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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.29 no.1 Braga  2015

 

Morfossintaxe em Fernão de Oliveira (1536)

Morphosyntax in Fernão de Oliveira (1536)

 

Henrique Barroso*

*Universidade do Minho, Portugal.

hbarroso@ilch.uminho.pt

 

RESUMO

É objetivo deste ensaio mostrar que Fernão de Oliveira, tendo-se esforçado por não ficar muito preso aos modelos latinos, traçou as linhas mestras da gramática stricto sensu (ou morfossintaxe) do português do séc. XVI, isto é, identificou as categorias gramaticais que funcionam efetivamente nesta língua.

Palavras-chave: morfologia flexional, categorias morfossintáticas, classes temáticas nominais e verbais, classes de palavras, língua portuguesa, Fernão de Oliveira.

 

ABSTRACT

This essay aims at showing that Fernão de Oliveira, having striven not to stick too closely to the Latin models, traced the master lines of the grammar stricto sensu (or morphosyntax) of the 16th century Portuguese, i.e. identified the grammatical categories that work effectively in this language.

Keywords: inflectional morphology, morphosyntactic categories, nominal and verbal thematic classes, word classes, Portuguese, Fernão de Oliveira.

 

0. Introdução

Num trabalho anterior (Barroso, 2013), dedicado exclusivamente ao tratamento do léxico e da interação da subcomponente morfológica de formação de palavras com esta componente da gramática do português do séc. XVI, levado a cabo por Fernão de Oliveira na sua Grammatica, deixei expresso o compromisso,[1] por forma a que ficasse completa a descrição da componente morfológica, de tratar, tão cedo quanto possível, da interação da subcomponente que se ocupa da combinação de radicais/temas e propriedades morfossintáticas com a sintaxe. Aquela descreve os processos morfológicos implicados na criação neológica, ou seja, a afixação e a composição; esta, por seu turno, o processo morfológico responsável pelas variações próprias de uma classe de palavras considerada no seu todo, isto é, a flexão.[2]

Assim, ao efetivar este compromisso, concluo também esta espécie de revisitação – munido, todavia, de uma ferramenta moderna e atualizada – às componentes da gramática do português de Quinhentos, descritas efetivamentepelo nosso autor na sua Grammatica da Lingoagem Portuguesa, a saber: a fonológica, a lexical e a morfológica ou, se se preferir (à parte a fonológica,[3] e considerando esta propriedade de a morfologia interagir com as demais), a morfolexical, a morfossintática e, ainda, a morfofonológica.

Vejamos, então, o tratamento que Fernão de Oliveira dá à gramática em sentido restrito, ou seja, à morfossintaxe. Antes de mais, porém, deve sublinhar-se que também nesta área foi pioneiro e original, propriedades destacadas já por Coseriu (2000: 50), nestes termos:

[…]. Mas, mesmo nesse tratamento tão sucinto, pode notar-se o seu esforço no sentido de se libertar dos esquemas da gramática latina e de delimitar como tais as categorias gramaticais que funcionam em português. E devemos dizer que consegue traçar em poucas páginas uma gramática portuguesa, em grande parte independente dos modelos latinos.

É, portanto, de morfologia flexional, essencialmente, que se vai tratar nas páginas que se seguem. E, como é óbvio, relativamente ao português dos inícios do séc. XVI, época em que Oliveira viveu, escreveu e publicou o texto cujos capítulos XLIII a XLVIII estão sob escopo neste ensaio, por ser aí precisamente que trata desta matéria.

O conceito de gramática descritiva revelado nesta secção da Grammatica é uma nota inequívoca da sua independência em relação ao(s) modelo(s) latino(s), senão observemos:

Não dizemos aind'agora neste lugar nem livro que cousa é artigo, nem tão-pouco mostramos qual oficio tem, porque aqui não falamos senão das formas ou figuras das vozes ou dições; e para isto só abasta saber que os artigos, na nossa lingua, diversificam ou variam a forma de sua voz em generos, numeros e casos. (Oliveira, 2000 [1536]: 140-141)[4]

Do exposto fica, pois, claro que Oliveira prescinde das definições das categorias (bem como das suas funções), limitando-se apenas a identificar e a descrever as formas que as expressam. Diz isto, acabámos de o verificar, a propósito do artigo. Mas volta a fazê-lo, e de modo ainda mais explícito, no capítulo seguinte, ao tratar “dos nomes e seu genero” (Oliveira, 2000 [1536]: 145):

Não dixemos aqui quantos nem quaes eram os generos dos nomes, nem tão-pouco que cousa é nome, como também fezemos aos artigos e faremos nos verbos, porque do intento desta parte da grammatica que agora tratamos não é mais que só dar noticia das vozes, e não difinções ou determinadas declarações das cousas.

Não só por a terminologia oliveiriana estar em parte (de qualquer modo, menos do que noutras secções) desatualizada (o que não causa estranheza), mas também por isso, e ainda para se entender de modo cabal o que quis dizer quando escrevi, acima, “munido de uma ferramenta moderna e atualizada” – deve ficar já explicitado –, esta reflexão tem como marco de referência teórico os trabalhos de Aronoff & Fudeman (2011), Acquaviva, (2008) e especialmente Booij (2012) e, no que à descrição do português diz respeito, entre vários outros que aqui também poderiam constar, Câmara (1980), Carone (1986), Zanotto (1986), Azuaga (1996), Villalva (2003, 2008), Casanova (2009) e Rosa (2013).

1. Classes de palavras

Inversamente à prática corrente – até porque na tradição greco-latina se assumia como uma das funções típicas desta componente da gramática –, Oliveira não teoriza sobre as ‘classes de palavras'[5] ou, usando uma terminologia que atravessou séculos, ‘partes da oração' ou, ainda, ‘partes do discurso', que foram sendo delimitadas, estabelecidas e classificadas ao longo de um largo período de tempo, antes do seu e que continuou até à atualidade.

Das oito classes de palavras da tradição gramatical latina (nome, pronome, verbo, advérbio, particípio, conjunção, preposição e interjeição), Oliveira menciona (porque não trata, insisto) aquelas que são passíveis de maior variação flexional, a saber e nas suas próprias palavras (último parágrafo do capítulo XLII): “Despois que dissemos em comum o que se nos ofereceo nesta declinação natural, vejamos particularmente dos artigos,[6] nomes e verbos, cuja é esta mais propria.” (Oliveira, 2000 [1536]: 140). Para além destas três, refere uma outra: a dos pronomes – fazendo-o de novo num ápice e na sequência de uma brevíssima reflexão sobre “o estado das cousas e dos casos” ou, numa terminologia de hoje, sobre papéis temáticos (ou semânticos) e funções sintáticas (ou relações gramaticais).

Por não ser objetivo desta sua obra teorizar sobre as classes (e subclasses) de palavras, mas tão-só descrever as formas resultantes da flexão (ou, na sua terminologia, declinação natural), não é pois de estranhar que apenas se lhes refira quando procede à inventariação das respetivas formas e, por consequência, negligencie ou remeta para um segundo plano as que não são afetadas por tal fenómeno linguístico. De qualquer modo, mesmo que indiretamente, seja nesta secção seja noutras, Oliveira não esquece – se estive atento – nenhuma classe.

Nome, adjetivo, verbo, advérbio, interjeição (classes abertas), pronome, determinante, quantificador, preposição e conjunção (classes fechadas) são as classes de palavras que o Dicionário Terminológico regista. Vejamos agora, a esta luz, o que se passa em Oliveira.

1.1. Classes abertas

No que às classes abertas diz respeito, não falta nenhuma. Desde logo, o nome e o verbo, pois dedica-lhes (melhor: às suas formas, como se vai poder ver na secção em que me ocupo das categorias morfossintáticas), respetivamente, os capítulos XLIV-XLV e XLVII-XLVIII.

No nome, distingue as subclasses substantivo e adjetivo (hoje, duas classes autónomas), comum e próprio, para além de outras relacionadas com a formação de palavras (diminutivo e aumentativo, verbal e denotativo); e, no verbo, apenas as subclasses pessoal e impessoal. Isto pode confirmar-se, praticamente por inteiro, neste excerto (Oliveira, 2000 [1536]: 134):

E portanto os nomes se conhecem dos verbos e os verbos com os nomes das outras partes, porque são diferentes huns dos outros, e os nomes se conhecem por outros nomes, e os verbos por outros verbos, porque são em alghũa cousa e voz semelhantes cada parte destas com as outras do seu género; e contudo não tanto que não tenham alghũas miudezas diferentes ou diferencias mais meudas e particulares, como o nome ser comum ou próprio, ajetivo e substantivo, e o verbo pessoal ou impessoal.

O advérbio, porque não é uma classe sensível à variação flexional, não é referido nesta secção, mas noutra dedicada à formação dos advérbios em -mente, e nestes termos (Oliveira, 2000 [1536]: 140):

Na declinação natural, onde falamos das dições tiradas podemos também meter os averbios, os quaes, quando são tirados, polla maior parte ou sempre acabam em mente, como compridamente, abastadamente, chammente; e porém ha hi muitos que não são tirados, como antes, despois, asinha, logo, cedo, tarde.

Por fim, a interjeição, que rigorosamente não constitui uma autêntica classe de palavras por não estabelecer relações sintáticas com outras (palavras), está documentada, por exemplo, nesta passagem (Oliveira, 2000 [1536]: 98): “[…]. Mas antre nós eu não vejo alghũa vogal aspirada, se não é nestas interjeições uha e aha e nestoutras de riso ha-ha, he, ainda que não me parece ese bo riso português, posto que o assi escreva Gil Vicente nos seus Autos.”

1.2. Classes fechadas

No que concerne às classes fechadas, a afirmação de que não falta nenhuma, como se fez para as abertas, já não pode ser tão perentória. Pelo menos assim, tout court. Ora, vejamos.

Tratadas de facto (e só as suas formas, é claro), nesta secção, foram-no apenas o artigo e o pronome, respetivamente, nos capítulos XLIII e XLVI. Em rigor: daquele, as formas do artigo definido e, deste, algumas formas do pronome pessoal.

O artigo não existia em latim, mas em grego, pelo que é uma novidade oliveiriana a sua consideração como classe autónoma em português (hoje, é uma subclasse do determinante). Quanto às suas formas, eis o que escreve Oliveira (2000 [1536]: 140-141): “[…] os artigos, na nossa lingua, diversificam ou variam a forma de sua voz em generos, numeros e casos. Em generos, como o e a; e em numeros, como os e as; e em casos, como o, do, ò [ao], o; a, da, à, a; os, dos, òs [aos], os; as, das, às, as.”[7]

Relativamente ao pronome, para além do que já se disse, praticamente nada mais há a acrescentar, a não ser as formas, reportadas deste modo por Oliveira (2000 [1536]: 150): “E contudo nós também temos casos em três pronomes, os quaes são eu, me, mi, tu, te, ti, se, si.”

A preposição e a conjunção, um pouco à semelhança do advérbio, e de modo particular por carecerem absolutamente de estrutura morfológica, não são aqui tidas em consideração. Porém, menciona-as, quando escreve (Oliveira, 2000 [1536]: 124), por exemplo, “[…], e muitas conjunções e preposições e averbios e outras partes, assi das que eles dizem que se não declinam como também das declinadas, ora sejam artigos ou quaesquer outras.”, e também (Oliveira, 2000 [1536]: 142) “[…]. Mas as primeiras partes daqueles ajuntamentos a em ao, e para em parao são preposições; e o artigo que trazem despois de si não é dativo, mas pospositivo, o qual se segue sempre despois de preposição e não algum outro caso.”

No que diz respeito às restantes subclasses do pronome e do determinante e à classe do quantificador, não nos diz nada de concreto (nem de definitivo) em nenhuma secção da obra. No entanto, ao fazer a descrição do género e do número nominais, por exemplo, vemos que integra nos nomes o que hoje se denomina ‘quantificadores' (dous, três, treze) e ‘pronomes' (isto, isso, aquilo; quem, alguém, ninguém) e, ainda, ao falar da contração de preposições com o artigo (compostos ou juntos, como ele os denomina) no, do, polo e co, escreve o seguinte (2000 [1536]: 142): “E não somente estas e outras composições se fazem com os artigos; mas também antreposições muitas vezes, como di-lo-emos por diremos o, amo-lo-iamos por amariamos o. E contudo nestas antreposições aquelle artigo o que se alli antrepõe é relativo, alghum tanto diferente daqueloutros.”, que nos deixa naturalmente a pensar.

E aqui termina este percurso pelas categorias sintáticas cujas classes abertas, de modo particular, manifestam significação gramatical de primeiro grau. Voltemo-nos, agora, para o das significações gramaticais de segundo grau[8] que em geral se manifestam flexionalmente no nome (flexão nominal) e no verbo (flexão verbal), isto é, o das categorias morfossintáticas.

2. Categorias morfossintáticas

Uma categoria morfossintática é obrigatória para uma classe de palavras tomada como um todo numa determinada língua (Rosa, 2013: 120). Consideremos dois exemplos. O primeiro, da língua latina: o caso, combinado com o número, é obrigatório para o nome em latim, ou seja, todos os nomes latinos têm teoricamente doze formas: seis para o singular e seis para o plural determinadas pelos casos nominativo, vocativo, acusativo, genitivo, dativo e ablativo. Agora o segundo, da língua portuguesa: o número é obrigatório para o nome em português, isto é, todos os nomes portugueses apresentam teoricamente duas formas: uma para a unidade (singular) e outra para dois ou mais (plural).

Não só porque Oliveira (2000 [1536]: 141) observou a diferença entre número nominal e número verbal de forma explícita (“Todavia não temos plural sem s nos nomes e artigos, digo, porque os verbos vão por outro caminho.”), mas também por essa razão, vamos seguir este procedimento: tratar, à parte, as categorias morfossintáticas, começando pelas nominais e passando, depois, às verbais.

2.1. Categorias morfossintáticas nominais

2.1.1. Caso

Obviamente, o caso não é, como já não o era quando Oliveira escreveu sobre a matéria, uma categoria morfossintática de manifestação flexional em português. Trata(va)-se de um processo antigo ainda em funcionamento, e apenas numa subclasse de palavras, como se deixou registado acima: a do pronome pessoal.

Portanto, os casos, na classe de palavras nome, como observou já Coseriu (2000: 51), são mantidos como tipos de funções oracionais, e reduzidos a quatro: nominativo, genitivo, dativo e acusativo, e, com exceção do penúltimo, com novas designações, respetivamente: prepositivo, possessivo, (dativo) e pospositivo. Porém, nunca categorias morfológicas: para Oliveira, em português só há declinação de casos em alguns pronomes. Os artigos é que são as marcas das funções oracionais: o, a, os, as (com o e a pequenos, como diz Oliveira), para o ‘prepositivo'; do, da, dos, das (também com o e a pequenos), para o ‘possessivo'; ao, à, aos, às (com o e a grandes), para o ‘dativo', e o, a, os, as (igualmente com o e a pequenos), para o ‘pospositivo'.

2.1.2. Género

O género, não muito diferentemente do que se passa com o caso, também não era (não é) uma categoria morfossintática de manifestação flexional em português. Tentemos entender a extensão desta afirmação.

Inteiremo-nos, antes de mais nada, do pensamento de Oliveira (2000 [1536]: 143):

As declinações dos generos são muitas e menos para comprender, porque, posto que os nomes acabados em hũa letra qualquer sejam mais d'hum genero que doutro, não por isso se pode dar regra universal, como nestas duas letras a e o, das quaes hũa é mais masculina e outra feminina. E contudo têm suas faltas, porque isto, isso e aquilo são acabados em o e não são masculinos, mas são de genero indeterminado, não neutro como o dos latinos; e eixó, mouçó, queiró e outros são femeninos.

Pelo que escreve, deduz-se que Oliveira tem consciência de que os nomes pertencem obrigatoriamente a uma classe genérica,[9] mas não apresentam um marcador geral/universal, capaz de os compreender a todos. Por consequência, o que nos apresenta são – dir-se-ia hoje assim – classes temáticas do nome, lexicalmente determinadas. Ora, vejamos:

(i) Formas de tema em -a: moça (feminino).

(ii) Formas de tema em -o: moço (masculino); isto, isso e aquilo (indeterminado).

(iii) Formas de tema em -e: almadraque (masculino); alface (feminino).

(iv) Formas de tema -ø: cabeçal, papel, barril, rol, lagar, alcacer, suor, ardor, Artur, entrás, invés, retrós, rapaz, enxadrez, pez, almofariz, arroz, catramoz, alcatruz (masculino); flor, raiz, Cataroz, nome de mulher (feminino); maior, menor, milhor e pior, ingrês (comum).

(v) Formas atemáticas: queiró, chaminé, rezão, cidadã, linhagem (feminino); alquiçé, guadameci, Calecu, pao, breu, melão, almazém, patim, tom, jejum (masculino); alguém, ninguém e quem (indeterminado).

(vi) Formas com constituintes temáticos marginais: Marcos (masculino).[10]

Perante esta realidade, reparemos agora como Oliveira (2000 [1536]: 145) termina esta sua descrição do género: “Porque era longo comprender tanta variedade de terminações, ajudou-nos a natureza e uso da nossa lingua com os artigos, os quaes sempre ou as mais vezes acompanham os nomes cuja companhia declara os generos desses nomes.” Isto significa que a indicação do género dos nomes, no séc. XVI, já se fazia, tal como hoje, sintaticamente, ou seja, usando as formas do artigo (ou, de acordo com o conhecimento atual, de um qualquer outro determinante) para o declarar, isto é, para explicitar a sua classe genérica.

2.1.3. Número

O número, como foi referido já, era (e é), contrariamente às duas anteriores, uma categoria morfossintática de manifestação flexional na língua portuguesa, pelo menos o valor ‘plural' marcado geralmente pelo acréscimo de -s à forma do singular. E podemos dizer que é sempre assim, só que por vezes com alomorfia – termo não usado por Oliveira mas bem consciente desse fenómeno linguístico, senão vejamos (Oliveira, 2000 [1536]: 145): “[…] Mas isto de diversas maneiras porque às vezes acrecenta também outras co'ella, e às vezes tira alghũas e outras também muda, ficando sempre o s no plural.”

Depois desta breve apresentação teórico-descritiva, passa de imediato a explicitá-las (as diversas maneiras e/ou casos/contextos de ocorrência, ou seja, a sua distribuição), e mais ou menos nestes moldes:

(i) Nomes terminados em vogal ou ditongo oral, apenas -s: livro/livros, porta/portas; pao/paos, ceo/ceos.

(ii) Nomes terminados em til, isto é, vogal nasal, também só -s: vilã/vilãs, som/sons, jardim/jardins.

(iii) Nomes terminados em consoante formam o plural de dois modos: primeiro, os terminados em l (precedido de qualquer vogal, exceto i)[11] mudam este l em i e acrescentam -s, que é a marca própria do plural como: real/reais; pichel/picheis, caracol/caracois, taful/tafuis; segundo, os terminados em r, s ou z acrescentam -es à forma do singular: lagar/lagares, revés/reveses, cabaz/cabazes.

Ainda no que a este assunto diz respeito, impõe-se fazer um apontamento sobre os nomes terminados em ditongo nasal, e por duas razões: uma sincrónica e outra diacrónica.

Sincronicamente, Oliveira diz serem duas as maneiras de formar o plural destes nomes: primeira, tal como se terminassem em vogal nasal, acrescenta-se -s (mãi/mãis, mão/mãos); segunda, com alomorfia ou, como escreve (Oliveira, 2000 [1536]: 146), “[…] com ditongo e til mudam alghũa das vogaes desse ditongo ou ambas, […]”: tabalião/tabaliães (aqui, muda uma só letra, nas suas palavras) e cordão/cordões (aqui, mudam ambas as letras, escreve – reportando-se evidentemente, nos dois casos, a um processo morfofonológico).

Agora, a razão diacrónica: segundo Oliveira (2000 [1536]: 147), há nomes que alteram o ditongo por completo e que, por isso, parecem exibir uma maior mudança do que os demais. Lição/lições, podão/podões, melão/melões são apenas alguns exemplos. Porém, esta mudança é só aparente, uma vez que se está na perspetiva sincrónica (uniformização do singular em -ão) porque, diacronicamente, a forma do singular era diferente, o que explica as distintas formas do plural, assim: Singular antigo: liçom, podom, melom + e e s > Plural (no séc. XVI e ainda hoje, séc. XXI): lições, podões, melões. O mesmo é válido para outras formas antigas do singular: + e e s > pães, + e e s > cães (já do latim, acusativo do plural, panes > pães canes > cães, lectiones > lições, etc., com a evolução fonética normal).

No termo da sua descrição, Oliveira (2000 [1536]: 148) afirma que, relativamente à variação do nome no plural, o português conhece quatro declinações: (i) a que acrescenta a letra s (moço/moços), (ii) a que acrescenta sílaba (pavês/paveses), (iii) a que muda letra (animal/animais) e, por fim, (iv) a que muda sílaba (almeirão/almeirões).[12] Ora, como se assinalou já, é de alomorfia e da relação entre morfologia e fonologia que se trata ou, numa formulação concisa, de processos morfofonológicos.

2.2. Categorias morfossintáticas verbais

No início do capítulo XLVII (o primeiro dos dois dedicados aos verbos), Oliveira (2000 [1536]: 150) afirma serem “[…] diversas as vozes desses verbos em generos, conjugações, modos, tempos, numeros e pessoas, […]”. Isto quer dizer que, nesta secção, trata exclusivamente, como se diria hoje, da flexão verbal, ou seja, das distintas formas do verbo determinadas por outras tantas categorias gramaticais de segundo grau próprias desta classe de palavras e/ou que também a afetam.

Não sendo explícito no que aos generos diz respeito (simplesmente, que o português tem “hũa só voz acabada em o pequeno, como ensino, amo e ando, a qual serve, como digo, em todos os verbos, […]” (Oliveira (2000 [1536]: 150)), identifica a seguir três conjugações (em ar, em er e em ir), chamando a atenção para a natureza idiossincrática deste infinitivo: pôr (de poer, forma antiga).

Por fim, e depois de um breve apontamento sobre o conceito de ‘conjugação', procede, sem mais, ao levantamento das formas do paradigma verbal (não as esgotando, contudo),[13] que passo a reportar em termos de descrição atual, ou seja, integrando-as nos dois conjuntos de categorias morfossintáticas (verbais) seguintes: no primeiro conjunto, temos a codificação morfológica da informação sobre tempo, aspeto e modo e, no segundo, a da concordância com o sujeito frásico.

2.2.1. Tempo-aspeto-modo

Assim, segundo Oliveira (2000 [1536]: 151-152), as conjugações, que são três, têm modos, como falamos, falemos, falae e falar, que são, sem o ter contudo explicitado, respetivamente, ‘indicativo', ‘conjuntivo', ‘imperativo' e ‘infinitivo', e cada modo tem tempos, como falo, falava, falei e falarei, ou seja, ‘presente do indicativo', ‘pretérito imperfeito do indicativo', ‘pretérito perfeito do indicativo' e ‘futuro (simples) do indicativo' ou, de acordo com Câmara (1980: 100), ‘futuro do presente do indicativo'.

De modo ainda mais lacónico do que o verificado na apresentação/descrição das formas verbais resultantes das categorias modo e tempo, Oliveira diz que os verbos do português têm também ‘gerúndio' (sendo, amando, fazendo) e ‘particípio passado' (lido, amado, regido)[14], não se pronunciando contudo sobre a sua categorização: modos? Tempos? Outras categorias?

2.2.2. Pessoa-número

Para concluir o paradigma verbal, diz que os tempos têm números, como falo e falamos, falas e falaes, fala e falam, isto é, ‘singular' (as três primeiras formas de cada par) e ‘plural' (as três segundas), e cada número tem pessoas, como falo, falas, fala, falamos, falaes, falam, ou seja, ‘1.ª', ‘2.ª' e ‘3.ª pessoas do singular' e ‘1.ª', ‘2.ª' e ‘3.ª pessoas do plural'.

Ainda uma nota final: atento como estava, não lhe passou evidentemente despercebida a defetividade (que apenas assinala, mas não explicita nem explica), propriedade das línguas naturais humanas corroborada por aquelas que talvez conheça melhor: o grego e o latim. Eis como reporta ele (Oliveira (2000 [1536]: 152) este fenómeno linguístico:

“E porém alghuns verbos não têm todos os modos e outros faltam em tempos; e assi em cada hũa das outras cousas também às vezes alghuns verbos têm alghũa falta, ao menos em não seguir as regras geraes da formação das suas conjugações, porque assi na analogia dos verbos como das outras partes não temos regras que possam comprender todos, senão os mais. Do que nos não havemos d'espantar, porque os gregos, cuja lingua é bem concertada, têm hum bo caderno de verbos irregulares e alghuns nomes; e os latinos têm outro tão grande de nomes com seus verbos de companhia.”

Oliveira não explicita a defetividade na flexão verbal, por um lado, porque é seu intento fazê-lo noutro local (não nos chegou, porém, absolutamente nada…) e, por outro, porque o objetivo desta sua obra é “[…] apontar os principios da grammatica que temos na nossa lingua.” (Oliveira (2000 [1536]: 152) As leis gerais, portanto.

3. Conclusão

Pela exposição que acabo de fazer, fica-se a saber que Oliveira se esforçou por traçar as linhas mestras da gramática stricto sensu (ou morfossintaxe) do português do séc. XVI sem se prender demasiado aos modelos latinos, e conseguiu-o plenamente.

Com efeito, a começar pela conceção de ‘gramática descritiva' (relega as definições das categorias e toma apenas em consideração as formas que as palavras exibem), passando pela não teorização das ‘classes de palavras', bem ao contrário do que ditava a tradição (serve-se delas e introduz a do artigo como classe autónoma, inexistente em latim), continuando com a referência aos ‘casos' (que são mantidos como tipos de funções oracionais) e com o reconhecimento da inexistência da classe genérica neutro, e terminando com a distinção das classes temáticas (nominais e verbais) bem como das categorias morfossintáticas (que afetam as classes de palavras nome e verbo), opondo as de expressão flexional às de expressão lexical e/ou sintática, não restam quaisquer dúvidas de que Oliveira foi bem para além dos modelos latinos – o que denota um espírito arguto e, em certo sentido, revolucionário.

Também se pode observar, nesta descrição oliveiriana da gramática do português do séc. XVI, que não há notas soltas, atomisticamente dispostas, mas gerais, que afetam a língua como um todo: para ele, como assinalou já Coseriu (2000: 54), as línguas são uma estrutura, um sistema de regularidades – daí o confronto constante entre as regras e as realizações.

 

Referências

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Notas

[1] Cf. Barroso (2013: 116), nota 4, que reproduzo aqui: “Desta matéria não vou tratar neste ensaio, mas num outro a escrever muito brevemente, intitulado ‘Morfossintaxe em Fernão de Oliveira (1536)' ”

[2] Convém ter presente (é uma outra focalização) que a(s) forma(s) de palavra resultante(s) da flexão documenta(m) uma parceria interacional morfologia-fonologia nada despicienda.

[3] Cf. Barroso (2009), onde tratei, com um certo detalhe, desta componente da gramática do português do séc. XVI.

[4] Todas as citações que aparecem ao longo do texto são feitas a partir da edição crítica, semidiplomática e anastática de Torres & Assunção (2000).

[5] Hoje, e de acordo com o Dicionário Terminológico, trata-se de um subdomínio da Linguística Descritiva situado entre os da Morfologia e da Sintaxe. As classes de palavras são conjuntos de palavras que partilham as mesmas propriedades sintáticas, morfológicas e/ou semânticas.

[6] Os negritos são meus.

[7] Para além destas formas (as obtidas de acordo com as regras da gramática do português), Oliveira fala de uma outra, no último parágrafo do capítulo XLIII, nestes termos: “Aqui quero lembrar como em Portugal temos hũa cousa alhea e com grande dissonância onde menos se devia fazer, a qual é esta: que a este nome rei damos-lhe artigo castelhano chamando lhe el-rei. Não lhe havíamos de chamar senão o rei, posto que alguns doces d'orelhas estranharão este meu parecer, se não quiserem bem olhar quanto nelle vai.” (Oliveira, 2000 [1536]: 142). Trata-se de um empréstimo do castelhano, usado com uma função de ‘distinção'.

[8] Sobre significações gramaticais de primeiro e segundo grau, cf. Carvalho (1979: 212-214).

[9] Para além das três aqui explicitadas (masculino, feminino e indeterminado), Oliveira fala ainda de uma quarta classe, a saber: comum. E, como se pode ver claramente, o neutro, uma classe genérica do latim, não está representado em português. Eis mais uma marca que denota, por um lado, o afastamento de Oliveira em relação ao modelo gramatical latino e, por outro, a análise acurada e atenta que faz do português.

[10] Villalva (2003: 921-925) identifica, para o português europeu atual, nada mais nada menos que 23 classes temáticas para os nomes e 9 para os adjetivos, sublinhando, um pouco como fizera Oliveira há quase cinco séculos, que a “complexidade deste sistema decorre do grande número de distinções existentes e da quase impossibilidade de estabelecer generalizações.” (Villalva, 2003: 923).

[11] Nestes casos, opina, apenas muda o l em s: ceitil/ceitis. Ainda, para -ol, admite estas exceções: portacol/portacolos (e não portacois nem portacoles), sol/soles (e não sois) (Oliveira, 2000 [1536]: 148).

[12] Ainda no que concerne à descrição do número, Oliveira (2000 [1536]: 148-149) acrescenta que há nomes que (i) não têm plural (prol, retrós; isto, isso, aquilo; quem, alguém, ninguém), (ii) outros que não têm singular (dous, três, seis, ambos e ambas) e (iii) outros que não têm s, que é a marca do plural, mas significam ‘muitos' (quatro, cinco, dez, doze). Suponho que Oliveira procede deste modo porque, por um lado, não distingue as várias classes de palavras (são todas nomes ou, pelo menos, trata-as como tal, mas sabemos que, hoje, temos aqui representadas, só nestes exemplos, três classes: nome, pronome e quantificador) e, por outro, é notória a interseção entre número-categoria semântica e número-categoria morfossintática.

[13] Não regista as formas para o ‘pretérito mais-que-perfeito do indicativo', ‘condicional' (ou, também se diz, ‘futuro do pretérito do indicativo'), ‘pretérito imperfeito do conjuntivo', ‘futuro do conjuntivo', pelo menos.

[14] Ao lado destas formas de ‘particípio' (simplesmente, como escreve), Oliveira coloca também lente, regente, perseverante. Estas formas, como sabemos, não fazem, hoje, parte do paradigma verbal. São formas do antigo ‘particípio presente' que funcionam na atualidade como nomes e/ou adjetivos obtidos por ‘derivação', o lado da ‘declinação' afeto à criação neológica, tal como a entendiam Oliveira e a sua fonte, Varrão (‘flexão' é o outro lado).

Oliveira também integra neste paradigma os ‘nomes verbais' do tipo lição e regedor, que devem interpretar-se do mesmo modo que os precedentes.

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