O debate em torno da questão sobre se a literatura intercultural será capaz de entrar no cânone não reflete somente as controvérsias dos estudos literários ou didáticos. Os seus argumentos excedem-nos largamente, estando diretamente relacionados com o discurso político-social, as questões de imigração e integração, e a discussão acesa sobre a multie interculturalidade. (Wrobel, 2008: 23)

3. Exemplos de autores interculturais ‘canonizados’

Podem ser elencados, numa escolha ordenada por ano de nascimento, os seguintes autores e autoras, de língua alemã, que foram distinguidos e estão estabelecidos no mercado literário[8]: Franco Biondi (*1947 em Forlì / Itália); Rafik Schami (* 1946 em Damasco / Síria); Emine Sevgi Özdamar (*1946 em Malatya / Turquia); Sibylle Lewitscharoff (* 1954 em Stuttgart / Alemanha); José F. A. Oliver (* 1961 em Hausach / Alemanha); Feridun Zaimoglu, (* 1964 em Bolu / Turquia); Ilija Trojanow (* 1965 em Sofia / Bulgária); Wladimir Kaminer (* 1967 em Moscovo / Rússia); Terézia Mora (* 1971 em Sopron / Hungria); Lena Gorelik (* 1981 em St. Petersburgo / Rússia).

A canonização destes autores processou-se por via de diversas formas e meios, tais como a apreciação das suas obras em resenhas críticas, a obtenção de prémios literários, sobretudo o Prémio Adelbert-von-Chamisso[9], distinção concedida a autores que não têm o alemão como língua materna, mas escrevem no idioma; de referir ainda as Poetikdozenturen, docências em torno da literatura a convite de universidades, divulgações em antologias e, não menos relevante, a presença dos autores e dos seus livros nos media. Com a consolidação da ‘literatura intercultural’, esta canonização passa também pela sua referenciação nas obras mais recentes de história da literatura assim como pela adoção dos seus textos em propostas didáticas e programas letivos nas escolas e universidades nos países de língua alemã.

4. Comunicação intercultural e consequências didáticas

A comunicação intercultural é hoje uma competência-chave nas diferentes relações de interdependência em vastos domínios no âmbito profissional, internacional, político-económico e inclusivamente emocional. As exigências por parte de instituições pedagógicas denotam uma clara orientação para o poliglotismo, para o fortalecimento de competências linguísticas e também para a formação intercultural, configurando assim um enquadramento para o desenvolvimento de diversas formas e meios didáticos nesse sentido:

Assim propagam há séculos as instituições e grémios europeus, que a pluralidade de línguas e culturas (inclusivamente aquelas faladas e vividas pelos migrantes) fazem a identidade europeia e devem ser integradas, não assimiladas. (Allemann-Ghionda, 2010: 8)

No contexto das aulas de língua, não se deve subestimar o duplo significado dos textos interculturais contemporâneos, quer como meio de motivação para a leitura e escrita, quer na sua função cognitiva. Por um lado, representam um importante contributo para o diálogo que conduz à distinção entre cultura e estereótipo (Ipsen, 2009); por outro, consubstanciam um motivo para a reflexão sobre as experiências individuais de cultura e identidade, podendo também ser utilizados para desenvolver determinadas competências linguísticas ao nível da receção e produção.

As análises críticas a partir de narrativas como as referidas até agora podem, na nossa opinião, contribuir para uma atitude mais reflexiva e sugerir assim mudanças de perspetiva originadas pela tomada de consciência, assente numa apreciação comparativa que inclui o reconhecimento da existência de outras experiências, maneiras de ver e critérios valorativos. As literaturas interculturais estão ligadas a um processo hermenêutico de procura de identidade e ao questionamento dessa identidade na complexidade dos contextos históricos e socioculturais, o que as torna atraentes para os estudos literários, designadamente no que se refere à comparação com outros géneros, épocas, etc.. Segundo Stratthaus (2005), o conceito da interculturalidade significa mais uma prática interpretativa geral do que uma abordagem definida por um determinado corpus literário.

Na didática das línguas estrangeiras, foi só a partir dos anos sessenta do século XX que se começou a investigar a relação tensa entre auto e hétero-perceção:

Deu-se maior atenção aos processos simultâneos de adquirir consciência da cultura própria e de compreender a cultura estrangeira; mas também aos aspetos emocionais da perceção do outro, assim como à relevância dos preconceitos; todos estes aspetos entraram no âmago da investigação da didática das línguas estrangeiras. (Hallet & Königs, 2010: 76).

A perspetiva intercultural também adquire uma importância crescente nas recentes obras didáticas do alemão como língua estrangeira (Deutsch als Fremdsprache – DaF). Na área dos estudos literários, os trabalhos de alguns autores dedicam-se ao uso adequado da literatura nesse domínio com o objetivo de alcançar uma melhor compreensão e uma competência de diálogo intercultural mais abrangente. A partir do início deste século estas contribuições são publicadas na série intitulada Gießener Beiträgen zur Fremdsprachendidaktik e consideradas muito fecundas para melhorar a didática das línguas estrangeiras.[10] A literatura é um meio ideal para apreender e aprofundar a competência numa língua estrangeira:

(…) são precisamente os textos literários que, graças à sua dimensão ficcional, refletem em particular as mentalidades, normas e valores culturais da língua-alvo. Mais ainda, refletem aqueles codes of behaviour que são muitas vezes encobertos e difíceis de perceber, no entanto essenciais para a transferência da competência intercultural. (Volkmann, 2008: 101)

Torna-se determinante a possível articulação desta funcionalização da leitura do texto literário com a aprendizagem da língua através de interações, um método que ficou revalorizado nas teorias recentes da didática das línguas estrangeiras:

Quando os textos literários nos apresentam ações e experiências que nos estimulam a ativar ideias e sentimentos, isto significa também que nós reagimos e damos valor ao que nasce através do processo da leitura. (Bredella, 2010: 47)

Portanto, não se trata de uma interpretação literária objetivamente ‘correta’, mas de uma permuta dialógica sobre o que a literatura provoca no leitor e as experiências que ela pode ativar[11], no entanto sem deixar de prestar atenção – acrescentaríamos – aos condicionalismos socio-históricos. Escritores oriundos de diferentes culturas e que escrevem em alemão dispõem hoje em dia de mais identidades culturais e linguísticas e não estão tematicamente presos às suas origens culturais individuais. Os espaços intermédios tornaram-se múltiplos e mais abertos. No entanto, o domínio da língua mantém-se um tema central, seja de forma afirmativa, irónica ou transfigurada, para causar alheamento, ou delimitativa, encontrando a sua expressão própria nas respetivas obras. Já não se trata de ultrapassar as dificuldades da (in)compatibilidade linguística, que tem sido um dos temas centrais da literatura de migração e cuja utilização irónica aparece nas primeiras publicações de Feridun Zaimoglu, numa perspetiva fragmentada:

Neste contexto, a língua constitui um aspeto específico da Kulturnation alemã, (…) sendo possível distinguir-se a marginalidade linguística, a segmentação, a assimilação e a inclusão múltipla. A marginalidade linguística seria então um caso de ‘bilinguismo limitado’ no qual nenhuma das línguas seria dominada de maneira competente, como no caso do language shift entre os filhos de imigrantes de camadas sociais inferiores, que (já) não têm o domínio correto da sua língua materna (...). (Esser, 2006: 26)

No seu livro intitulado Sie können aber gut Deutsch! Warum ich nicht mehr dankbar sein will, dass ich hier leben darf, und Toleranz nicht weiterhilft [Mas que bem que fala alemão! Por que não quero ser mais grata por poder viver aqui e por que tolerância não ajuda], Lena Gorelik (2012) aponta críticas violentas à perceção restrita a que são sujeitos os autores de proveniência estrangeira no contexto da língua alemã. É expetável que, no seio da germanística e da área da docência do Alemão, o debate sobre o cânone continue a manter-se controverso. A área do alemão como língua estrangeira e a germanística intercultural oferecem novas abordagens da literatura em língua alemã que representam um inquestionável potencial de estímulo para esta disciplina:

A defesa de um ‘currículo nuclear’ para a disciplina é problemática, porque o ensino de literatura com orientação intercultural foca não só o tema de experiências antropológicas básicas, como também tem em conta textos que, indo além da abordagem histórica, possibilitem aos estudantes a assimilação do mundo em que vivem. (Wrobel 2008: 25)

Na nossa opinião, o objetivo dos estudos literários e da didática atual não deve consistir no confronto duma literatura com outra[12], porque cada uma tem a sua relevância histórica e, portanto, cultural, e deve ser avaliada em conformidade. Para os estudos literários interculturais e comparativos como também para a atual didática da literatura no âmbito da língua estrangeira, há campos de atividade ainda longe de estarem totalmente explorados.

5. Panorama da literatura luso-alemã

A experiência da emigração para a Alemanha nos anos 60 e 70 não teve quase nenhum reflexo na produção literária portuguesa, com raras exceções como a obra Floresta em Bremerhaven (1978) de Olga Gonçalves, que parece ser simultaneamente um texto de ficção e um estudo sociológico sobre a emigração, dando voz aos próprios emigrantes.

Nos países de língua alemã, a literatura de minorias (Minderheitenliteratur) dos anos 80 empenhou-se na comunicação intercultural, fomentando – por exemplo através de concursos – a criação literária nas línguas de origem dos imigrantes e a sua tradução para alemão, entre as quais destacamos os seguintes, no nosso contexto:

– revistas literárias como: Peregrinação. Revista de Artes e Letras da Diáspora Portuguesa. Baden, Suíça (1983/89);

– antologias (por exemplo, as organizadas por Irmgard Ackermann, Als Fremder in Deutschland. Berichte, Erzählungen, Gedichte von Ausländern (1982) e In zwei Sprachen leben. Berichte, Erzählungen, Gedichte von Ausländern (1983), nos quais se encontram textos de Manuel Salvador Campos, Elizabeth Gonçalves, João da Costa e, talvez a que mais se tenha afirmado posteriormente numa vida cultural luso-alemã, Luísa Costa Hölzl (* 1956, Lisboa).

O tema principal destes textos são as controvérsias pessoais das experiências de vida entre culturas. O jogo de transformar e misturar as línguas materna e estrangeira encontra no ultra-doitsh, criado por Zé do Rock, um brasileiro há muito tempo a residir na Alemanha, a sua expressão mais radical. Numa espécie de alemão ‘crioulizado’ pela língua brasileira, submetem-se os estereótipos culturais a uma paródia, como acontece, por exemplo, em Deutsch gutt sonst Geld zurück. a siegfriedische und kauderdeutsche lerund textbuk (2002). A perspetiva inversa, ou seja a de uma falante materna do alemão a viver no Brasil, é representada por Doris Kloimstein, no seu volume de narrativas intitulado Blumenküsser. Kurzgeschichten aus dem Atlantischen Urwald Brasiliens (2006) que versa sobre as experiências duma professora de alemão austríaca.

6. Breve re?exão ?nal sobre a didática no contexto luso-alemão

Até à atualidade, na vida literária dos países de língua alemã não se tem afirmado autores de origem portuguesa que escrevem literatura em alemão. Perante esta ausência pode-se interrogar sobre os motivos, nomeadamente quando há cada vez mais jovens portugueses, com formação superior e com competências de alemão antes de emigrarem.

Ainda em 1997, Martina Merklin manifestou o seu ceticismo em relação à possibilidade de se aplicar a perspetiva intercultural no alemão como língua estrangeira e nas obras didáticas no contexto do ensino em Portugal:

Aqui podiam-se mencionar as diferenças culturais que se manifestam nas obras didácticas portuguesas e alemãs. Do lado português existe o desejo de acordo e harmonia e evitar desentendimentos, como se pode ver na escolha de materiais didácticos e nos métodos seguidos. Os autores alemães preferem as distinções, a troca de opiniões e principalmente a importância das discussões. Daqui se sente seguramente o ímpeto esclarecedor da didáctica alemã e em especial o conceito de ensino intercultural, bem como a "cultura da discussão" [Streitkultur] alemã. (Merklin, 1997: 98)

A autora deixa bem claro que as diretrizes de um curso de língua não materna devem assentar num amplo domínio de experiências, com a inclusão de perspetivas interculturais, e sugere que seria "da maior importância a tematização da reflexão sobre o Outro, a sua compreensão e as suas contribuições nas aulas (talvez até na sua língua materna)" (Idem, 100).

O facto de qualquer linguagem ser culturalmente condicionada, o encontro de diferentes culturas e a sua expressão literária são temas que, desde sempre, portanto em épocas anteriores à atual globalização e vagas migratórias, tiveram ocasião de entrar em obras que permaneceram no cânone literário. O desafio aliciante que hoje se coloca é a análise das suas mais recentes manifestações.

 

Referências

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[recebido em 7 de abril de 2014 e aceite para publicação em 11 de agosto de 2014]

 

Notas

[1]Treml (2009: 143). Todas as citações de bibliografia em língua alemã foram traduzidas para português.

[2]Cf. Beilein / Stockinger / Winko (2011).

[3]Vd. Sturm-Trigonakis (2007); Charlier & Günther (2009; orgs.); Singer (2012).

[4]Vd., a título de exemplo, Reinhardt (2012).

[5]"O cânone material e interpretativo codifica aqueles esquemas e valores cognitivos e emocionais que contribuíram para a sofisticação de uma cultura na qual também se integra o presente" (Winko, 1997: 600).

[6]Tradução do eufemismo alemão para português, usado por Seruya (2005a).

[7]De acordo com Esselborn (2010, 290): "No contexto da discussão sobre a emigração e a sociedade multicultural na Alemanha julgou-se mais conveniente falar de literatura de imigrantes, migrantes e, num conceito mais temático, de literatura de migração."

[8]Vd. Ackermann (1996); Chiellino (2000), entre outros.

[9]"Nesses tempos, o próprio patrono do fenómeno sob análise, o aristocrata francês Adelbert von Chamisso, que emigrou para Berlim em consequência da Revolução Francesa, fazia parte dos programas universitários de Literatura Alemã, sem que houvesse consciência de que podia ser reclamado pelo seu país de origem, ou excluído do cânone literário alemão devido à sua nacionalidade de origem." (Seruya, 2005 b: 88).

[10]Vd. por exemplo: Bredella / Delanoy / Surkamp (2004).

[11]Bredella (2010, XXXIV) adverte que "(…) a compreensão do Outro é dialógica e não pode suceder sem a sua relação com a auto-compreensão. A experiência estética funciona de modo semelhante. Isso tem consequências profundas para a definição de competência literária que, regra geral, se limita, sob a forte influência do Formalismo, à identificação de aspetos estilísticos e estruturais de um texto.

[12]"A Ciência Literária ‘em sentido restrito’, que se baseia no uso pré-científico de textos literários como autodisciplina sem compromisso, é por isso sempre uma força antagónica ao auto-alheamento ideológico do homem." (Gerigk, 2010: 170)