SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.29 número1Formas de realização do pronome clítico em português europeu por falantes de herança luso-francesesSobre as origens de [u] átono no Português europeu contemporâneo: variação, mudança e dimensões sociocognitivas índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.29 no.1 Braga  2015

 

Algumas considerações em torno das interpretações da construção ir + infinitivo com imperfeito [1]

Some considerations about the interpretation of the ir (‘go') + infinitive construction

 

Luís Filipe Cunha*

*Centro de Linguística da Universidade do Porto, Portugal.

luisfilipeleitecunha@gmail.com

 

RESUMO

O presente trabalho procura dar conta de diferentes interpretações associadas à estrutura ir + Infinitivo com Imperfeito no Português Europeu. Em particular, será feita uma distinção entre uma leitura quantificacional (habitual ou frequentativa), uma leitura prospetiva e uma leitura que designaremos como “hipotética”. Observaremos que a primeira destas interpretações exibe comportamentos linguísticos muito diversos das demais, nomeadamente no que respeita a restrições aspetuais e de agentividade e no que toca à possibilidade de projeção de sintagmas preposicionais encabeçados por a ou por para, pelo que argumentaremos em favor da existência de duas configurações autónomas para a sequência sob análise, uma em que ir preserva as suas propriedades lexicais de origem e outra em que funciona como um operador eminentemente temporal, podendo também veicular informação de natureza modal.

Palavras-chave: semântica, tempo, ir + infinitivo, imperfeito.

 

ABSTRACT

This paper aims to account for the different interpretations that can be associated to the structure ir (‘go') + Infinitive in European Portuguese. In particular, we will distinguish between a quantificational (habitual or frequentative) reading, a prospective reading and an interpretation that we will label “hypothetical”. We will see that the quantificational reading differs significantly in its linguistic behaviour from the other ones, namely in the aspectual and animacy restrictions it imposes and concerning the possibility of projection of a Prepositional Phrase headed by a (‘to') or para (‘to'). So we will argue in favour of the existence of two distinct configurations involving ir (‘go') + Infinitive in the Imperfect, one in which ir (‘go') retains its basic lexical properties and another in which it primarily behaves as a temporal operator, carrying also modal information.

Keywords: semantics, tense, ir (‘go') + Infinitive, Imperfect.

 

0. Introdução

Com base na observação de exemplos em que intervêm o Pretérito Perfeito e o Presente do Indicativo, em Cunha (2014) foi colocada a hipótese de que existem, de facto, duas estruturas diferentes envolvendo ir + Infinitivo – uma em que ir assume, em grande medida, o seu estatuto lexical pleno e outra em que funciona como um semiauxiliar temporal de posterioridade.[2]

De uma forma muito sucinta, diremos que, quando, na configuração sob análise, ir preserva algumas das propriedades semânticas básicas que o caracterizam enquanto item lexical, (i) este verbo não veicula qualquer informação temporal relevante, sendo a localização temporal conferida às eventualidades representadas na estrutura obtida a partir dos tempos gramaticais ou dos adjuntos temporais que nela ocorrem; (ii) ir impõe importantes restrições às situações com que comparece em termos de seleção aspetual e de agentividade / animacidade (em particular, é consistentemente desencadeada anomalia semântica quando estão envolvidos estativos ou eventos com sujeitos [-agentivos]); (iii) é sempre possível projetar na construção sintagmas preposicionais encabeçados por a ou por para, sintagmas esses que são tipicamente subcategorizados pelo verbo ir.

Em contraste, quando ir assume o estatuto de semiauxiliar temporal, (i) a construção ir + Infinitivo veicula sistematicamente informação temporal de futuridade, localizando as situações envolvidas num intervalo necessariamente posterior ao Ponto de Perspetiva Temporal (PPT) selecionado (cf. Kamp & Reyle, 1993); (ii) não se verificam quaisquer restrições combinatórias no que se refere à classe aspetual ou ao estatuto de animacidade manifestado pelas predicações envolvidas; (iii) embora possível em determinadas circunstâncias, a projeção de sintagmas preposicionais encabeçados por a ou por para não se revela obrigatória.

No entanto, a análise de alguns exemplos em que ir + Infinitivo se combina com o Imperfeito do Indicativo indica-nos que, para além dos casos que correspondem às duas interpretações acima mencionadas, é frequente encontrar configurações em que se destaca uma leitura que poderemos denominar “hipotética”.

Assim, se em (1) nos achamos face a uma interpretação de cariz quantificacional, que, como veremos, resulta, em grande medida, da preservação de certas propriedades lexicais do verbo ir, e, em (2), nos confrontamos com uma leitura eminentemente temporal da construção em apreço, verificamos que, em frases como (3), está subjacente uma componente modal bastante evidente:

(1) Fiz-me sócio duma discoteca municipal onde ia buscar discos de jazz, três por dia. (par=ext77135-clt-95a-1)[3]

(2) Uma era tinha acabado e outra ia começar. (par=ext64115-pol-98a-2)

(3) O aparelho, que devia seguir para Taipei (Taiwan), ia levantar voo quando o comandante anulou a manobra por razões ainda indeterminadas. (par=ext19440-soc-95b-2)

Face a exemplos como estes, colocam-se algumas questões a que importa dar resposta: (i) corresponderá esta variação em termos semânticos à existência de diferentes configurações envolvendo ir + Infinitivo? (ii) em que condições ou contextos linguísticos emerge cada uma destas significações? (iii) como se articula a estrutura ir + Infinitivo com as propriedades típicas do Imperfeito do Indicativo?

Tomando como ponto de partida as observações realizadas em Cunha (2014), procuraremos, em seguida, investigar alguns dos aspetos que se nos afiguram mais relevantes no que diz respeito à caracterização semântica da construção ir + Infinitivo com Imperfeito. Em particular, começaremos por descrever cada uma das interpretações acima indicadas, tentando identificar comportamentos linguísticos que nos permitam perceber até que ponto estaremos face a configurações linguísticas necessariamente distintas ou perante uma mesma estrutura que, não obstante, revela uma considerável variabilidade ao nível das suas significações. Por outro lado, voltaremos a nossa atenção para a interação que, no interior da configuração sob análise, se estabelece entre o verbo ir no Imperfeito e as situações infinitivas com que se combina, o que nos possibilitará uma melhor compreensão dos diferentes tipos de leituras que se nos deparam.

1. A leitura quantificacional

Tal como sucede com a estrutura ir + Infinitivo no Presente do Indicativo, são relativamente comuns as sequências envolvendo ir + Infinitivo com o Imperfeito que exibem uma leitura quantificacional de tipo frequentativo ou habitual, o que pode ser comprovado pela observação de exemplos como (4) e (5):

(4) Aos domingos, Oliveira Salazar ia ouvir missa na capela particular de um amigo. (par=ext313003-nd-91b-1)

(5) O Sr. Madeleine habitualmente ia visitar a enferma pelas três horas da tarde. (https://books.google.pt/books?isbn=8575031562)

Uma tal interpretação não é, no entanto, de todo surpreendente, uma vez que, tipicamente, o Imperfeito, quando combinado com predicações de cariz eventivo, desencadeia leituras de tipo quantificacional das situações com que comparece, como os seguintes exemplos nos confirmam (sobre a relação entre Imperfeito e habitualidade, vejam-se, entre outros, Berthonneau & Kleiber 1993; Cunha, 2004; 2006; 2012):

(6) Aí, na companhia das netas, passeava a cavalo, lia, escrevia, pintava e, provavelmente saudoso de tempos mais activos, limpava a sua bela colecção de armas. (par=ext215012-nd-91b-2)

(7) Um dos caçadores vendia habitualmente os animais que matava a um restaurante da zona. (par=ext10407-soc-98b-2)

Em última instância, a comparação dos exemplos em (4) e (5) com os de (6) e (7) sugere fortemente que, na interpretação em apreço, a construção ir + Infinitivo não altera substancialmente a perspetivação aspetual e as relações temporais que se estabelecem entre as situações envolvidas quando estas se encontram enquadradas pelo Imperfeito simples. Por outras palavras, a função temporo-aspetual do Imperfeito parece ser integralmente preservada neste tipo de configurações, independentemente da presença do verbo ir.

Nesse sentido, e seguindo a argumentação proposta em Cunha (2014), sugeriremos que, na sua leitura quantificacional, ir preserva, em termos gerais, grande parte das suas propriedades lexicais básicas, funcionando neste tipo de contexto como item lexical de pleno direito.

Com vista a comprovar a veracidade de uma tal suposição, importa analisar o comportamento linguístico manifestado pela construção ir + Infinitivo com Imperfeito em relação aos critérios que nos permitem reconhecer a presença de marcas lexicais associadas ao verbo ir, em particular no que se refere à existência de restrições aspetuais e de animacidade e à projeção de sintagmas preposicionais encabeçados por a ou por para.

É sabido que ir, quando utilizado como verbo pleno, participa obrigatoriamente em configurações de natureza [+dinâmica] (i.e. integra predicações eventivas). Um tal facto estará na base da sua incompatibilidade com situações de caráter estativo sempre que, na construção que aqui nos ocupa, mantém acessíveis as suas propriedades lexicais básicas (cf. “* O João foi estar doente”). Isto significa que, em última instância, e partindo do princípio de que, nas leituras habituais e frequentativas, ir preserva as suas propriedades lexicais de origem, estruturas quantificacionais com ir + Infinitivo no Imperfeito são totalmente incompatíveis com estados, independentemente da subclasse a que pertençam. Os exemplos que se seguem estão em linha com a argumentação que acabámos de desenvolver:

(8) * O João ia ter olhos azuis habitualmente. (estado de indivíduo não faseável)

(9) * A Maria ia ser simpática habitualmente. (estado de indivíduo faseável)

(10) * O João ia estar doente todas as semanas. (estado de “estádio”)

Sublinhe-se que as incompatibilidades observadas em exemplos como (9) e (10) não podem ser simplesmente atribuídas à impossibilidade de quantificação dos estados envolvidos, uma vez que, mesmo utilizando o Imperfeito do Indicativo, leituras habituais ou frequentativas são perfeitamente naturais com este tipo de situações[4], como (11) e (12) nos revelam, devendo a anomalia semântica ser, por conseguinte, imputada à presença do verbo ir nas construções em apreço:

(11) A Maria era simpática habitualmente.

(12) O João estava doente todas as semanas.

Por outro lado, podemos observar que as construções que integram o verbo ir como item lexical pleno são tendencialmente [+agentivas], ou, dito de uma forma mais precisa, selecionam tipicamente (embora não exclusivamente) sujeitos que exibem o traço [+animado] e que assumem o papel temático de Agente. Como consequência, as estruturas com ir + Infinitivo em que o primeiro verbo preserva as suas propriedades lexicais de origem normalmente desencadeiam anomalia semântica na presença de predicações cujo sujeito manifesta o traço [-animado] ou, sendo [+animado], recebe um papel temático que não o de Agente (veja-se o contraste entre “O Rui foi trabalhar” vs. “* O motor do meu carro foi trabalhar”).

Se esta linha de argumentação está correta, será expectável que ir + Infinitivo com o Imperfeito numa leitura quantificacional dê origem a anomalia semântica quando coocorre com predicações que integram um sujeito [-animado] ou, melhor dizendo, um sujeito não agentivo. Parece, de facto, ser isso mesmo que acontece, como os exemplos seguintes nos sugerem:[5]

(13) * O vaso ia cair da varanda habitualmente.

(14) * O vento ia soprar todas as manhãs.[6]

Finalmente, e em consonância com o que sucede com as estruturas em que ir (+ Infinitivo) preserva as suas propriedades lexicais básicas, é sempre possível projetar na configuração sob análise um sintagma preposicional encabeçado por a ou por para, independentemente do verbo no Infinitivo selecionado (cf. Cunha, 2014), tal como ilustrado em (15) e (16).

(15) A Maria ia almoçar à cantina da faculdade.

(16) Os leões iam caçar gnus para a savana.

A presença dos referidos sintagmas preposicionais deve-se inegavelmente às propriedades sintáticas inerentes ao verbo ir, que, quando funciona como verbo pleno, subcategoriza este tipo de estruturas (cf. “O João ia à praia” ou “O Filipe ia para a escola”). A corroborar esta nossa afirmação, observem-se os seguintes exemplos, em que a ausência de ir acarreta imediatamente a agramaticalidade no que respeita à projeção dos SPs introduzidos por a ou por para:

(17) * A Maria almoçava à cantina da faculdade.

(18) * Os leões caçavam gnus para a savana.

Em suma, nas configurações em que ir + Infinitivo com o Imperfeito recebe uma leitura quantificacional (i.e., de natureza frequentativa ou habitual), o verbo ir parece preservar grande parte das suas propriedades lexicais básicas, na medida em que (i) não influencia significativamente a localização temporal das predicações com que coocorre (tal como as suas equivalentes com Imperfeito simples, estabelece uma relação em que, de alguma forma, se verifica sobreposição a um dado Ponto de Perspetiva Temporal passado) e não altera os efeitos aspetuais imputáveis ao Imperfeito; (ii) manifesta restrições combinatórias que parecem derivar do seu perfil lexical – em particular, rejeita a presença de estativos, o que estaria relacionado com o seu traço [+dinâmico] e não admite a presença de eventualidades não agentivas, o que estaria em concordância com o seu caráter tendencialmente [+animado] e (iii) permite licenciar a projeção de sintagmas preposicionais encabeçados por a ou por para.

2. A leitura prospetiva

A construção ir + Infinitivo com o Imperfeito pode receber igualmente uma leitura eminentemente temporal, embora esta não se revele a sua interpretação preferencial nem se mostre muito relevante no que toca ao número de ocorrências atestadas, em particular quando estão em causa frases simples.

Em termos muito gerais, ir funcionaria aqui como um operador temporal que localizaria as situações envolvidas num intervalo posterior ao Ponto de Perspetiva Temporal passado associado ao Imperfeito (cf. Kamp & Reyle, 1993). Por outras palavras, estaríamos perante um “futuro do passado”, em que ir seria responsável pela “futuridade” conferida à eventualidade descrita.

Nessa medida, a estrutura em causa seria paralela à construção ir + Infinitivo no Presente do Indicativo com valor temporal, tal como descrita em Cunha (2014), dado que as duas configurações favorecem a emergência de leituras prospetivas, sendo a única diferença entre elas o facto de uma – a que integra o Presente do Indicativo – tomar como PPT o momento da enunciação e a outra – a que exibe o Imperfeito – selecionar um PPT passado.

Os exemplos que se seguem, retirados do nosso corpus, ilustram esta interpretação essencialmente temporal de ir + Infinitivo com o Imperfeito:

(19) Depois do Portugal dos Pequeninos que o prof. Bissaia Barreto tinha inventado para o dr. Salazar, o país ia fechar o século XX com um empreendimento único e universal do ponto de vista científico, ao mesmo tempo que oferecia aos meninos lusitanos uma ocupação pedagógica para os intervalos do trabalho infantil. (par=ext48543-nd-93b-1)

(20) Tiveram que deixar a ilha, é certo, mas a posição que então proclamaram não deixou de ter seguidores, entre eles frei Bartolomeu de las Casas, que ia fixar todos estes eventos, anos depois, na primeira “Historia de Las Índias”. (par=ext168349-soc-93b-2)

Assim, em (20), por exemplo, ir + Infinitivo com Imperfeito localiza a situação de “fixar todos estes eventos (…) na primeira Historia de las Índias” num intervalo posterior (cf. o adverbial “anos depois”) ao PPT passado associado a “ter que deixar a ilha”.

A construção em que se observa uma interpretação temporal de prospetividade desencadeada por ir + Infinitivo com o Imperfeito difere, em muitos aspetos, da estrutura correspondente associada a uma leitura de natureza quantificacional que descrevemos na secção 1 do presente trabalho.

Em primeiro lugar, não parecem existir quaisquer restrições quanto à natureza aspetual das predicações com que ir + Infinitivo no Imperfeito pode comparecer. Em particular, a leitura prospetiva revela-se perfeitamente compatível com situações de natureza estativa, como os seguintes exemplos ilustram:

(21) Cavaco Silva exerceu funções de primeiro-ministro entre 1985 e 1995. Ia ser presidente da república onze anos mais tarde.

(22) O João apanhou frio a noite toda. Ia estar doente uma semana depois.

Note-se que frases em que figuram predicações semelhantes mas em que é atribuída uma interpretação quantificacional não temporal à estrutura dão imediatamente origem a anomalia semântica, como (23) e (24) nos confirmam:

(23) * Cavaco Silva ia ser presidente da república habitualmente.

(24) * O João ia estar doente todas as semanas.

Observações semelhantes podem ser estendidas aos casos em que ocorrem situações eventivas com sujeitos de cariz não agentivo: este tipo de predicações é perfeitamente viabilizado quando está em causa uma leitura prospetiva, mas torna-se inaceitável quando emerge uma interpretação quantificacional:

(25) O edifício do Centro Cultural foi inaugurado em 1990. Ia cair dois anos mais tarde por causa de um terramoto.

(26) * O edifício do Centro Cultural ia cair habitualmente por causa de um terramoto.

Finalmente, a projeção de sintagmas preposicionais introduzidos por a ou por para, característica das construções em que ir preserva grande parte das suas propriedades lexicais básicas, nem sempre é possível em estruturas com ir + Infinitivo no Imperfeito que ostentam uma leitura prospetiva. Em particular, a inserção dos referidos SPs parece ser inviabilizada quando estão em causa predicações estativas ou eventos associados a um sujeito [-animado], como os exemplos seguintes nos revelam:

(27) O João apanhou frio a noite toda. Ia estar doente * a casa / * para casa / em casa uma semana depois.

(28) O incêndio começou à meia-noite. O fogo ia queimar todas as árvores * à floresta / * para a floresta / na floresta pela manhã.

Sublinhe-se que, nos casos em que ir + Infinitivo com Imperfeito recebe uma leitura prospetiva (e contrariamente ao que sucede quando nos confrontamos com uma interpretação meramente quantificacional), a construção em causa parece equivaler, em termos semânticos, ao uso de formas do Condicional, também designado por certos autores como “futuro do passado” (cf. Cunha & Cintra, 1984). Os exemplos que se seguem ilustram o que acabámos de referir:

(29) Cavaco Silva exerceu funções de primeiro-ministro entre 1985 e 1995. Seria presidente da república onze anos mais tarde. (equivalente a (21))

(30) O edifício do Centro Cultural foi inaugurado em 1990. Cairia dois anos mais tarde por causa de um terramoto. (equivalente a (25))

Dado que, de momento, o nosso objetivo se resume a descrever e comparar as diferentes interpretações ostentadas pela estrutura ir + Infinitivo com Imperfeito, deixaremos as complexas relações que se estabelecem entre ir + Infinitivo, o Condicional e as formas de Imperfeito para um trabalho futuro. Vejam-se, no entanto, a este respeito Oliveira (1998) ou Oliveira & Duarte (2012).

Em suma, para além da leitura meramente quantificacional, é possível encontrar uma interpretação de natureza prospetiva para a construção ir + Infinitivo com o Imperfeito. Neste caso, a componente temporal parece ser predominante e as situações apresentadas são tipicamente localizadas num intervalo de tempo posterior a um dado PPT passado. Nesse sentido, ir parece funcionar aqui como um semiauxiliar desempenhando o papel de operador temporal, tal como sucede nas interpretações preferenciais de ir + Infinitivo com o Presente do Indicativo. A ausência de quaisquer restrições em termos de seleção da classe aspetual ou a irrelevância da presença de marcas de agentividade nas predicações envolvidas, bem como a não obrigatoriedade de projeção, nas referidas estruturas, de um SP encabeçado por a ou por para, vão ao encontro desta nossa linha de análise.

3. A leitura hipotética

Para além das duas interpretações que acabámos de descrever, a construção ir + Infinitivo com o Imperfeito manifesta uma leitura de cariz modal que aqui designaremos como “hipotética”. Nestas ocorrências, que, mesmo com base numa observação rápida ao corpus consultado, aparentam ser as mais frequentes, as situações descritas não parecem realizar-se no mundo real, sendo concebidas apenas como “possibilidades” ou como meras “hipóteses”. Vejam-se os seguintes exemplos ilustrativos:

(31) Dundee ia jogar hoje em Telavive ao lado de Jürgen Klinsmann num particular contra Israel, mas uma lesão sofrida no sábado fê-lo renunciar à viagem. (par=ext24137-des-97a-4)

(32) Na altura da sua detenção, Falco ia embarcar num comboio com destino a Madrid. (par=ext244959-nd-97b-2)

Assim, por exemplo, a situação representada em (32), i.e. “Falco embarcar num comboio com destino a Madrid”, parece ser projetada num mundo possível diferente do mundo real, ou seja, num mundo em que a “sua detenção” não tivesse ocorrido.[7]

A atribuição de interpretações modais à estrutura ir + Infinitivo com Imperfeito não será, contudo, de todo surpreendente. Com efeito, quer as formas do Imperfeito quer as construções que de algum modo veiculam posterioridade se encontram intimamente ligadas a informação de natureza modal.

São frequentes, na literatura, referências a interpretações de cariz modal desencadeadas pelo Imperfeito (cf., entre muitos outros, Oliveira, 1987; Matos, 1996; Ippolito, 2004). De entre estes usos do tempo gramatical em causa que, de alguma forma, extravasam o seu valor temporal básico de passado e que, muitas vezes, remetem para mundos alternativos ao mundo de referência, destacamos o uso fictivo ou fabulativo, que se presta à criação de contextos ficcionais (ex.: “Então os marcianos chegavam à Terra, devoravam todos os seres humanos e tomavam conta do planeta”); o uso lúdico, representado sobretudo em diálogos presentes em jogos e brincadeiras infantis (Ex.: “Agora eu era a professora e tu eras a aluna”; o uso onírico (Ex.: “Sonhei que tinha um tapete voador e viajava pelo espaço”); o Imperfeito de planificação (ex.: “Então, enquanto vais às compras, eu fazia o almoço e preparava a sobremesa”); o Imperfeito doxástico-epistémico, que se refere à necessidade de recuperação de determinada informação em certa medida já disponibilizada mas que, por assim dizer, parece precisar de confirmação ou de atualização (Ex.: “O que dava logo na televisão?”); o Imperfeito de delicadeza ou de cortesia (Ex.: “Queria um café, por favor”); já para não falar no uso do Imperfeito em diversos tipos de condicionais, estruturas que, na sua maioria, remetem para o domínio do não real (Ex.: “Se tivesse dinheiro comprava um BMW”).

Dada a relevância deste género de interpretações para a plena compreensão da sua significação, muitos autores propuseram para o Imperfeito um tratamento semântico que tem em conta o seu caráter essencialmente modal.

Assim, e a título de exemplo, Cipria & Roberts (2000) propõem que a semântica do Imperfeito deve conter explicitamente um elemento modal e uma relação de acessibilidade sobre situações conferida pelo contexto que permitirá dar conta das diferentes interpretações observadas.

Ippolito (2004), por seu lado, propõe que a componente de passado que caracteriza o Imperfeito não se aplique apenas ao domínio da mera localização temporal mas se estenda também à restrição da relação de acessibilidade que permite aceder a mundos possíveis. Introduz, pois, na semântica do Imperfeito uma componente modal através do recurso a uma “base modal” (modal-base) de cariz epistémico ou evidencial (cf. Kratzer, 1991; 2012).

Tomando como ponto de partida o estudo comparativo de diferentes línguas, Arregui, Rivero & Salanova (2014) advogam, igualmente, a necessidade de um tratamento modal para o Imperfeito. A variação na interpretação dos usos modais que se verifica nas diversas línguas analisadas estaria diretamente relacionada com o tipo e o âmbito das “bases modais” associadas à semântica do operador de Imperfetividade.

No sentido de tornar mais explícito o potencial de modalidade associado ao Imperfeito, observem-se os seguintes exemplos ilustrativos:

(33) O João comprava um BMW mas não tem dinheiro.

(34) O João comprava um BMW mas primeiro quer conhecer os modelos disponíveis no stand.

Partindo do princípio de que a base modal (modal-base) – ou seja, o enquadramento conversacional relativo às propriedades e circunstâncias que caracterizam os indivíduos e as situações relevantes – associada a estes exemplos está em consonância com a veracidade das frases no Imperfeito (por exemplo, supõe que o João precisa e pretende comprar um carro novo, o João gosta dos modelos da BMW, existem automóveis da referida marca disponíveis para venda em Portugal, etc.), verificamos que, sob um certo ponto de vista, o conteúdo proposicional das orações contrastivas poderá funcionar como “fonte de seriação” (ordering source), i.e., como restritor em relação ao domínio de acessibilidade para os mundos possíveis em que o João compra um BMW (para a definição, caracterização e discussão dos conceitos de base modal e de fonte de seriação, veja-se Kratzer, 1991; 2012).

Assim, a informação de que o João não tem dinheiro veiculada em (33) parece ser incompatível com os mundos possíveis em que ele efetivamente compra um BMW, o que, em última instância, conduz a uma leitura contrafactual da frase em apreço (i.e. em que o João não compra um BMW no mundo real). Já em (34), o facto de o João querer conhecer os vários modelos disponíveis não exclui a possibilidade da compra do BMW, pelo que a informação associada a esta “fonte de seriação” conduz a uma leitura modal de possibilidade.[8]

Para o que agora nos interessa, porém, importa destacar que todos estes tratamentos do Imperfeito assumem que a modalidade faz parte integrante da sua caracterização semântica e que, para além da mera localização temporal, ele exibe uma importante componente modal que permite aceder a mundos possíveis diferentes do mundo real de referência.

Mas se é certo que as propriedades do Imperfeito se encontram estreitamente relacionadas com a expressão da modalidade, o mesmo poderá ser dito no que se refere ao estabelecimento de relações temporais de posterioridade.

Desde Dowty (1979) que é consensual na literatura a existência de uma assimetria que se verifica entre os tempos do passado e os que, de alguma forma, remetem para o futuro. Na realidade, se o valor de verdade de uma proposição expressa por uma situação passada pode ser facilmente avaliado a partir do respetivo Ponto de Perspetiva Temporal, uma vez que esta já ocorreu no mundo de referência, o mesmo não se poderá dizer em relação a uma eventualidade projetada no futuro. De facto, dado que uma tal situação ainda não teve lugar no intervalo de avaliação, abrem-se múltiplas possibilidades no que se refere ao decurso dos acontecimentos (e, em última instância, à sua realização no mundo de referência). A essas diversas possibilidades que o decurso dos acontecimentos pode tomar Dowty chama futuros ramificantes (“inertia futures”).

Sob este ponto de vista, uma relação de posterioridade supõe necessariamente um certo grau de modalidade, na medida em que envolve sempre um conjunto aberto de possibilidades, de futuros ramificantes, que se projetam em mundos possíveis (na realidade, apenas um desses futuros corresponderá ao curso dos acontecimentos no mundo de referência, mas este tipo de avaliação não poderá ser efetuado no PPT em relação ao qual a situação posterior é localizada).

Tomando como ponto de partida as observações que acabámos de realizar, colocam-se duas questões de capital relevância a que é necessário dar resposta: (i) será forçoso postular para a leitura hipotética de ir + Infinitivo com Imperfeito uma configuração linguística autónoma ou será possível integrá-la numa das duas construções que propusemos nas secções anteriores? e (ii) caso se opte pela solução, a nosso ver mais desejável, de unificação de estruturas e tendo em conta que tanto o Imperfeito quanto a relação de posterioridade supõem modalidade, a que tipo de construção – ir com preservação de traços lexicais ou ir enquanto operador de posterioridade – corresponderá a leitura hipotética?

Com vista a alcançar respostas adequadas para estas questões importa, neste momento, prestar alguma atenção às propriedades semânticas que caracterizam a construção ir + Infinitivo com Imperfeito na sua interpretação hipotética.

3.1. Algumas propriedades semânticas de ir + Infinitivo com Imperfeito numa leitura hipotética

Tal como sucede com a leitura de posterioridade (e diferentemente do que verificámos para a leitura quantificacional), ir + Infinitivo com Imperfeito, quando se encontra envolvido numa interpretação hipotética, parece não revelar qualquer tipo de restrição combinatória em relação à natureza das predicações com que coocorre.

Assim, é perfeitamente possível encontrar leituras hipotéticas de ir + Infinitivo com Imperfeito envolvendo diferentes tipos de estativos, como os exemplos seguintes nos confirmam:

(35) O Zé ia ser engenheiro mas desistiu do curso. (estado de indivíduo não faseável)

(36) O meu cão ia ser agressivo com os convidados se eu não o tivesse fechado na casota. (estado de indivíduo faseável)

(37) Se não tomasse os medicamentos, a Maria ia ter febre. (estado de estádio não faseável)

(38) A Rita ia sentir-se assustada no primeiro dia de escola, mas a mãe levou-lhe os seus brinquedos preferidos. (estado de estádio faseável)

São igualmente admitidas, neste tipo de configurações, predicações com sujeitos não agentivos, como (39) e (40) nos revelam:

(39) O vaso ia cair da janela quando eu o agarrei.

(40) O meu carro ia trabalhar se lhe tivesse posto gasolina.

Por outro lado, verificamos que nem sempre é possível projetar SPs encabeçados por a ou por para neste tipo de construções, o que, mais uma vez, as aproxima das estruturas prospetivas e as afasta das quantificacionais:

(41) O João ia ser professor * a / * para / em Évora, mas não passou no concurso.

(42) Se os bombeiros não tivessem chegado a tempo, o fogo ia queimar a floresta * à / * para a / até à autoestrada.

Com base nos exemplos que apresentámos até ao momento, podemos afirmar que o comportamento linguístico de ir + Infinitivo com Imperfeito na sua leitura hipotética se revela bastante próximo do que é ostentado pela configuração correspondente com uma leitura prospetiva, diferindo substancialmente, por conseguinte, daquele que caracteriza a estrutura equivalente com uma leitura quantificacional.

A confirmar o que acabámos de referir, observe-se que, na sua leitura hipotética, ir + Infinitivo com Imperfeito nem sempre pode ser comutável com formas do Imperfeito simples. Como já fizemos notar anteriormente, quando ir preserva a maioria das suas características lexicais de origem, as propriedades temporo-aspetuais da estrutura em que intervém não sofrem alterações substanciais, o que significa que, em última instância, ir + Infinitivo com Imperfeito e formas do Imperfeito simples veiculam informação até certo ponto equivalente. Os casos em que prevalece uma interpretação quantificacional exemplificam esta proximidade de significações (veja-se a semelhança interpretativa entre (43) e (44)):

(43) Os gnus iam pastar na savana todas as tardes.

(44) Os gnus pastavam na savana todas as tardes.[9]

Quando, no entanto, está em causa uma leitura hipotética, uma substituição deste género revela-se muito menos aceitável (cf. os contrastes entre (45) e (46) ou entre (47) e (48)), o que sugere que ir desempenha na estrutura um papel fundamental que em muito ultrapassa a mera contribuição associada ao seu significado lexical básico.

(45) O João ia ser médico mas desistiu do curso.

(46) # O João era médico mas desistiu do curso.

(47) A Maria ia telefonar à irmã mas adormeceu.

(48) # A Maria telefonava à irmã mas adormeceu.[10]

Em suma, diremos que as leituras prospetivas e hipotéticas de ir + Infinitivo com o Imperfeito partilham comportamentos linguísticos importantes. Em particular (i) não restringem o tipo de predicações com que comparecem, nem em termos aspetuais nem em termos de agentividade; (ii) nem sempre preservam as propriedades de seleção sintática do verbo ir, o que se traduz na impossibilidade, em certas condições, de projeção de SPs encabeçados por a ou por para e (iii) ir veicula informação que em muito ultrapassa a do perfil temporo-aspetual da estrutura base, o que, por vezes, conduz a evidentes divergências em termos de significação entre a construção em causa e as suas equivalentes com o Imperfeito simples.

No entanto, a estrutura ir + Infinitivo no Imperfeito com valor hipotético diferencia-se da sua correspondente prospetiva na medida em que, mais do que a mera localização de uma dada situação num intervalo posterior ao PPT selecionado, perspetiva uma eventualidade num mundo possível diferente do mundo “real” ou do mundo de referência, ou seja, supõe a existência de um mundo alternativo (“inertia world”). Nesse sentido, podemos dizer que estamos face a uma leitura de cariz essencialmente modal, uma vez que somos remetidos para o âmbito dos “mundos possíveis” e do “não realizado” (cf. Portner, 2009).

Sob este ponto de vista, e ao contrário do que sucede com as interpretações de natureza quantificacional, ir parece desempenhar aqui um papel relevante que em muito ultrapassa a mera contribuição das suas propriedades lexicais de origem. A questão que agora se nos coloca é a de saber se a leitura hipotética corresponde a uma configuração autónoma, particular, ou se, pelo contrário, poderá ser integrada numa descrição unificada com a leitura prospetiva.

3.2. Leitura prospetiva e leitura hipotética: duas configurações distintas ou duas faces de uma mesma realidade?

Dadas as semelhanças que se observam no que respeita ao comportamento linguístico de ir + Infinitivo com Imperfeito nas suas leituras prospetiva e hipotética, coloca-se a questão de saber se essas duas interpretações correspondem, de facto, a configurações independentes ou se, pelo contrário, é possível encontrar um tratamento conjunto que nos permita enquadrá-las numa descrição unificada, convergindo numa análise semântica integrada.

À primeira vista, seria tentador defender a hipótese de uma separação clara entre as duas leituras em causa. Na realidade, enquanto a interpretação prospetiva se restringe ao domínio temporal, localizando uma situação num intervalo posterior a um PPT passado, a leitura hipotética envolve mecanismos semânticos bem mais complexos, uma vez que requer a postulação de mundos alternativos e, em muitos casos, apresenta as eventualidades como não realizadas no mundo de referência. Por outras palavras, enquanto na leitura prospetiva ir funcionaria como um operador temporal, na hipotética exibiria as características de um operador modal.

No entanto, se observarmos mais atentamente as construções sob análise, verificamos que são muito significativos os aspetos que as unem.

Em primeiro lugar, e como já foi várias vezes assinalado ao longo das secções anteriores, tanto a leitura prospetiva quanto a hipotética exibem comportamentos linguísticos semelhantes que, por um lado, as aproximam entre si e que, por outro, nos permitem estabelecer uma separação bastante evidente em relação às interpretações habituais e frequentativas. Referimo-nos, naturalmente, à inexistência de restrições quanto à categoria aspetual e ao estatuto de agentividade das predicações envolvidas e à impossibilidade, em determinados contextos, de projeção de sintagmas preposicionais encabeçados por a ou por para, bem como ao facto de ir veicular informação semântica que em muito transcende a associada ao seu conteúdo lexical de base, o que conduz, pelo menos em certos casos, à ausência de uma equivalência direta entre ir + Infinitivo e formas correspondentes do Imperfeito simples.

Em segundo lugar, e independentemente do valor de verdade atribuído, no mundo de referência, à proposição descrita, parece, em ambos os casos, ser consistentemente veiculada informação temporal de posterioridade[11], o que, mais uma vez, contrasta com o que se passa nas interpretações de índole quantificacional, que preservam a informação temporo-aspetual de habitualidade ou de frequência num intervalo passado tipicamente associada ao Imperfeito.

Há, por outro lado, contextos linguísticos que licenciam tanto leituras hipotéticas quanto prospetivas. É o caso, por exemplo, das construções completivas de verbo, tal como os seguintes exemplos nos revelam:

(49) Os amigos de Mujkanovic souberam que ele os ia deixar, e como gesto de admiração arranjaram-lhe o melhor fato que encontraram para ele usar no voo de saída. (par=ext54994-pol-93a-1) (leitura prospetiva)

(50) O condutor, depois de fingir que ia sair do automóvel, arrancou a grande velocidade, levando o polícia na frente do carro numa extensão calculada em cerca de cinco metros, até parar. (par=ext394306-soc-95b-1) (leitura hipotética)[12]

É mesmo relativamente frequente encontrarmos casos de completivas em que não nos é possível determinar se a situação ocorreu, de facto, no mundo de referência (caso em que, preferencialmente, teríamos uma interpretação prospetiva) ou se, pelo contrário, esta se inscreve no domínio do não realizado (caso em que estaríamos perante uma leitura hipotética). Observem-se os seguintes exemplos ilustrativos retirados do corpus.

(51) Isabel respondeu-me que ia pensar na proposta. (par=ext176-clt-93a-1)

(52) Faren declarou ainda que a China ia lançar (…) cinco satélites para o espaço. (par=ext45335-clt-soc-93b-1)

Assim, em (52), por exemplo, e tendo em conta o significado do verbo introdutor “declarar”, que não permite estabelecer o valor de verdade da proposição expressa pela situação encaixada no mundo de referência, temos um exemplo bastante evidente em que não nos é possível verificar se o evento de “lançar cinco satélites para o espaço” ocorreu ou não na realidade. Por outras palavras, a fronteira entre uma leitura prospetiva e uma leitura hipotética parece, em casos como estes, diluir-se substancialmente.

A mesma indeterminação quanto à efetiva ocorrência de uma situação projetada num intervalo posterior a um dado PPT passado propiciada pela construção ir + Infinitivo com Imperfeito pode ser encontrada em exemplos como os que se seguem:

(53) Em Março passado, começaram os rumores de que a fábrica ia fechar mas ninguém acreditou. (par=ext39555-soc-93b-1)

(54) Em Abril «Angels in America» ia estrear na Broadway, e nenhum jornal nova-iorquino, nem nenhuma revista, deixaram de falar nisso. (par=ext24461-clt-93a-2)

Em suma, o facto de as construções que envolvem ir + Infinitivo no Imperfeito com leituras prospetivas e com leituras hipotéticas partilharem um número bastante significativo de propriedades semânticas, por um lado, e a existência, por outro, de exemplos em que uma fronteira clara entre essas duas interpretações parece estar atenuada ou diluída levam-nos a considerar que fará todo o sentido procurar um tratamento comum para as estruturas em apreço.

Mas, como poderemos encontrar uma análise unificada para estes casos que responda adequadamente às diversas observações que temos vindo a realizar?

A nossa busca por um tratamento unificado para as leituras hipotéticas e prospetivas da construção ir + Infinitivo com Imperfeito tomará como ponto de partida os seguintes princípios: (i) em ambos os casos, existe uma situação que é localizada num intervalo de tempo necessariamente posterior a um determinado PPT passado; (ii) a diferença entre as interpretações em causa depende de a situação se encontrar realizada no mundo de referência (leitura prospetiva) ou de ser concebida como não realizada, o que significa que, neste caso, será remetida para um mundo alternativo ao mundo real (leitura hipotética).

No sentido de compreender melhor o que se passa com as interpretações prospetivas e hipotéticas de ir + Infinitivo com Imperfeito, recorreremos, pois, à avaliação do valor de verdade das proposições não apenas em função dos intervalos de tempo em que se localizam mas também em relação aos mundos possíveis em que se enquadram (cf. a noção de “situação possível”, concebida como um par ordenado constituído por um intervalo de tempo i e por um mundo possível w, tal como formulada por Kratzer (1989) e retomada em Marques (2010)).

Para o que aqui nos importa, diremos que as leituras prospetivas e hipotéticas partilham a componente temporal, ou seja, ir + Infinitivo com Imperfeito localiza consistentemente as situações descritas em intervalos de tempo posteriores a um PPT passado. A única diferença reside no facto de que, enquanto as leituras prospetivas assumem a ocorrência da eventualidade no mundo de avaliação, as leituras hipotéticas remetem-na para mundos alternativos diferentes do mundo real.

Encontramo-nos, assim, em condições de propor uma análise semântica unificada para estas duas interpretações: nesse sentido, diremos que ir + Infinitivo com Imperfeito manifesta o traço temporal de [+posterioridade], sendo não especificado quanto ao traço respeitante à ocorrência das situações no mundo de avaliação.[13]

O facto de ir + Infinitivo com Imperfeito ser não especificado quanto à possibilidade de ocorrência das situações no mundo de avaliação permite dar conta (i) dos casos em que a eventualidade efetivamente tem lugar no mundo real, a que corresponde uma leitura prospetiva (cf. os exemplos discutidos na secção 2); (ii) dos casos em que a eventualidade não ocorre no mundo real e é remetida para mundos alternativos, a que corresponde uma leitura hipotética (cf. os exemplos apresentados em 3.1) e (iii) dos casos em que não é possível determinar se a eventualidade ocorreu ou não no mundo real, ilustrados em frases como as de (51) a (54).

4. Conclusão

A partir da análise do comportamento linguístico de ir + Infinitivo com o Imperfeito, o presente trabalho procurou demonstrar a necessidade de postular a existência de duas configurações distintas associadas à referida estrutura, uma em que ir preserva parte das suas propriedades lexicais básicas e outra em que funciona como um operador eminentemente temporal de posterioridade, na linha do que já havia sido proposto em Cunha (2014).

Para além da leitura quantificacional – frequentativa ou habitual –, em que as propriedades lexicais do verbo são, em certa medida, conservadas e da leitura prospetiva, em que ir + Infinitivo com Imperfeito efetua uma operação temporal de posterioridade em relação a um PPT passado, identificámos uma terceira interpretação, que designámos como “hipotética”, em que as situações descritas são projetadas em mundos alternativos diferentes do mundo de avaliação. A análise das suas propriedades semânticas levou-nos a considerar vantajoso um tratamento unificado com a configuração prospetiva, uma vez que, em ambos os casos, parece estar envolvida a futuridade, havendo variação apenas no que respeita à realização (ou não) das eventualidades em causa no mundo de referência.

Agradecimentos

Agradeço à Fundação para a Ciência e a Tecnologia pelo suporte financeiro à presente investigação e ao Centro de Linguística da Universidade do Porto pelo apoio prestado; agradeço igualmente à professora doutora Fátima Oliveira e aos membros do grupo de semântica do CLUP, bem como a dois avaliadores anónimos da Diacrítica pela discussão e pelos comentários que em muito contribuíram para a versão final do presente texto.

 

Referências

Arche, M. J. (2014). The construction of viewpoint aspect: the imperfective revisited. Natural Language & Linguistic Theory, 32 (3), 791-831.         [ Links ]

Arregui, A., Rivero, M. L. & Salanova, A. (2014). Cross-linguistic variation in imperfectivity. Natural Language & Linguistic Theory, 32 (2), 307-362.         [ Links ]

Berthonneau, A. M. & Kleiber, G. (1993). Pour une nouvelle approche de l'imparfait: l'imparfait, un temps anaphorique méronomique. Langages, 112, 55-73.         [ Links ]

Cipria, A. & Roberts, C. (2000). Spanish imperfecto and pretérito: truth conditions and aktionsart effects in a Situation Semantics. Natural Language Semantics, 8 (4), 297-347.         [ Links ]

Cunha, C. & Cintra, L. (1984). Nova Gramática do Português Contemporâneo. Lisboa: Edições Sá da Costa.         [ Links ]

Cunha, L. F. (2004). Semântica das predicações estativas: para uma caracterização aspectual dos estados. Dissertação de doutoramento, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto.         [ Links ]

Cunha, L. F. (2006). Frequência vs. habitualidade: distinções e convergências. In Actas del XXXV Simpósio Internacional de la Sociedad Española de Lingüística (pp. 333-357). León: SEL. Disponível on-line em http://www3.unileon.es/dp/dfh/SEL/actas/Cunha.pdf        [ Links ]

Cunha, L. F. (2012). Frequentative and habitual structures: similarities and differences. In C. Schnedecker & C. Armbrecht (Eds.), La quantification et ses domains – Actes du colloque de Strasbourg (pp. 339-352). Paris: Honoré Champion Éditeur.         [ Links ]

Cunha, L. F. (2014). Algumas peculiaridades da construção ir + Infinitivo em Português Europeu. Comunicação apresentada ao XXX Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Linguística, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, outubro de 2014.         [ Links ]

Dowty, D. (1979). Word meaning and Montague grammar. Dordrecht: Reidel Publishing Company.         [ Links ]

Gonçalves, A. & Costa, T. (2002). (Auxiliar a) compreender os verbos auxiliares do Português – descrição e implicações para o ensino do Português como língua materna. Lisboa: Colibri / Associação de Professores de Português.         [ Links ]

Ippolito, M. (2004). Imperfect modality. In J. Guéron & J. Lecarme (Eds.), The syntax of time (pp. 359-387). Cambridge, MA: MIT Press.         [ Links ]

Kamp, H. & Reyle, U. (1993). From discourse to logic. Introduction to model-theoretic semantics of natural language, formal logic and discourse representation theory. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers.         [ Links ]

Kratzer, A. (1989). An investigation of the lumps of thought. Linguistics and Philosophy, 12 (5), 607-653.         [ Links ]

Kratzer, A. (1991). Modality. In A. von Stechow & D. Wunderlich (Eds.), Semantics (pp. 639-650). Berlin: Walter de Gruyter.         [ Links ]

Kratzer, A. (2012). Modals and conditionals. Oxford: Oxford University Press.         [ Links ]

Marques, R. (2010). Sobre a semântica dos tempos do conjuntivo. In A. M. Brito, F. Silva, J. Veloso & A. Fiéis (Eds.), Textos Seleccionados do XXV Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Linguística (pp. 549-565). Porto: APL.         [ Links ]

Matos, S. (1996). Aspectos da semântica e pragmática do Imperfeito do Indicativo. Revista da Faculdade de Letras: Línguas e Literaturas, 13 (2), 435-474.         [ Links ]

Oliveira, F. (1987). Algumas considerações acerca do Pretérito Imperfeito. In Actas do 2.º Encontro da Associação Portuguesa de Linguística (pp. 78-96). Lisboa: APL.         [ Links ]

Oliveira, F. (1998). Algumas questões semânticas acerca da sequência de tempos em Português. Revista da Faculdade de Letras: Línguas e Literaturas, 15 (2), 421-436.         [ Links ]

Oliveira, F. & Duarte, I. M. (2012). Le conditionnel et l'imparfait en Portugais Européen. Faits de Langues, 40 (2), 53-60.         [ Links ]

Patard, A. (2014). When tense and aspect convey modality. Reflections on the modal uses of past tenses in Romance and Germanic languages. Journal of Pragmatics, 71, 69-97.         [ Links ]

Portner, P. (2009). Modality. Oxford: Oxford University Press.         [ Links ]

 

Notas

[1] Trabalho financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do QREN – POPH – Tipologia 4.1. – Formação avançada, comparticipado pelo Fundo Social Europeu e por fundos nacionais do MEC

[2] Sobre os critérios de semiauxiliaridade no Português, veja-se Gonçalves & Costa (2002).

[3] No decurso deste trabalho utilizamos tanto exemplos “fabricados” por nós quanto retirados de um corpus de referência do Português Europeu, no sentido de validar, com dados reais, algumas das observações que vamos produzindo. Para tal, recorremos ao corpus Cetempúblico, disponível em www.linguateca.pt.

[4] Excetuam-se, naturalmente, os estados de indivíduo não faseáveis que, por natureza, resistem à quantificação (cf. Cunha, 2004).

[5] Perante a anomalia semântica de exemplos como “# A Ana ia cair da varanda habitualmente” ou “# Geralmente, a Lígia ia partir o braço”, somos levados a concluir que o que aqui está em causa são, essencialmente, restrições de caráter temático. Sob este ponto de vista, a grelha temática de ir parece influir decisivamente na seleção dos argumentos que podem ou não ocorrer na construção ir + Infinitivo no Imperfeito com valor quantificacional. Assim, se aceitarmos que (i) ir, enquanto item lexical pleno, seleciona tipicamente um argumento Agente na posição de sujeito e (ii) as propriedades lexicais básicas deste verbo se projetam na construção ir + Infinitivo no Imperfeito com valor quantificacional, obteremos uma boa explicação para as restrições não só de (13) e (14), em que figuram sujeitos [-animados] (logo, não agentivos), mas também de frases como as apresentadas nesta nota, cujos sujeitos, embora de natureza [+animada], não recebem o papel temático de Agente. Agradeço a um revisor anónimo ter-me chamado a atenção para este ponto.

[6] Confrontem-se estes exemplos com os seus correspondentes no Imperfeito simples, perfeitamente naturais, uma vez que, não estando envolvidas as propriedades lexicais do verbo ir, a restrição da agentividade não se coloca:

O vaso caía da varanda habitualmente.

O vento soprava todas as manhãs.

Sublinhe-se, por outro lado, que, na discussão de (13) e (14) que agora nos ocupa, apenas está em causa uma leitura meramente quantificacional, sem quaisquer repercussões em termos de localização temporal; os exemplos melhoram substancialmente se as situações descritas forem projetadas para um intervalo futuro em relação ao Ponto de Perspetiva Temporal selecionado, mas não é essa, no momento, a interpretação que aqui nos interessa.

[7] Embora no presente trabalho muitos dos exemplos selecionados para ilustrar o uso hipotético de ir + Infinitivo com Imperfeito sejam, na realidade, casos de contrafactualidade, na medida em que estes tornam mais evidente a relevância de um tratamento modal para as estruturas sob análise, importa deixar bem claro que, nas línguas naturais, uma frase pode referir-se a mundos possíveis alternativos e não exprimir contrafactualidade (ou seja, não acarretar qualquer comprometimento com a falsidade da proposição em causa no mundo real). Em particular, se a referência a mundos alternativos é desencadeada pela presença na frase de uma dada expressão E, o seu caráter modal não implica necessariamente que E exprima um valor semântico de contrafactualidade. É o que sucede, por exemplo, com as construções condicionais, em que a referência a mundos hipotéticos, alternativos ao mundo real, nem sempre está associada à contrafactualidade. Agradeço a um revisor anónimo ter-me chamado a atenção para este ponto. Não exploraremos aqui, no entanto, os diferentes tipos de modalidade que podem estar associados às frases sob análise, deixando este tópico em aberto para futuras investigações.

[8] Uma abordagem semelhante poderá ser adotada para as frases em que surge a construção ir + Infinitivo com Imperfeito numa leitura de cariz modal. Com efeito, a atribuição de interpretações modais específicas a este tipo de estruturas está fortemente dependente de elementos contextuais e do enquadramento conversacional associado às frases em questão. Por exemplo, a informação de que Dundee sofreu uma lesão no sábado que o fez renunciar à viagem, tomada como “fonte de seriação” para a computação de (31), conduz à interpretação de que o referido futebolista não jogou efetivamente em Telavive (leitura contrafactual). De modo semelhante, a informação veiculada sobre a detenção de Falco força uma interpretação contrafactual de (32). Quando o contexto linguístico ou situacional é omisso quanto ao grau de factualidade a atribuir à construção, ela não exprime um conteúdo modal específico (cf. (51)-(52)). O facto de o grau de factualidade atribuível a estas configurações ser determinado de forma fortemente contextual aponta para um elemento de cancelabilidade (defeasability) no respetivo mecanismo semântico de atribuição, justificando assim, possivelmente, o seu tratamento dinâmico. Consequentemente, parece razoável aventar a hipótese da existência de uma relação estreita entre o referido mecanismo e a componente modal do Imperfeito, particularmente tendo em conta as sugestões de tratamento por meio de noções como a de base modal ou de fonte de seriação, noções estas que remetem tipicamente para um tratamento dinâmico de diversos tipos de modalidade (cf. Kratzer, 2012). Agradeço a um revisor anónimo a chamada de atenção para estes factos.

[9] Obviamente, o paralelismo a que aqui nos referimos é de ordem estritamente temporo-aspetual. Como já observámos em secções anteriores, as duas estruturas diferem significativamente em termos sintáticos, em particular porque apenas a que envolve ir + Infinitivo pode projetar sintagmas preposicionais introduzidos por a ou por para.

[10] O caso das condicionais reveste-se de contornos bastante particulares, uma vez que, em determinadas circunstâncias, a substituição da estrutura ir + Infinitivo com Imperfeito por formas do Imperfeito simples parece ser perfeitamente possível (cf. “Se me saísse o Euromilhões, eu ia comprar um BMW” vs. “Se me saísse o Euromilhões, eu comprava um BMW”. Dado que não é objetivo do presente trabalho aprofundar as propriedades semânticas destes tempos nas condicionais, deixaremos para investigação futura a questão da relação entre ir + Infinitivo com Imperfeito e formas envolvendo o Imperfeito simples nas referidas construções.

[11] Na realidade, parece indiscutível que as situações perspetivadas por ir + Infinitivo com Imperfeito numa leitura hipotética, para além de projetadas num mundo alternativo ao mundo de referência, são necessariamente localizadas num intervalo de tempo posterior ao PPT passado selecionado. Este tipo de relação temporal é particularmente evidente em exemplos em que o PPT se encontra linguisticamente codificado. Numa frase como “O João ia sair quando o telefone tocou”, o evento de “sair”, mesmo que pertencente ao domínio do não realizado, será sempre concebido como posterior ao PPT fixado pelo estado de coisas de “o telefone tocar”.

[12] A atribuição de uma leitura prospetiva ou hipotética, no caso das completivas, parece depender de um vasto conjunto de fatores que incluem não só o tipo de verbo introdutor mas também o contexto linguístico em que as frases são produzidas. O aprofundamento destas questões requer, porém, um estudo minucioso da interação que se estabelece entre os verbos matriz e a construção ir + Infinitivo com Imperfeito, que em muito transcende os objetivos do presente trabalho, pelo que o deixaremos em aberto para uma investigação futura.

[13] Sublinhe-se, mais uma vez, que as leituras quantificacionais de ir + Infinitivo com Imperfeito requerem um tratamento semântico autónomo, na medida em que correspondem a uma estrutura linguística bem distinta, i.e., ir não se comporta como um operador mas preserva tendencialmente as propriedades lexicais básicas que o caracterizam.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons