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Revista Diacrítica

versión impresa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.29 no.1 Braga  2015

 

Formas de realização do pronome clítico em português europeu por falantes de herança luso-franceses

Pronominal clitic placement in european portuguese by portuguese heritage speakers living in france

 

Manuela Casa Nova*

*Universidade do Minho, portugal.

manelalf@hotmail.com

 

RESUMO

O presente estudo visa determinar o papel da transferência linguística na aquisição do Português como língua de herança, por parte de um grupo de 18 falantes de herança de Português Europeu, residentes em França, através da aplicação de um teste de ordenação das palavras que incide sobre a posição do pronome clítico em Português. Sendo o Francês uma língua com uma posição clítica predominante, a próclise, o desempenho dos falantes de herança lusodescendentes é comparado com o de um grupo de falantes monolingues da mesma faixa etária (7-12 anos). Conclui-se que os falantes de herança adquirem o sistema de pronomes clíticos do português seguindo um percurso de aquisição semelhante aos falantes monolingues, embora o processo leve mais tempo, porque se revelam suscetíveis ao fenómeno de transferência linguística. Os resultados indicam ainda a influência do fator idade na aquisição desta propriedade, verificando-se que os falantes mais velhos atingem resultados melhores, e que o tempo de exposição à língua, embora possa condicionar determinadas competências ao longo do processo de aquisição, não é um fator com tanto peso quanto o fator idade.

Palavras-chave: bilinguismo, língua de herança, cliticização, ênclise, próclise.

 

ABSTRACT

The present study aims to determine the role of language transfer in the acquisition of Portuguese as a heritage language by a group of 18 heritage speakers of European Portuguese (EP) living in France, on the basis of a word order test focused on clitic placement in EP. Since French is a language with clitic pronouns, the predominant position of which is proclitic, the performance of Luso-French heritage speakers is compared with a group of monolingual speakers with the same age (7-12 years). The results show that heritage speakers of Portuguese acquire the system of clitic pronouns in Portuguese in a similar way as monolingual speakers, although the process takes longer, even because they reveal susceptible to the phenomenon of language transfer. The results also indicate the influence of age, since older speakers achieve better results. Moreover even though the length of exposure to the heritage language may condition certain skills throughout the acquisition process, it doesn't have as much weight as the age factor.

Keywords: bilingualism, heritage language, cliticization, enclisis, proclisis.

 

0. Introdução

Atualmente, o multilinguismo é uma realidade instalada, pois representa cada vez mais uma resposta a muitas das necessidades da população mundial. As taxas de migração mais acentuadas a partir do século XX contribuíram naturalmente para esta tendência. No que concerne ao caso lusitano, o êxodo deu-se sobretudo para países como a França ou a Alemanha, onde o Português era deixado para trás, como consequência do contacto permanente com a língua do país de acolhimento e da urgência de adaptação ao mesmo.

Esta realidade constitui o ponto de partida para o surgimento de um considerável número de estudos na área da aquisição de línguas, nomeadamente da aquisição bilingue, distinguindo diferentes tipos de falantes: 1) falantes bilingues simultâneos, que adquirem ambas as línguas na infância, podendo atingir níveis de proficiência bastante aproximados entre as duas línguas; 2) bilingues sequenciais, assim denominados por serem falantes que adquirem a segunda língua numa fase posterior à primeira, podendo mostrar efeitos de um período crítico para a aquisição da linguagem (Lenneberg, 1967); 3) falantes de herança (FH), aos quais apenas recentemente se tem dado mais atenção, pois constituem um tipo peculiar de bilinguismo, partilhando características com os dois tipos de falantes acima descritos.

A língua de herança (LH) é um termo com forte pendor sociolinguístico, pois refere-se à aquisição de uma língua minoritária em contexto de migração. Caracteriza-se por ser aprendida no seio familiar desde tenra idade, pelo que, na maioria dos casos, é a primeira língua a ser adquirida pela criança. Contudo, em determinada fase da infância, na maioria dos casos antes da entrada na escola, cresce o contacto diário da criança imigrante com a língua maioritária, que convive com a LH, ou que acaba mesmo por substitui-la radicalmente, quando este passa a usar exclusivamente a língua dominante, recorrendo à LH em escassas situações. Assim, a LH, apesar de ser uma língua adquirida naturalmente desde a infância precoce, não é a língua dominante do FH.

O desempenho linguístico dos três tipos de falantes bilingues acima enunciados pode variar substancialmente, pelo que um dos âmbitos em que se desdobram mais investigações é na comparação entre a aquisição bilingue e a monolingue, no sentido de perceber se são processos idênticos ou dissemelhantes. Autores como Meisel (2007) e De Houwer (2005) acreditam que o desenvolvimento se dá de igual forma entre os diferentes grupos de falantes, quando se trata de bilinguismo simultâneo.

O presente artigo debruça-se justamente sobre este tipo de questões, tendo como suporte os resultados de um estudo empírico sobre a competência de falantes de herança de segunda e terceira geração, ou seja, filhos e/ou netos de emigrantes portugueses que residem atualmente em França. O estudo incide especificamente sobre a aquisição do sistema de colocação de pronomes clíticos do Português Europeu (PE), uma propriedade gramatical complexa, que é estabilizada bastante tarde na aquisição nativa do português. Proponho-me assim a verificar se, nesta área, o desempenho dos FH se assemelha ao de falantes monolingues (FM) portugueses pertencentes à mesma faixa etária.

É importante realçar que, ao comparar um grupo de falantes monolingues com um grupo bilingue, não se pressupõe que a competência dos primeiros seja a ideal, e a dos segundos uma cópia da primeira. Assume-se, isso sim, que a competência bilingue tem particularidades que a tornam especial, já que os FH não são um grupo homogéneo, podendo o seu nível de proficiência “variar de muito básico a muito elevado” (Barbosa e Flores, 2011: 82).

O trabalho foi dividido em várias secções. Começa-se por expor sumariamente os conceitos adjacentes ao fenómeno da cliticização nas línguas alvo, nomeadamente o conceito de próclise. De seguida, abordam-se dois estudos prévios incidentes justamente nesta propriedade gramatical, ainda que num se estude o Português como LH (Barbosa e Flores, 2011), e no outro o Português como L1 (Costa e Lobo, 2013). Posteriormente, desenvolve-se a apresentação do estudo propriamente dito, com destaque para a caracterização dos falantes, para a metodologia adotada, para as questões de investigação inicialmente colocadas, e só depois para os resultados. São apresentados separadamente os resultados dos dois grupos na ênclise, na próclise, e noutro tipo de contextos, a explicar adiante. Analisam-se ainda os resultados à luz de fatores extralinguísticos como o fator etário e a exposição formal à língua e, por fim, discutem-se os resultados obtidos, comparando-os com os do grupo de herança luso-alemão do estudo de Barbosa e Flores (2011).

1. A posição dos pronomes clíticos

1.1 Em português europeu

Dada a organização morfológica que o Português exibe, podemos distinguir a palavra, o afixo e o clítico, sendo este último um item lexical sem acento prosódico, por oposição aos restantes dois. Isto significa que, ainda que tenha certa liberdade posicional numa frase, o clítico depende necessariamente de uma palavra acentuada adjacente, a que tipicamente se chama palavra hospedeira (Martins, 2010: 25). A ligação inevitável entre o clítico e o seu hospedeiro, através da qual se forma uma palavra prosódica, tem o nome de cliticização.

No que à posição do clítico diz respeito, o Português Europeu apresenta alguma complexidade, no sentido de que assume três possíveis posições em adjacência verbal: a ênclise, a próclise e ainda a mesóclise, que não será abordada neste estudo por ser um fenómeno marginal no PE.

A ênclise consiste na colocação do clítico à direita do verbo, e parece ser a que oferece mais facilidade aos falantes portugueses monolingues, sendo, aliás, o primeiro contexto a ser adquirido (Costa e Lobo, 2013). Este contexto emprega-se em:

Orações de sujeito nulo
Ø Vendem-se casas.

Orações de sujeito pré-verbal (com a exceção dos casos em que o sujeito faz parte de expressões não referenciais quantificadas, a ver abaixo)
Os alunos fazem o teste. → Os alunos fazem-no.

Articulação tópico/comentário
Estes sapatos, comprei-os naquela loja.

Advérbios de frase
Normalmente ligo-lhe todos os dias.

A próclise ocorre quando o clítico precede o verbo na presença de um elemento proclisador, a saber (Martins, 2010):

Negação
Ele não receitou nada à paciente. → Ele não lhe receitou nada.
*Ele não receitou-lhe nada.

Sintagmas Qu-

Quem comprou as bebidas? → Quem as comprou?

*Quem comprou-as?

Expressões não referenciais quantificadas

a. Quantificadores indefinidos

Alguém levou os casacos. → Alguém os levou.

*Alguém levou-os.

b. Quantificadores negativos

Nenhum aluno respeita o professor. → Nenhum aluno o respeita.

*Nenhum aluno respeita-o.

c. Quantificadores universais

Todos agradeceram ao Manuel. → Todos lhe agradeceram.

*Todos agradeceram-lhe.

Advérbios aspetuais

conheci o teu irmão. → Já o conheci.

*Já conheci-o.

Advérbios focalizadores

Só tu me compreendes.

*Só tu compreendes-me.

Advérbios enfatizadores

Eu bem te avisei.

*Eu bem avisei-te.

Orações subordinadas

Perguntei-lhe onde guardou as chaves. → Perguntei-lhe onde as guardou.

*Perguntei-lhe onde guardou-as.

Imperativas com que

Que me caia já o teto em cima.

*Que caia-me já o teto em cima.

Exposta esta panóplia de situações que impõe um posicionamento proclítico nas frases, e mesmo sendo esta complexidade já suficiente para causar variação linguística, acresce ainda o facto de a posição clítica ser distinta entre a variedade europeia do Português e o Francês, como se verá de seguida.

1.2 Em francês

A nível lexical, os pronomes clíticos do Francês são semelhantes aos do Português, na medida em que “ils s'appuient phonologiquement sur un hôte, contrairement aux mots, et forment avec lui un seul mot prosodique” (Bluijs, 2008: 3).

O que difere realmente entre os dois sistemas linguísticos é a posição dos clíticos na frase, sendo a proclítica a mais frequente em Francês. Ainda assim, o paradigma não foi desde sempre este, uma vez que, olhando para a evolução da língua francesa, como nos propõe Bluijs (2008), no francês arcaico era gramatical usar os dois contextos, a ênclise e a próclise. Hoje, isso não é possível. Veja-se o exemplo:

(13) Pierre le lit.

*Pierre lit le.

O único caso na língua francesa em que esta regra não se confirma é nas construções de imperativo afirmativo, nas quais o pronome se coloca em ênclise, seguindo o verbo. No caso do imperativo negativo, o clítico volta a ocupar a posição proclítica: “En français standard, les clitiques apparaissent comme enclitiques avec les impératifs positifs, mais comme proclitiques avec les impératifs négatifs” (Miller e Monachesi, 2003, p. 8).

(14) Lis-le!

Ne le lis pas!

Também Miller e Monachesi (2003) salientam que a posição dos clíticos é definida por princípios sintáticos e morfossintáticos : “le principe de positionnement des clitiques fait référence à des propriétés syntaxiques (contiguïté au verbe) et morphosyntaxiques (forme finie, non finie, impérative) et non prosodiques”.

2. Estudos prévios sobre aquisição da colocação clítica em português L1 e português LH

São inesgotáveis os estudos experimentais incidentes na competência linguística de falantes bilingues. O Inglês é claramente uma língua privilegiada neste aspeto, uma vez que serve de impulso a muitos desses estudos, no entanto o panorama tem-se alargado, e tem crescido o interesse pela abordagem com base noutras línguas como o Alemão, o Espanhol e mesmo o Português.

Os falantes de herança, enquanto detentores de um perfil linguístico particular, só recentemente têm recebido atenção, pelo que há ainda muito por descobrir relativamente ao seu perfil linguístico. Não obstante, os estudos vindos a público lançam já algumas conclusões que nos permitem conhecer melhor o cerne do bilinguismo, nomeadamente do bilinguismo de herança.

2.1. Barbosa e Flores (2011)

Importante para o meu presente estudo é o trabalho de Barbosa e Flores (2011), cuja metodologia serviu de base a este estudo. O trabalho é centrado justamente no mesmo tipo de informantes e na mesma propriedade gramatical que analiso. A sua pesquisa é baseada na competência de falantes de herança de segunda geração residentes na Alemanha, no que respeita à posição dos clíticos na variedade europeia do Português. Compara, por isso, a competência do grupo de herança, constituído por doze elementos com idades compreendidas entre os 7 e os 15 anos, com um grupo de controlo monolingue com o mesmo número de elementos e com idades semelhantes.

O estudo é desenvolvido com o objetivo de verificar como é que os jovens emigrantes de segunda geração, que têm o Português como LH e o Alemão como língua dominante, desenvolvem o conhecimento do sistema clítico português, e se o fazem de forma semelhante ao grupo monolingue. De forma a tratar os dados com mais detalhe, foram analisados fatores extralinguísticos como a idade dos falantes e a exposição formal à LH, uma vez que dentro do grupo havia bastante variação relativamente ao número de horas de aulas de Português já frequentadas pelos sujeitos até ao momento da entrevista (entre 0h a 1140h).

O teste, uma tarefa de ordenação de frases, era constituído por 18 frases (16 com clíticos, 4 delas com contextos de ênclise e 12 com elementos desencadeadores de próclise).

Numa abordagem inicial relativamente à percentagem de acerto dos contextos proclíticos, verifica-se que o grupo monolingue atinge uma média de 93.1%, ao passo que o grupo de herança regista uma percentagem de 50%. Dada esta disparidade significativa de resultados, as autoras partem para uma análise mais minuciosa, dividindo o grupo de herança por idades e posteriormente por nível de exposição ao ensino formal.

Com base no fator idade, são constituídos dois subgrupos, falantes mais novos (7-10 anos) e falantes mais velhos (12-15 anos). Relativamente à produção de próclise, o sub-grupo de falantes mais novos tem uma percentagem de acerto significativamente mais baixa do que os falantes mais velhos (26.4% contra 73.6% de acerto, respetivamente), revelando a importância do fator etário na aquisição da linguagem, sobretudo de uma LH.

Numa segunda etapa, as autoras dividem o grupo dos FH em três subgrupos de falantes de herança de acordo com o número de horas de frequência do curso extracurricular de Português Língua de Herança. Relativamente à variável ‘instrução formal', os resultados não revelam diferenças significativas entre os grupos, o que nos leva a concluir que a exposição ao ensino formal é um fator com menos peso na aquisição dos padrões de colocação clítica.

Em suma, os FH seguem o mesmo padrão e estratégias de aquisição que os FM, começando por usar a ênclise em vez da próclise em faixas etárias mais baixas, mas acabando por adquirir a próclise em idades mais avançadas. No entanto, esse processo dá-se de forma mais lenta e tardia, uma vez que o grupo de controlo, com 7 anos, mostra já um conhecimento robusto da cliticização, mas os FH não. O desempenho distinto dos dois grupos tem, portanto, origem na idade dos falantes e nas diferentes condições de input a que os FH estão sujeitos, sendo que a exposição formal parece não ter um impacto muito significativo nos resultados.

2.2. Costa e Lobo (2013)

Costa e Lobo (2013) estudaram a aquisição dos padrões de colocação dos pronomes clíticos por parte de crianças monolingues do PE. Os autores apontam que, no início do processo, as crianças portuguesas tendem a produzir elevadas taxas de omissão, derivadas de uma generalização da construção de objeto nulo (Costa e Lobo, 2006; 2013). Segundo os autores, esse comportamento linguístico prolonga-se, nos falantes de Português Europeu (ao contrário de outras línguas românicas), até idades tardias. Para estudar de forma mais sistemática a aquisição dos padrões de colocação do clítico, os autores construíram uma tarefa de produção induzida, aplicada a dois grupos distintos: crianças portuguesas monolingues em idade pré-escolar e escolar, entre 5 e 6 anos, e um grupo de controlo constituído por 20 adultos, com idades entre os 19 e os 40 anos. De um conjunto de 36 frases, 12 induziam a produção de ênclise, sendo que 8 eram orações simples e 4 orações coordenadas sem proclisador. As restantes 24 frases induziam respostas proclíticas, com elementos proclisadores cuidadosamente pensados (4 itens com negação; 4 com sujeitos negativos ‘ninguém'; 4 com sujeitos quantificados ‘todos'; 4 com advérbios ‘'; 4 com orações subordinadas completiva; 4 com subordinadas adverbiais causais).

Numa visão geral, verifica-se que os falantes praticamente não usam próclise quando é requerida a ênclise (99% de acerto em todos os grupos). No entanto, ocorre o contrário em todos os grupos, isto é, o uso de ênclise em vez de próclise. Nestes contextos, o grupo de 5 anos atinge 36% de acerto, o grupo de 6 anos regista 53.8% e os adultos respondem acertadamente com uma média de 88.8%.

Dada esta variação, os autores analisaram cada um dos contextos proclíticos, concluindo que existe uma ordem de aquisição dos distintos contextos de próclise, sendo a negação a primeira variante a ser adquirida e os sujeitos quantificados a mais tardia:

“negação > sujeitos negativos + orações completivas > advérbio já> orações adverbiais > sujeitos quantificados” (Costa e Lobo, 2013: 280,281).

De uma forma geral, o estudo serve para concluir que, com 6 anos, os falantes já não são suscetíveis à omissão dos clíticos, pelo menos no caso do clítico se, ainda que a generalização da ênclise se prolongue até idades tardias. Relativamente ao desenvolvimento díspar entre contextos proclíticos, os autores encontram resposta na hipótese de que a complexidade e a variação do sistema atrasa o desenvolvimento. Ou seja, Costa e Lobo (2013) consideram que “quanto mais simples são os traços sintáticos, mais estável é o sistema num determinado contexto e mais precoce é a aquisição” (p. 13). As estratégias de aquisição e as tendências de produção de determinado comportamento não resultam, neste caso, de variações no input, mas sim de fatores gramaticais e lexicais.

3. O presente estudo

Este estudo, cuja metodologia é de base experimental, é do tipo transversal, pois é constituído por uma análise comparativa de dois grupos, distintos no que concerne ao contexto de aquisição do Português. A recolha dos dados de cada falante foi feita num dado momento apenas, como discriminarei adiante, e a respetiva decomposição da informação será traduzida em resultados quantitativos e estatísticos, de forma a auxiliar a compreensão dos dados.

3.1. Os participantes sob investigação

Esta investigação reuniu um total de 36 participantes, com idades compreendidas entre os 7 e os 12 anos, distribuídos de forma equilibrada entre dois grupos: o grupo experimental de 18 falantes de herança e o grupo de controlo, que inclui 18 crianças monolingues portuguesas.

3.1.1. Falantes de herança

O grupo de falantes de herança é constituído por 18 falantes com uma média de idade de 9,33 (Desvio-padrão/DP = 1,50), 9 do sexo masculino e 9 do sexo feminino.

Dois dos participantes nasceram em Portugal (FH_3 e FH_7), tendo emigrado para França com cerca de 3 anos de idade, sem terem frequentado o infantário no país de acolhimento. Os restantes elementos do grupo nasceram em França, em Champigny-sur-Marne, cidade localizada a cerca de 12 km a leste de Paris, local onde foram testados. Cinco deles são emigrantes de segunda geração, sendo os restantes de terceira, uma vez que os avós já se haviam instalado em território francês e os pais (ou o pai/mãe) cresceram, também eles, em França.

O perfil sociolinguístico destes falantes foi traçado com base num questionário sociolinguístico. Relativamente à constituição familiar, cinco dos informantes têm pai e mãe portugueses (FH_3, FH_7, FH_8, FH_9 e FH_18), nascidos em Portugal, há um caso de família monoparental em que a mãe é portuguesa (FH_2), e cinco casos em que ambos os pais são luso-franceses, já nascidos em França sendo esses os informantes emigrantes de terceira geração (FH_10, FH_11, FH_13, FH_16 e FH_17). Nos restantes sete casos, um dos pais é francês e outro português. Isto tem implicações relativamente à(s) língua(s) utilizadas no seio familiar. Em todos os casos o Francês é a língua dominante, sendo a língua de socialização e interação diária fora de casa. Nestes sete últimos casos específicos, o contacto com o Português dá-se sobretudo na interação com os avós, pois estes falantes assumem falar em casa maioritariamente Francês. Apenas quatro informantes assumem usar maioritariamente o Português em casa (FH_7, FH_8, FH_9 e FH_18). Os restantes admitem utilizar ambas, ou mais até o Francês, nos casos em que um dos pais não sabe tão bem Português (FH_1, FH_2, FH_3, _FH_4, FH_5, FH_11 e FH_14).

Interrogados sobre o(s) domínio(s) do Português em que sentem mais reservas, foi quase unânime o domínio da produção escrita, no qual registei onze respostas. Curiosamente, apenas três dizem sentir dificuldades na produção oral, enquanto a compreensão auditiva e a leitura reúnem cinco registos cada. Isto comprova o prognóstico de Polinsky e Kagan (2007) que afirmam que os FH são melhores a ouvir, falar e ler do que a escrever na sua língua de herança.

Um outro fator coincidente no percurso da maioria do grupo é a escolarização em Português, que não se aplica apenas a dois dos informantes (FH_6 e FH_7), que planeiam inscrever-se em breve. Dos restantes, quatro frequentam a escola portuguesa há 1 ano (FH_2, FH_3, FH_4 e FH_14), seis há 2 anos (FH_1, FH_5, FH_8, FH_9, FH_11 e FH_12), dois há 3 anos (FH_10 e FH_17) e finalmente três crianças frequentam-na há cerca de 4 anos (FH_13, FH_15 e FH_16). O falante mais velho (FH_18) diz ter frequentado a escola portuguesa ao longo de 5 anos, tendo dado por concluído já esse processo.

Tendo em conta que estas aulas decorrem ao longo de 1h30m apenas um dia por semana, e que a professora tem que recorrer ao Francês em determinadas circunstâncias durante as aulas, conclui-se que, ainda que seja ótima a escola portuguesa para que estas crianças mantenham ativo o Português no seu quotidiano, não é de todo suficiente para desencadear por si só o processo de aquisição. Desta forma, depreende-se que o pouco contacto que estas crianças têm com o Português é maioritariamente informal.

3.1.2. Falantes monolingues

O grupo de controlo é constituído também por 18 falantes monolingues, 8 do sexo feminino e 10 do sexo masculino, numa faixa etária equivalente à dos falantes de herança (média = 9,22; DP = 1,44).

Todas as crianças residem no distrito de Braga, norte de Portugal, ainda que algumas sejam de Vila Nova de Famalicão e outras de Vizela. Através de um questionário sociolinguístico adaptado ao perfil dos falantes, foi possível apurar que todos os informantes nasceram em Portugal, nunca tendo vivido fora do país.

Na escola, todos os elementos do grupo de controlo adquirem já o Inglês como LE, no entanto não a usam fora do contexto formal.

3.2. Metodologia

O método experimental consiste num teste de produção oral com suporte escrito, apresentado individualmente a cada participante. Os participantes tinham a tarefa de encarnar uma personagem e organizar as suas falas, de forma a completar o diálogo entre um menino português e uma menina estrangeira, que tinha dificuldades em construir frases em Português.

O teste, constituído por 22 frases, foi adaptado do estudo de Barbosa e Flores (2011), contudo, dada a natureza de colocação clítica do francês, este teste incluiu mais contextos de ênclise, tendo o mesmo número de frases nos dois contextos, ênclise e próclise. A tabela 1 apresenta os contextos e respetivas frases experimentais.

 

Tabela 1. Contextos e frases experimentais.

Teste de produção oral

Frases-despiste

Sim, eu adoro a praia!

Eu também tenho fome.

Frases com ênclise

Imperativo afirmativo

Vai lá e pede-lhe desculpa.

Procura-o nos bolsos ou na bolsa.

Orações de sujeito pré-verbal

Sim, eles assustam-me.

Eu vi-a ali.

Sim, a minha mãe colocou-a na bolsa.

A minha mãe preparou-nos um belo lanche.

É verdade, ela prepara-nos lanches deliciosos.

Eu senti-me muito bem.

Está bem, eu levo-a.

Orações de sujeito nulo

Para a próxima (ø) trago-os.

Frases com próclise

Negação

Ó que pena, não os vi!

Não, isso não me agrada.

Advérbios aspetuais

Agora já os vi.

Talvez a minha mãe nos leve de carro ao parque.

Orações subordinadas relativas

A bola que me deste é muito pesada.

Sim, a pastelaria onde ela as compra é aqui ao lado.

Orações subordinadas completivas

Achas que a magoaste?

Ela perguntou se eu te levava para lanchar.

Quantificadores

Ninguém me oferece um novo.

Alguém o ofereceu ao meu irmão.

 

Os pronomes clíticos foram selecionados equitativamente a nível de caso, pessoa e número.

3.3. Questões de investigação

Uma característica crucial do bilinguismo é a convivência de dois sistemas linguísticos distintos na mente do falante, o que motiva o objetivo central deste estudo. Neste sentido, pretende-se essencialmente saber se, ao ter que recorrer a uma das gramáticas, o falante é capaz de inibir a outra, ou se permite a ocorrência de transferências de um sistema linguístico para o outro.

Sendo assim, este estudo parte de três questões de investigação (QI).

QI1: Os FH seguem o padrão de aquisição dos FM?

Segundo Costa e Lobo (2006), a aquisição nativa do sistema de clíticos no PE não é uniforme, passando por diferentes fases, começando por uma fase de omissão em idade pré-escolar que se prolonga até pelo menos até aos 6 anos. De seguida, há uma tendência para a produção maciça de clíticos que favorece fortemente o padrão enclítico, mesmo em contextos de próclise. O contexto proclítico acaba por ser adquirido mais tardiamente, e também de forma faseada, começando pela negação.

Se o padrão de aquisição dos falantes bilingues luso-franceses se assemelha à aquisição monolingue, os participantes generalizarão a ênclise, mesmo em presença de agentes proclisadores, o que por um lado demonstra que é capaz de inibir a gramática francesa, que generaliza a próclise, e por outro que não adquiriu ainda completamente esta propriedade gramatical.

QI2: Os FH são suscetíveis à ocorrência de transferência linguística?

Como foi sublinhado, o sistema de clíticos português não coincide com o francês a nível da colocação dos pronomes clíticos, uma vez que o primeiro tem três contextos possíveis (ênclise, próclise e mesóclise) e o segundo tem apenas dois (ênclise e próclise), sendo que os casos de ênclise neste último são muito restritos

Por isso, se ao longo do teste se verificar que o falante tende em colocar o clítico antes da forma verbal, mesmo numa construção SVO, esta tendência terá de ser motivada por transferência linguística, já que na aquisição do PE não existe a tendência de uso da próclise em vez da ênclise. Esta tendência comprovaria que os FH, nesta propriedade específica, não seriam capazes de inibir as regras da gramática dominante, o Francês, aquando da ativação da gramática de herança. Isto poderá comprovar, além da transferência linguística, a hipótese da variação linguística que estipula que a construção de uma gramática diferente por parte do FH é uma consequência do contacto de línguas e da variação que daí resulta.

QI3: A idade dos falantes influencia o seu desempenho linguístico?

A idade parece ser um dos fatores extralinguísticos mais influentes no processo de aquisição da linguagem. Muitos autores acreditam que existe uma fase ideal para aquisição de uma língua nativa, a partir da qual uma língua já não é adquirida seguindo o percurso de uma língua materna (Bley-Vronman, 1990). Tendo em conta esta hipótese do período crítico para aquisição das línguas, a faixa etária analisada neste estudo (7-12 anos) é a considerada fulcral no desenvolvimento de algumas das propriedades linguísticas mais complexas.

Se o fator etário for, de facto, importante, os falantes mais velhos (9-12 anos) demonstrarão um conhecimento mais estável da cliticização, ao passo que os mais novos (7-8 anos) revelarão uma taxa de variação mais elevada, tal como observado por Barbosa e Flores (2011) relativamente aos falantes bilingues luso-alemães.

Importante será também verificar o desempenho do grupo de controlo, confirmando, ou não, a proposta de idade de aquisição dos padrões de colocação dos clíticos em Português L1, avançada por Costa & Lobo (2013).

4. Resultados e tratamento dos dados

Os resultados serão apresentados conforme os dois contextos do teste, os contextos de ênclise e os de próclise

4.1. Contextos de ênclise

São 10 as construções SVO que requerem a colocação enclítica. Em primeiro lugar, serão apresentadas as percentagens de acerto do grupo de controlo neste contexto, justamente para estabelecer um termo de comparação relativamente ao que é expectável pelo grupo de herança.

O gráfico 1 apresenta a taxa de acerto nos contextos de ênclise dos falantes monolingues, com indicação das percentagens de troca de ênclise por próclise, bem como a ocorrência de outro tipo de respostas, nos quais se incluem omissões, construções frásicas sem sentido e desistências.

 

 

Como ilustra a representação gráfica, os resultados atingidos pelo grupo de controlo nos contextos de ênclise são relativamente altos, perfazendo uma média de acerto de 82.2%, variando entre 40% e 100% (DP= 19.57).

Existe alguma variação, sobretudo nos falantes mais novos (7-8 anos), cuja percentagem de acerto varia entre os 40% e os 80% (FM_1 ao FM_6). Os falantes mais velhos (9-12 anos) apresentam taxas de acerto de ênclise mais elevadas, variando entre os 80% e os 100%. Seis participantes apresentam 100% de acertos neste contexto (FM_8, FM_10, FM_14, FM_15, FM_16 e FM_18). Assim, depreende-se que os falantes mais velhos têm um conhecimento sólido da ênclise, enquanto os mais novos parecem ainda apresentar um conhecimento instável desta propriedade.

Contrariamente ao que acontece no estudo de Barbosa e Flores (2011), no qual se verifica que não há permuta do contexto enclítico pelo proclítico nos dois grupos, a variação tem origem sobretudo em frases como «Sim, eles assustam-me», «Eu vi-a ali.» e «A minha mãe colocou-a na bolsa», havendo algumas substituições por próclise. Contudo, ainda que este comportamento linguístico seja um pouco surpreendente por parte do grupo de controlo, esta variação decorre principalmente no desempenho de falantes mais novos, onde há registo de 17 trocas deste tipo, contra 5 registadas por falantes mais velhos. Concretamente, o grupo monolingue apresenta uma média de 12.2% no que respeita ao uso de próclise nos contextos de ênclise. Há ainda o registo de uma omissão do clítico (FM_13), na frase «Procura-o nos bolsos ou na bolsa.», sendo essa a única ocorrência de omissão no teste de todos os elementos do grupo de controlo.

O grupo de herança, por sua vez, revela resultados significativamente distintos, ilustrados no gráfico 2.

 

 

A média de acerto neste grupo é de 33.3%, significativamente mais baixa do que a média do grupo de controlo, com uma variação entre 10% e 60% (DP= 16.8). O subgrupo mais novo (FH_1 ao FH_7) regista uma taxa de acerto entre os 10% e os 30%, e o subgrupo mais velho acerta entre 10% e 60%, havendo, por isso, muita variação.

Os falantes com maior percentagem de acerto neste contexto (FH_7, FH_11 e FH_15) são os participantes que têm mais contacto com o Português no seu quotidiano. Esse facto explica, com certeza, as taxas de acertos relativamente mais altas.

Com resultados de 60% encontramos apenas dois falantes (FH_12 e FH_17), que possuem entre 2 a 3 anos de instrução formal em Português, no entanto assumem falar apenas Francês em casa, o que, neste caso, relativiza a importância do fator da exposição informal à LH, parecendo por isso mais decisivo para os resultados um input formal. Contudo, se a professora assume não abordar este conteúdo gramatical nas aulas, e se o FH_16, que contabiliza 3 anos de instrução formal, atinge uns 30% equivalentes à mesma média do FH_14, que tem apenas 1 ano, e do FH_6, que nem sequer é escolarizado na LH, talvez a exposição formal à LH não pese da mesma forma como o fator etário, do qual tratarei posteriormente.

Numa visão geral do teste, além de várias construções agramaticais, praticamente todos os FH incorrem no erro de uso de próclise em contextos enclíticos. As frases mais problemáticas neste sentido para o grupo de herança foram «A minha mãe colocou-a na bolsa.», a par de «Sim, eles assustam-me.» e de «Eu senti-me muito bem.», nas quais se registaram nove a dez trocas (num total de 18 casos possíveis) de ênclise por próclise por parte de todos os FH em cada frase. As frases «Procura-o na bolsa ou nos bolsos.» e «Está bem, eu levo-a.» foram as que registaram menos hesitações e erros deste tipo. A percentagem total de substituições de ênclise por próclise ronda uma média de 38.8%, o que perfaz mais do dobro da mesma variação do grupo monolingue.

No que concerne aos contextos de imperativo afirmativo, verifica-se um comportamento correto de colocação de ênclise por parte dos falantes de herança em apenas em 27.8% dos casos na frase «Vai lá e pede-lhe desculpa.». A substituição de ênclise por próclise ocorre com uma média de 33.3%. Na frase «Procura-o nos bolsos ou na bolsa.», o desempenho não é melhor, pelo que se regista 22.2% de acerto da posição enclítica por parte do mesmo grupo, e também 22.2% de substituição por próclise. No entanto, como referirei adiante sobre esta frase, os falantes poderão ter sentido mais problemas lexicais do que dúvidas relativas à posição do clítico. Ainda assim, o seu desempenho não parece sofrer influência do Francês neste caso, uma vez que o imperativo afirmativo é o único caso do Francês que induz a ênclise. Se os falantes recorrem mais à próclise neste contexto, isso significa que generalizam esse posicionamento do clítico.

Com base nestes primeiros dados, podemos afirmar que os FM têm um conhecimento bem mais estável da cliticização enclítica, ao contrário dos FH que, pela constante troca de ênclise por próclise, nos levam a prognosticar que são suscetíveis ao fenómeno de transferência linguística, pois recorrem com frequência a uma ordem típica da sua língua dominante. No entanto, é também possível observar que duas das frases onde o grupo de herança regista mais variação coincidem com as mesmas do grupo de controlo, o que nos permite concluir que ambos os grupos são suscetíveis a variação nesses contextos.

Para analisar se a diferença entre os grupos de falantes monolingues e falantes de herança é estatisticamente relevante, recorremos a testes não paramétricos no programa SPSS[1]. Um teste Mann-Whitney revela que de facto as diferenças entre o grupo de FM e o grupo de FH são estatisticamente significativas (U 0 13,000, p < 0.001).

4.2 Contextos de próclise

O gráfico 3 mostra os resultados do grupo de controlo nos contextos de próclise, representando as médias de acerto, de troca por ênclise e ainda de outros contextos.

 

 

A média de acerto registada pelos falantes nativos no contexto proclítico é de 72.2%, relativamente mais baixa do que a assinalada na ênclise, o que não é surpreendente, uma vez que a próclise é um contexto mais complexo e de consolidação mais tardia do que a ênclise (Costa e Lobo, 2013). Para verificar se as diferenças no desempenho deste grupo em ambas as condições são significativas, foi aplicado um Teste de Wilcoxon, o qual revela que as diferenças entre ambas as construções são de facto estatisticamente significativas (Z = - 2,159, p = 0,031).

As taxas de acerto variam entre 40% e 100%, sendo que há apenas três informantes, entre os 10 e os 12 anos, que produzem próclise em todos os contextos proclíticos. Quatro falantes atingem os 90% de uso correto, tendo estes entre 8 e 11 anos, sendo que os restantes falantes mais novos (FM_1, FM_2, FM_3, FM_5 e FM_5) não vão além dos 50% de acerto. O desvio-padrão registado é de 21.57.

A substituição da próclise pela ênclise nestas frases regista-se em maior número do que nos casos de ênclise, com cerca de 21,6% de ocorrências de troca, sobretudo nas frases «Ela perguntou se eu te levava para lanchar.», «Não, alguém o ofereceu ao meu irmão.» e «Sim, a pastelaria onde ela as compra é aqui ao lado.», nas quais mesmo os falantes mais velhos apresentam algumas hesitações. Ainda assim, a taxa de variação continua a ser mais elevada no grupo de falantes mais novos (FM_1 ao FM_6).

O gráfico 4 indica a taxa de desvios nos contextos proclíticos no grupo de falantes monolingues. Como se pode ver, regista-se maior taxa de erro nas frases com os quantificadores indefinidos ‘ninguém' e ‘alguém', confirmando, assim, a observação de Costa e Lobo (2013), que sugerem ser esse o contexto adquirido mais tardiamente.

 

 

O gráfico 5 mostra os resultados do grupo de FH.

 

 

A média de acerto do grupo de herança é de 43.9%. Apesar de este valor ser mais elevado do que a taxa de acertos nos contextos enclíticos, um Teste de Wilcoxon mostra que as diferenças entre ambas as condições não são estatisticamente significativas (Z = - 1,358, p = 0,175), ao contrário do que sucede no grupo FM. Os resultados variam entre 0% e 90%, revelando muitas dissemelhanças entre os elementos do grupo. O desvio-padrão é de 29.13.

Duas das crianças, ambas com 8 anos (FH_4 e FH_7), não produziram corretamente nenhuma frase proclítica, o que estará possivelmente na base do contacto mais corrente que têm com o Português do que outros informantes, assumindo a ênclise como posição que é adquirida primeiro na aquisição L1 do PE (Costa & Lobo, 2013).

Da mesma forma, o falante FH_7, que comunica unicamente em Português em casa, revela uma maior taxa de troca de próclise por ênclise, pois embora perceba perfeitamente o sentido das frases, assume o padrão enclítico como o correto, mesmo em presença de elementos proclisadores.

No caso do falante FH_4, a percentagem de erro é proveniente sobretudo de contextos agramaticais em que o falante ordena as frases de forma completamente aleatória, provavelmente devido a dificuldades lexicais.

Dos restantes casos, apenas um falante (FH_18), com 12 anos, atingiu os 90% de acerto. Também este falante admite usar maioritariamente o Português em muitas situações diárias. O FH_18 apresenta um comportamento distinto do descrito no FH_4, por exemplo, uma vez que a idade parece, na verdade, intervir na aquisição desta propriedade. Veja-se o grupo de falantes mais novos (FH_1 ao FH_7), que não ultrapassa uma percentagem de acerto de 60%, sendo que apenas um falante atinge esse valor, estando os outros bastante aquém, comparativamente com o subgrupo mais velho. A média de acerto nos contextos de próclise por parte dos falantes mais novos é de 20%. Por outro lado, o subgrupo com 9-12 anos (FH_8 ao FH_18) regista percentagens acima dos 30%, com uma média de acerto de 59%.

É visível, além disso, que o grupo mais novo também produz muitas omissões, desistências e construções frásicas sem sentido, mostrando que os participantes não se sentem à vontade com esta propriedade da sua LH. Estas respostas desviantes mostram ainda que apresentaram dificuldades especialmente na realização da tarefa, uma vez que produziram respostas absolutamente impensáveis, que certamente não realizam no quotidiano. É o caso de, por exemplo, * Onde ela compra é aqui ao lado sim a pastelaria as.

Este grupo também apresenta a troca de próclise por ênclise em frases como «Sim, a pastelaria onde ela as compra é aqui ao lado.», «Talvez a minha mãe nos leve de carro ao parque.» e «A bola que me deste é muito pesada.». Em geral, este tipo de variação ocorreu no grupo de herança com uma média de 23.8%, resultados significativamente mais baixos do que a troca de ênclise por próclise por parte do mesmo grupo, o que, uma vez mais, indicia a ocorrência de transferência linguística no desempenhodestes informantes.

O gráfico 6 mostra as percentagens de produção desviante nas diferentes condições proclíticas, que consiste em permutas entre próclise e ênclise. Aqui encontramos diferenças relativamente ao outro grupo.

 

 

Ao contrário do grupo de controlo, que apresenta mais dificuldades nas frases em que o elemento proclisador é um quantificador e menos nos contextos de negação, o presente grupo apresenta um comportamento um pouco divergente, uma vez que revela mais variação nas orações subordinadas, particularmente nas relativas, e menos nas expressões quantificadas. De comum há, por outro lado, taxas mais diminutas de variação nos contextos de negação que, como Costa e Lobo (2013) preconizam, é o primeiro contexto de próclise a ser adquirido pelos falantes L1, e pelos vistos também pelos FH.

Estes valores de variação foram, no entanto, calculados tendo por base apenas as trocas de próclise por ênclise, pelo que os restantes contextos serão analisados seguidamente.

4.3. Outros contextos

Dadas as percentagens de variação entre os dois grupos, é insuficiente dizer que esta se deve unicamente à alternância entre ênclise e próclise. Houve, da mesma forma, registo de frases com omissões do clítico e desistências.

As permutas entre ênclise e a próclise parecem atestar que alguns falantes ainda não dominam totalmente esta propriedade gramatical. No entanto, perante a dúvida da ordem correta das frases, alguns falantes cometeram outro tipo de erros, como construções frásicas sem sentido ou omissões do clítico.

No que ao grupo de controlo diz respeito, estes erros foram naturalmente menos frequentes. Ainda assim, numa visão geral, há a ocorrência de 1 omissão, 10 desistências, isto é, os informantes passaram as frases à frente, pois não sabiam produzir a frase. Dez construções eram agramaticais, provocadas pela colocação aleatória do clítico. Isto constitui uma percentagem de variação de 5.5% nos contextos de ênclise, sobretudo na frase «Procura-o nos bolsos ou na bolsa.», e de 6.1% nos contextos de próclise, com mais incidência na frase «Sim, a pastelaria onde ela as compra é aqui ao lado.». É importante referir que, uma vez mais, este tipo de variação ocorreu maioritariamente no grupo dos falantes mais novos (7-8 anos), sendo que no dos mais velhos (9-12 anos) foram registadas apenas 1 desistência e 1 omissão.

Relativamente aos FH, estes números são claramente mais elevados, perfazendo um total de 28 omissões, 10 desistências e 70 colocações agramaticais de clíticos, representando assim uma média de variação de 27.7% na ênclise e 32.2% na próclise. A taxa de variação destes contextos é mais elevada na faixa etária mais juvenil. Por um lado, as frases enclíticas em que o registo de variação está mais patente são «Vai lá e pede-lhe desculpa.» e «Procura-o nos bolsos ou na bolsa.», sendo esta última coincidente com a frase que causou mais dificuldades deste tipo ao grupo de controlo. A nível de próclise, as frases mais problemáticas neste aspeto foram as negativas «Ó que pena, não os vi!» e «Não, isso não me agrada».

As hesitações dos FH são justificadas por dificuldades lexicais, pois alguns falantes bilingues desconheciam o significado de vocábulos e expressões como colocou, pastelaria e ó que pena. Além disso, penso que a frase «Procura-o nos bolsos ou na bolsa.» terá confundido alguns falantes, pois parecem ter confundido o clítico ‘o' com a conjunção coordenativa disjuntiva ‘ou', omitindo o pronome ou produzindo frases como «*Procura ou nos bolsos o na bolsa.».

No caso das frases negativas, a repetição do advérbio de negação «Não, isso não me agrada.» parece também ter sido problemática e estimulado maior percentagem de erro.

Relativamente aos clíticos colocados aleatoriamente na frase, esse foi um dos principais motivos de erro verificado neste teste, sendo curiosa a tendência de, na dúvida, colocar o clítico no início ou no fim da frase, ou mesmo de utilizar uma estrutura de redobro do clítico como em «*A minha mãe a colocou-a na bolsa.». Isto acontece principalmente no desempenho dos falantes mais novos, não só bilingues, mas também monolingues, o que nos remete para a importância de uma análise por grupos etários. Apesar de serem nítidas as diferenças entre os dois grupos investigados, é importante considerar não só a performance, mas também os fatores extralinguísticos. A fim de analisar esse tipo de influência, segue-se uma secção dedicada ao fator etário e à natureza do input, respetivamente, especialmente direcionadas para o grupo de herança.

4.4. Idade

Como disse, ambos os grupos sob investigação estão numa faixa etária equivalente, compreendida entre os 7 e os 12 anos, escolhida propositadamente, já que é uma faixa etária considerada capital não só no desenvolvimento linguístico, como na sua perda (Flores, 2010). Nesta linha de pensamento, esta secção é pertinente, uma vez que nos permitirá discernir se os resultados dos falantes mais velhos são de alguma forma mais positivos, determinando assim que a idade é um fator importante na aquisição de certas competências por parte dos falantes de herança.

A fim de comparar o efeito do fator idade, ambos os grupos foram divididos em dois subgrupos, falantes mais novos (7-8 anos) e falantes mais velhos (9-12 anos).

No grupo monolingue, o primeiro subgrupo é constituído pelos falantes FM_1 ao FM_6, e o segundo subgrupo tem na sua constituição os restantes FM_7 ao FM_18. Os resultados referentes a este grupo são apresentados no gráfico 7. Para a comparação estatística dos resultados obtidos pelos subgrupos, optei novamente por correr Testes Mann-Whitney, agora com Correção de Bonferroni, uma vez que foi necessário comparar 4 subgrupos. Assim, o ponto de corte do valor p passou a ser de 0,013.

 

 

O gráfico 7 mostra que as médias de acerto no segundo subgrupo são visivelmente mais elevadas do que as do primeiro. É de igual modo manifesto um desenvolvimento mais positivo nos contextos enclíticos em ambos os subgrupos, o que prova que, para os falantes monolingues, a ênclise é um contexto menos complexo. Ainda assim, os dados revelam também algum desenvolvimento do primeiro subgrupo para o segundo, o que comprova que entre os 7 e os 12 anos, as crianças portuguesas ainda se encontram a desenvolver o seu conhecimento dos contextos que requerem a próclise. Dois Testes Mann-Whitney comprovam que a diferença entre os falantes monolingues mais novos e os mais velhos é muito significativa no caso da ênclise (U = 12,000, p = 0,009), mas fica acima do ponto de corte no caso da próclise (U = 17,500, p = 0,039).

Por sua vez, também o grupo de herança foi dividido com base nos mesmos critérios, tendo o grupo de falantes mais novos sete falantes (FH_1 a FH_7), e o grupo de falantes mais velhos os restantes (FH_8 a FH_18). O gráfico 8 agora apresentado ilustra justamente esta divisão de resultados, com base nas médias percentuais de acerto de cada informante testado.

 

 

É muito interessante verificar que a diferença entre os dois subgrupos no caso da ênclise não é estatisticamente significativa (U =18,500, p = 0,064), ao contrário do que observamos no grupo de FM mais novos. Pelo contrário, nos contextos de próclise, o desempenho do grupo de FH mais velhos é significativamente superior ao dos mais novos (U = 8,500, p = 0,006). Estes resultados mostram que, no caso das crianças bilingues, o desenvolvimento dos seus conhecimentos de próclise é muito mais acentuado que o conhecimento da ênclise.

Ainda que sejam percentagens abaixo dos resultados monolingues, podemos comprovar que os resultados dos FH a partir dos 9 anos são mais elevados do que os resultados dos falantes com 7 e 8 anos, quer na ênclise, quer na próclise.

No entanto, olhando para as percentagens de acerto de ambos os contextos no desempenho dos falantes mais velhos, é percetível um melhor desempenho na próclise do que na ênclise, o que não é surpreendente se associarmos esse desempenho à ocorrência de transferência linguística procedente do Francês, língua dominante dos FH. Ainda que pareçam seguir o mesmo padrão de aquisição que o grupo monolingue, à medida que vão adquirindo os contextos de próclise, nos FH essa aquisição parece ser reforçada pelo padrão do sistema de clíticos do Francês, onde a próclise é claramente dominante. Neste sentido, encontramos casos de transferência numa estrutura linguística comum entre os dois sistemas linguísticos.

De facto a comparação estatística entre os subgrupos de FM e FH mostra que estes subgrupos apenas não diferem significativamente no caso dos falantes mais velhos no contexto proclítico (U = 20,000, p = 0,024), ou seja, com o avançar da idade, na próclise, os falantes de herança conseguem atingir um desempenho muito próximo dos falantes monolingues.

No entanto, os falantes mais novos comportam-se de maneira antagónica, apresentando uma taxa de acerto ligeiramente mais elevada na ênclise, o que sugere que em estádios iniciais de aquisição da colocação clítica, os FH seguem o mesmo padrão que os FM. Assim sendo, embora os níveis de transferência linguística não sejam tão acentuados, os contextos de próclise vão sendo gradualmente adquiridos, tal como no processo de aquisição monolingue, ainda que de forma mais morosa.

Nos contextos de ênclise o desempenho dos falantes também melhora com a idade, ainda que não tão nitidamente como na próclise. Isto significa que parece haver influência positiva no caso da próclise e influência negativa no caso da ênclise. Este comportamento é distinto entre FM e FH, uma vez que nos FM mais velhos o desempenho nos contextos ênclise é melhor do que nos de próclise, e nos FH passa-se o contrário.

Em suma, após esta análise, é possível afirmar que o fator etário tem um papel importante na competência dos falantes, quer monolingues, quer bilingues, na medida em que um falante bilingue ou monolingue com 12 anos parece ter já um conhecimento relativamente estabilizado do sistema de clíticos de PE.

4.5. Exposição à língua de herança

Se tivesse em conta o uso diário doméstico que os FH fazem da LH, bem como o número de horas de escolarização em Português até ao momento da entrevista, teria que separar o grupo em dois, sendo a sua distribuição bastante desigual, uma vez que apenas 4 falantes (FH_7, FH_8, FH_9 e FH_18) pertenceriam ao grupo com mais input, visto que são os únicos que dizem falar exclusivamente a LH no seio familiar, e três deles têm ou tiveram entre 2 a 5 anos de exposição formal.

Na sequência dessa dificuldade de subdividir o grupo de herança com base nas condições de input que recebem, e após uma breve análise de casos pontuais, concluí que a instrução formal parece não ter muito peso sem o suporte do contacto naturalístico, como comprovam os seguintes casos:

• Os falantes FH_1, FH_2 FH_4, com 7 e 8 anos, apesar de terem entre 1 a 2 anos de contacto com a LH na escola, revelam resultados pouco positivos, que variam entre 0% e 30% na ênclise e na próclise, advindos provavelmente do escasso contacto que têm com o Português em casa, pois usam apenas o Francês;

• O FH_5, com 8 anos, por sua vez, contabiliza também 2 anos de instrução formal até ao momento da entrevista, mas revela resultados mais positivos (30% na ênclise e 60% na próclise), pois além de ter mãe francesa e pai português, usando um pouco a LH em casa, tem uma irmã mais velha, que também frequenta a escola portuguesa, pelo que isso estimula a comunicação entre as duas na LH;

• O FH_6, com 8 anos, assume nunca ter frequentado a escola portuguesa, no entanto, sendo filho de mãe francesa e pai português, e estando o avô paterno presente no agregado familiar, convive diariamente com as duas línguas, o que creio que o terá ajudado na produção do teste, com 30% de acerto na ênclise e 40% na próclise;

• Os falantes FH_10, FH_13 e FH_16, com 10 e 11 anos, apesar de terem um número de horas de aulas que varia entre 149h e 198h, 3 e 4 anos respetivamente, atingem resultados que não passam além de 30% na produção enclítica, o que se justifica com o baixo contacto naturalístico com a LH, uma vez que estes informantes assumem falar apenas Francês com a família;

• O mesmo não se passa com o FH_14, de 10 anos, que tem 50h de instrução formal (1 ano), e assume usar ambas as línguas em casa, conseguindo uma percentagem de acerto de 30% em contextos enclíticos e 70% em contextos proclíticos.

Como vemos, este é um critério menos uniforme, que não me permite portanto tirar ilações de forma tão categórica como acontece com o fator etário. Ainda assim, é óbvio que ter o estímulo do contacto formal com a LH é mais benéfico do que não ter estímulo algum. Contudo, esse não é um fator que vá alterar em grande medida os resultados, tendo, a meu ver, mais importância o contacto doméstico, até porque, como mencionei anteriormente, a colocação do pronome clítico não é um conteúdo abordado pelo plano curricular das aulas de Português destes falantes.

4.6. Comparação entre falantes de herança luso-franceses e falantes de herança luso-alemães

De uma forma geral, fazendo uma abordagem comparativa entre o presente estudo e o de Barbosa e Flores (2011) anteriormente referido, podemos sintetizar aspetos comuns e aspetos dissemelhantes, sendo no entanto mais nítidas as similaridades do que os contrastes entre os dois grupos de falantes de herança.

Os FH lusodescendentes residentes na Alemanha do estudo de Barbosa e Flores (2011) têm em comum com os luso-franceses do meu estudo um nível de proficiência distinto dos FM compreendidos na mesma faixa etária, ainda que a faixa etária analisada pelas autoras seja um pouco mais abrangente, uma vez que os falantes mais velhos têm até 15 anos.

Quanto à próclise, contexto ao qual dedicaram mais atenção, os FM do seu estudo atingem 93% de acerto, ao passo que os analisados aqui atingem 72%, um resultado relativamente mais baixo. Os FH, por sua vez, têm resultados mais aproximados, sendo que os luso-alemães contabilizam 50% de acerto e os franceses perfazem uma média de 43.8%.

Por outro lado, os FH alemães empregam a ênclise em contextos de próclise, sendo que o inverso não se verifica. Este comportamento estará na base do facto de o Alemão ser uma língua sem clíticos, o que não permite que os falantes estabeleçam um termo de comparação entre sistemas linguísticos. Acabam por adquirir esta propriedade gramatical partindo do zero, o que não se passa com os franceses, que usam ênclise nos contextos de próclise, mas também fazem o inverso, facto que advém da influência da língua dominante.

Ainda no mesmo estudo, as autoras comentam a importância do fator etário, que parece ser decisivo, na medida em que os FH que têm entre 7 e 10 anos de idade revelam uma percentagem de acertos na próclise significativamente menor (26.4%) do que a dos falantes com idades entre os 12 e os 15 anos (73.6%), o que também se verifica na minha análise. Ainda assim, as médias que obtive são mais baixas de parte a parte, uma vez que os FH mais novos atingiram uma média de 20%, enquanto os mais velhos acertam em 59% dos casos.

Finalmente, no que concerne à instrução formal, este parece ser o fator com menos impacto significativo no desempenho dos falantes de ambos os estudos, uma vez que os falantes alemães com menos input formal têm um melhor desempenho linguístico que outros colegas com mais horas de aulas contabilizadas. No presente estudo decorre exatamente o mesmo, sendo que a análise do desempenho individual dos falantes segundo esse fator não é clara nem uniforme.

5. Discussão e conclusão

Os dados empíricos obtidos permitem agora tecer algumas considerações que respondem ao objetivo primário da minha análise, cujos resultados quantitativos se encontram compactados na seguinte tabela.

 

Tabela 2. Condensação dos resultados obtidos pelos dois grupos sob análise.

FM

FH

Ênclise

Média de acerto

82.2%

33.3%

Troca ênclise – próclise

12.2%

38.8%

Média de erro (outros contextos)

5.5%

27.7%

Próclise

Média de acerto

72.2%

43.8%

Troca próclise – ênclise

21.6%

23.8%

Média de erro (outros contextos)

6.1%

31.1%

Média de acerto por idade

7-8 anos

Ênclise

70%

24.3%

Próclise

62.2%

20%

9-12 anos

Ênclise

94.4%

39%

Próclise

82.2%

59%

 

De forma sumária, verifica-se que as médias de acerto do grupo de controlo são, em todos os casos, superiores, com mais destaque no contexto de ênclise. Embora ambos os grupos incorram no erro de troca entre contextos enclíticos e proclíticos, os FH apresentam mais variação nesse aspeto, sobretudo nas frases enclíticas, em que usam a próclise com mais frequência. No contexto proclítico, as médias de troca entre os dois grupos são até bastante aproximadas. No que respeita a outros contextos, a média de erro dos FH é naturalmente mais notória, traduzindo-se, na maioria dos casos, em dificuldades lexicais, omissões e desistências. Relativamente às médias de acerto por idade, são visíveis resultados mais proficientes no grupo mais velho, quer monolingue, quer bilingue, sendo que os resultados monolingues são proporcionais, na medida em que, tanto o grupo mais novo como o mais velho acertam mais na ênclise do que na próclise. Pelo contrário, no grupo de herança, os falantes mais novos apresentam menos dificuldades na ênclise e o grupo mais velho na próclise.

Após um apanhado geral dos resultados, podemos, neste momento, responder às questões de investigação colocadas anteriormente.

QI1: Os FH seguem o padrão de aquisição dos FM?

Em primeiro lugar, verifica-se que há taxas de omissão mais elevadas no grupo dos FH do que no grupo monolingue, o que se assume como dificuldade na tarefa. Além de dificuldades de cariz lexical, acredita-se que os FH, perante a dúvida quanto à posição correta do clítico na frase, omitiam-no com medo de errar.

Relativamente ao favorecimento de ênclise como comportamento tipicamente monolingue, mesmo em contextos em que é induzida a próclise, podemos dizer que esta estratégia de aquisição parece ocorrer também no desempenho do grupo de herança, mas não com resultados equitativos aos do grupo de controlo. Os FM fazem mais trocas de próclise por ênclise (21.6%) do que o contrário, ou seja, recorrem mais à ênclise. Os FH, apesar de incorrerem nessa troca também, têm uma média de permuta de ênclise por próclise maior (38.8%), recorrendo mais à próclise, o que nos remete para casos de transferência linguística, uma vez que no Francês a próclise é o padrão predominante.

Ainda assim, faz sentido dizermos que os FH seguem um percurso de aquisição semelhante aos FM, pelo menos em estádios iniciais de aquisição, uma vez que os falantes de herança mais novos (7-8 anos) parecem acertar mais na ênclise do que na próclise, tal como os FM. Isto é um sinal de que, até determinada idade, a aquisição é feita justamente nos mesmos moldes. Contudo, a presença do Francês vem alterar um pouco esse paradigma, pois à medida que vão aprendendo os contextos de próclise, os FH vão demonstrando mais efeitos de transferência linguística. Este efeito mais visível de transferência poderá dever-se ao facto de a próclise ser uma estrutura comum aos dois sistemas linguísticos do falante. Estamos, por isso, na presença de reforço de uso de uma propriedade também existente na língua dominante. Além disso, como apontam Costa e Lobo (2013), alguns contextos de próclise são adquiridos mais cedo do que outros por parte de ambos os grupos, ainda que a aquisição do grupo de herança se desenvolva de forma mais lenta e tardia. Isto confirma ainda que a pobreza de estímulo atrasa o processo de aquisição, mas não o impede.

QI2: Os FH são suscetíveis à ocorrência de transferência linguística?

Como foi dito anteriormente, os FH incorrem mais nas trocas de ênclise por próclise do que o contrário, o que tem na sua origem um fenómeno de transferência linguística. Isto comprova que os FH, nesta propriedade específica, não são capazes de inibir as regras da gramática dominante aquando do uso da gramática de herança.

QI3: A idade dos falantes influencia o seu desempenho linguístico?

Nitidamente sim, o fator etário tem um papel de relevo no desempenho linguístico dos falantes, não só nos monolingues, mas sobretudo nos bilingues. Os FH mais novos comportam-se de maneira um pouco diferente do grupo mais velho, no sentido de que apresentam percentagens de acerto mais elevadas na ênclise do que na próclise, demonstrando que há um desenvolvimento significativo de um grupo para o outro. Os falantes mais velhos apresentam taxas de acerto mais elevadas do que o primeiro grupo, quer na ênclise, quer na próclise, o que atesta que a idade é aliada de uma proficiência com mais sucesso. No mesmo sentido apontam os resultados dos FM, cujas diferenças das taxas de acerto entre faixas etárias são também bastante evidentes, sendo demonstrado um conhecimento mais estável desta competência pelos falantes mais velhos, e com mais variação por parte do outro grupo.

Em suma, a exploração desta área linguística foi, pessoalmente, de extremo interesse. Creio que esta análise poderá ter revelado bastante sobre a mente dos falantes bilingues, que é bem mais complexa do que aquilo que qualquer estudo possa demonstrar. Confirmou-se que a inibição de um sistema linguístico aquando do uso de outro mais estável pode efetivamente ser um processo difícil, sobretudo quando os diferentes sistemas linguísticos que convivem na mente dos falantes têm a mesma propriedade gramatical mas com regras distintas.

Mais do que procurar respostas sobre o mundo do bilinguismo de herança e os processos biológicos a ele inerentes que me pudessem valer conclusões inovadoras, procurei essencialmente aprender, equacionando conceitos e teorias sobre as quais tinha um conhecimento limitado. Tentei, por isso mesmo, conciliar a teoria estudada com a prática experimental que desenvolvi, o que, confesso, sinto que enriqueceu indescritivelmente o meu conhecimento sobre esta área. Esta experiência talvez me venha a estimular e abrir pistas de trabalho para projetos futuros, como por exemplo um estudo experimental da mesma estirpe com falantes de uma língua segunda.

 

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Notas

[1] A opção por testes não paramétricos ao longo deste estudo deve-se ao facto de não se verificar homogeneidade das variâncias nem distribuição normal da amostra.

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