SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.29 número1José de Azevedo Ferreira (†1995-2015)A palavra do manuscrito: de regresso ao mais antigo texto literário em português índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Indicadores

Links relacionados

  • No hay articulos similaresSimilares en SciELO

Compartir


Revista Diacrítica

versión impresa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.29 no.1 Braga  2015

 

IN MEMORIAM

Ordem de palavras e polaridade: inversão nominal negativa com algum / alguno e nenhum

 

Ana Maria Martins*

*Universidade de Lisboa, Portugal.

anamartins@letras.ulisboa.pt

 

RESUMO

Este trabalho trata do contraste interpretativo que resulta da colocação pré-nominal ou pós-nominal do quantificador indefinido algum (e.g. alguma coisa vs. coisa alguma) e procura explicar, numa perspetiva formal, diacrónica e comparativa, a relação entre ordem de palavras e polaridade (i.e., a oposição positivo/negativo). A análise proposta explora a hipótese de paralelismo estrutural entre frases e expressões nominais (especificamente quanto à categoria NegP) e leva à identificação de um conjunto de mudanças sintáticas correlacionadas que ocorrem no português a partir do século XVIII. Entre elas está a expansão das estruturas de inversão nominal negativa (que passam a incluir também o quantificador indefinido nenhum), a substituição dos pronomes algum e nenhum, com referência [+humana], por alguém e ninguém, e a generalização do uso do artigo definido antes de possessivo. As diferenças e semelhanças entre o português e o espanhol no que diz respeito à inversão nominal com algum/alguno são analisadas numa perspetiva teórica e diacrónica.

Palavras-chave: itens de polaridade negativa, quantificadores indefinidos, inversão nominal negativa, mudança linguística, português, espanhol.

 

ABSTRACT

This work deals with the interpretive contrast that results from placing the indefinite quantifier algum in prenominal or postnominal position (e.g. alguma coisa ‘something' vs. coisa alguma ‘nothing') and seeks to explain the observed relationship between word order and polarity (i.e. the opposition positive/negative) in a formal, diachronic and comparative perspective. The proposed analysis explores the hypothesis of structural parallelism between clauses and nominal expressions (specifically vis-à-vis NegP) and leads to the identification of a set of related syntactic changes taking place in Portuguese from the 18th century. These changes include the expansion of nominal negative inversion from algum to nenhum (‘none'), the loss of algum and nenhum as strong pronouns with a [+human] feature, and the generalization of the use of the definite article before possessives. Last but not least, the paper describes the differences and similarities between Portuguese and Spanish nominal negative inversion with algum/alguno and accounts for them in a theoretical and diachronic perspective.

Keywords: negative polarity itens, indefinite quantifiers, nominal negative inversion, linguistic change, Portuguese, Spanish.

 

0. Introdução

Este artigo ocupa-se do contraste interpretativo que o par de frases em (1) ilustra e procura explicar, numa perspetiva formal, diacrónica e comparativa, a relação entre a posição pré-nominal ou pós-nominal do quantificador indefinido e a oposição polar positivo/negativo.[1] A análise proposta leva à identificação de um conjunto de mudanças sintáticas correlacionadas que ocorrem no português a partir do século XVIII, consolidando-se nos séculos seguintes. Entre elas está a expansão das estruturas de inversão nominal negativa que, a par do quantificador indefinido algum, passam a incluir também o quantificador indefinido nenhum. Daí o paralelismo entre algum e nenhum no que diz respeito, por exemplo, ao contraste de gramaticalidade entre (2a) e (2b). Em (2a), a inversão nominal negativa, ou seja, a ordem [N+algum/nenhum], torna possível a modificação de grau pelo sufixo –íssima, opção excluída em (2b) onde não há inversão da ordem regular algum/nenhum-N(ome).

(1) a. Algum lugar se parece com este.

b. Lugar algum se parece com este.

(2) a. Ainda não o vi fazer coisíssima {nenhuma/alguma}.

b. *Ainda não o vi fazer {nenhuma/alguma} coisíssima.

A análise formal proposta para integrar os factos descritos apoia-se na ideia de paralelismo estrutural entre a frase e o sintagma determinante (DP), em particular no que diz respeito à projeção da categoria funcional NegP.[2] Assume-se (3a), abaixo, como estrutura básica do DP (cf. Bernstein (1991, 2001), Zamparelli (1995), Heycock e Zamparelli (2000, 2005), Borer (2005), entre outros), e (3b) como estrutura de um DP com inversão nominal negativa. Em (3b) a projeção de NegP dentro do DP bloqueia a ocorrência de Pl(ural)P. Que NegP pode ser parte da estrutura funcional do DP tem sido proposto por vários autores, com base em diferentes tipos de evidência empírica (cf. Haegeman (2002), Haegeman e Lohndal (2010), Troseth (2009), Aelbrecht (2012)).

(3) a. [DP [NumP [PlP [NP…

b. [DP [NegP [NumP [NP…

A unidade [N+algum] será caracterizada como um item de polaridade negativa (IPN) que se forma na sintaxe por incorporação do Nome e do quantificador indefinido num núcleo negativo nulo, como se exemplifica em (4) abaixo. O movimento cíclico do nome através da estrutura funcional do DP determina que este se associe ao quantificador indefinido no caminho para o lugar final de incorporação.

(4) [DP… [NegP [Neg' [ coisai alguma ]k [NumP [Num' [ coisai alguma ]k [NP coisai ] ] ] ] ] ]

Mostrar-se-á que o português europeu oferece evidência empírica clara a favor da análise de [N+algum] como uma unidade, ou seja, um IPN composto na sintaxe. Numa perspetiva comparativa, a unidade formada pelo nome, o quantificador indefinido e o núcleo negativo abstrato apresenta no português um nível mais avançado de gramaticalização do que no espanhol. Por outro lado, a unidade [N+alguno] do espanhol contemporâneo assemelha-se à unidade [N+algum] do português dos séculos XVII-XVIII, pelo que a comparação entre as duas línguas se revela muito interessante numa perspetiva diacrónica.

O artigo está organizado em cinco secções. Na secção 1, descreve-se o comportamento de [N+algum] relativamente à negação frásica, tomando como termo de comparação o IPN ninguém, e identificam-se outras propriedades relevantes, tais como a impossibilidade de pluralização. Além disso, demonstra-se, com base em argumentos empíricos, que na estrutura invertida o IPN é [N+algum] e não o quantificador indefinido algum por si (o que significa que algum não é lexicalmente ambíguo, mas um item de polaridade positiva normal). Mostra-se também que a unidade [N+algum] partilha um importante conjunto de propriedades com a unidade [N+nenhum]. O termo inversão nominal negativa é usado para identificar o processo que leva à formação deste tipo de itens de polaridade negativa. Todos os dados do português apresentados na secção 1 pertencem à variedade europeia.[3] Na secção 2 comparam-se o português e o espanhol contemporâneos relativamente à inversão nominal negativa com algum/alguno e descrevem-se as semelhanças e diferenças entre as duas línguas. Propõe-se que o IPN formado por inversão nominal negativa sobe no português para uma posição mais alta na estrutura funcional do DP do que no espanhol, como se mostra em (5) e (6) abaixo.[4] Só no português há movimento de Neg para D, o que parece decorrer de propriedades específicas do núcleo Determinante em português (propriedades que, historicamente, se terão definido a partir do século XVIII).

Espanhol:

(5) [DP [D' [e] [NegP [Neg' [ animali ]k [NumP alguno [Num' [ animali ]k

[NP animali ] ] ] ] ] ]

Português

(6) [DP [D' [ animali algum ]k [NegP [Neg' [ animali algum ]k [NumP [Num'

[ animali algum ]k [NP animali ] ] ] ] ] ]

Na secção 3 introduz-se informação de natureza histórica que apoia a análise proposta. Ao mesmo tempo, mostra-se como a formulação de uma hipótese teórica (no âmbito de uma análise formal) pode trazer à superfície dados históricos e correlações diacrónicas que tinham escapado à observação dos historiadores da língua. A secção 4 conclui o artigo com uma breve referência à evolução histórica do italiano alcun(o) e do francês aucun de itens de polaridade positiva para itens de polaridade negativa. Fora do âmbito do presente trabalho fica o período histórico anterior ao século XVII, que foi estudado em Martins (2015).

1. Inversão nominal negativa com algum/nenhum em português europeu

No português europeu contemporâneo, o quantificador indefinido algum é um item de polaridade positiva fraco que parece transformar-se num item de polaridade negativa forte quando ocorre em posição pós-nominal (uso aqui a tipologia dos itens de polaridade proposta em Martins (1996, 2000)). Assim, o par algum animal/animal algum, em (7), exibe o mesmo tipo de contraste interpretativo e gramatical que o par alguém/ninguém, como exemplificado em (8), ainda que no segundo caso o par seja constituído por duas palavras antónimas e no primeiro por duas ordenações diferentes das mesmas palavras.

(7) a. Algum animal vive aqui. [frase declarativa afirmativa]

b. Animal algum vive aqui. [frase declarativa negativa]

(8) a. Alguém vive aqui. [frase declarativa afirmativa]

b. Ninguém vive aqui. [frase declarativa negativa]

No que diz respeito, em particular, à interação com a negação proposicional, a sequência invertida [N+algum] e as palavras negativas como ninguém apresentam o mesmo tipo de assimetria entre posição pré-verbal e posição pós-verbal. Quando em posição pós-verbal, tanto o indefinido negativo ninguém como a sequência invertida [N+algum] co-ocorrem necessariamente com o marcador de negação predicativa (exs. (a)-(b) abaixo). Quando em posição pré-verbal, tanto o indefinido negativo ninguém como a sequência invertida [N+algum] asseguram só por si a interpretação negativa da frase e não podem co-ocorrer com não (exs. (c)-(d) abaixo). O paralelismo entre a unidade [N+algum] e a palavra ninguém relativamente à negação frásica exemplifica-se em (9) e (10). Tal como os restantes indefinidos negativos (ninguém, nada, nenhum), a unidade [N+algum] comporta-se como um IPN forte, especificado com o traço [+neg] (cf. Martins (1996, 2000)).

(9) a. Não vive aqui ninguém.

b. *Vive aqui ninguém.

c. Ninguém vive aqui.

d. *Ninguém não vive aqui.

(10) a. Não vive aqui animal algum.

b. *Vive aqui animal algum.

c. Animal algum vive aqui

d. *Animal algum não vive aqui.

Duas propriedades caracterizadoras da sequência invertida [N+algum] são o bloqueamento da flexão de número e a obrigatoriedade de adjacência entre o quantificador indefinido e o nome. Tal como o IPN pronominal ninguém, e em contraste com o IPN adjetival nenhum, a sequência invertida [N+algum] não admite pluralização. As frases em (11) mostram que a ordem [N+algum] exclui as formas do plural, embora algum pré-nominal as admita.

(11) a. *Animais alguns vivem aqui.

b. Alguns animais vivem aqui.

Por fim, os exemplos em (12) revelam a impossibilidade de um complemento nominal ou um adjetivo ocorrerem entre o nome e algum pós-nominal.

(12) a. *Animal selvagem algum vive aqui.

b. *Animal do deserto algum vive aqui.

Confirma-se assim que a sequência [N+algum] se comporta como uma unidade com características que a aproximam das palavras negativas de natureza pronominal. Os factos acima descritos, e ilustrados pelos exemplos (7) a (12), podem ser derivados a partir da análise estrutural introduzida na secção1 (cf. (3) e (4) acima). Assim:

(i) A sequência [N+algum] comporta-se como um IPN forte, tal como ninguém, porque é um IPN formado na sintaxe com o contributo do núcleo negativo abstrato interno ao DP. O facto de o IPN integrar um nome cria afinidades com os IPNs pronominais.

(ii) A flexão de plural fica bloqueada quando há formação do IPN por inversão nominal negativa porque, por hipótese, quando NegP é parte do DP, Pl(ural)P não é projetado.

(iii) A adjacência estrita entre o nome e algum pós-nominal é o resultado regular do movimento cíclico através da estrutura funcional do DP.

Seguidamente será apresentada evidência empírica adicional a favor da ideia de que a unidade [N+algum] é um IPN composto na sintaxe através da incorporação do nome e do quantificador indefinido num núcleo negativo abstrato interno ao DP. Como este mecanismo de composição sintática de IPNs pode aplicar-se também ao quantificador indefinido nenhum, daqui em diante observaremos em paralelo a inversão nominal negativa com algum e com nenhum. O objetivo será mostrar que a unidade [N+algum/nenhum], sendo globalmente um IPN, apresenta propriedades gramaticais e interpretativas que não têm paralelo nas estruturas sem inversão.

A) Pronomes vs. DPs plenos

[N+algum] e [N+nenhum] são admitidos em contextos que requerem quantificadores pronominais e excluem expressões quantificacionais correspondentes a DPs plenos, como se exemplifica em (13) através de um par de pergunta e resposta. O exemplo mostra que “coisa nenhuma/alguma” pode ocorrer no mesmo contexto em que ocorre o IPN pronominal nada, enquanto “nenhuma/alguma coisa” não é uma opção adequada no mesmo contexto.

(13) [A] O que é que o teu filho gosta de ler?

[B] a. Ele não lê nada.

b. Ele não lê coisa nenhuma.

c. *Ele não lê nenhuma coisa.

d. Ele não lê coisa alguma.

e. *Ele não lê alguma coisa.

Podemos encontrar o mesmo tipo de contraste fora do contexto de pergunta-resposta, como ilustrado em (14) e (15). Ou seja, estando disponível um IPN pronominal, este bloqueia outras alternativas, o que indica que a inversão nominal negativa com algum/nenhum pode criar um IPN de tipo pronominal.

(14) A: Foi tão antipático!

B: a. Ele não é simpático com {ninguém / pessoa nenhuma /

pessoa alguma}.

b. *Ele não é simpático com {nenhuma pessoa / alguma pessoa}.

(15) a. Não posso testemunhar porque não vi {nada / coisa alguma / coisa nenhuma}.

b. *Não posso testemunhar porque não vi {nenhuma coisa / alguma coisa}.

As frases em (16) a (18) foram retiradas de textos jornalísticos (opinião/crónica literária). Em todos os casos a substituição da sequência com inversão nominal negativa por uma sequência sem inversão produziria ou uma frase com interpretação diferente (caso de (16)) ou um resultado estranho (caso de (17)), senão mesmo agramatical (caso de (18)). Na frase (18) é clara a equivalência entre “nada” e “coisa nenhuma”. Quanto a (17), o inglês nowhere seria uma boa tradução para o “em parte nenhuma”, que parece assim estar a desempenhar o mesmo papel que caberia a um advérbio locativo negativo caso o léxico português dispusesse desse tipo de IPN.[5]

(16) Quando ainda não se sabe ou não se quer discutir coisa alguma.

(Expresso, Miguel Sousa Tavares, 01-11-2014)

(17) Elas falam, digo que sim com a cabeça e não estou. Estou onde? Na varanda da Beira a olhar a serra, por exemplo. Ou em parte nenhuma, num esconso interior, sentado no chão, de joelhos na boca, escutando o que não há.

(Visão, António Lobo Antunes, 03-09-2009)

(18) Pelo tom (como se falasse para crianças de cinco anos) e pelo conteúdo (algures entre o nada e coisa nenhuma). A não repetir, seguramente.

(Expresso, 18-09-2010)

B) Respostas negativas a interrogativas polares

As unidades [N+algum] e [N+nenhum] podem constituir uma resposta negativa apropriada a uma interrogativa polar em contextos que excluem as sequências não invertidas. O contraste pode ser explicado sob a perspetiva de que a inversão nominal negativa junta o quantificador indefinido e o nome numa palavra negativa singular, através da incorporação de ambos no núcleo negativo abstrato. Dependendo do grau de vagueza referencial do nome, a palavra negativa assim formada poderá integrar o paradigma de possíveis respostas polares negativas num dado contexto. Os exemplos em (19) e (20) mostram o contraste entre as sequências com e sem inversão.

(19) [A] Vais vender a tua casa?

[B] a. Não.

b. Em circunstância {nenhuma/alguma}.

c. Em caso {nenhum/algum}.

d. #Em nenhuma circunstância.

e. #Em nenhum caso.

(20) [A] Vais lá amanhã?

[B] a. Não.

b. De maneira nenhuma.

c. De forma alguma

d. #De nenhuma maneira.

O exemplo em (21), abaixo, pertence a um texto jornalístico (entrevista) e evidencia a oposição entre a resposta negativa expressa por “de forma alguma” (equivalente neste contexto a “não”) e o que seria uma resposta afirmativa mitigada se substituíssemos a sequência com inversão por de alguma forma. Nesta última interpretação, forma seria um nome contável, o que se liga aos contrates entres leituras massivas e contáveis que comentaremos mais adiante. Por esta razão, mesmo que a resposta incluísse o indefinido negativo nenhum em posição pré-nominal, não se obteria uma resposta negativa (discordante) clara, mas sim uma resposta ambígua entre a concordância e a discordância com a proposição expressa pela pergunta (i.e. “não se devem usar computadores no ensino de nenhuma forma (de entre as formas possíveis)” ou “não quer dizer, de nenhuma forma (sob nenhuma interpretação), que não se devem usar computadores no ensino”).

(21) Quer isto dizer que não se devem usar computadores no ensino? De forma alguma. Mas quer dizer que as novas tecnologias não são, por si só, solução para os problemas de aprendizagem. (Expresso, Nuno Crato, 14-07-2010)

C) Negação enfática

As sequências formadas por inversão nominal negativa com nenhum podem funcionar como itens de reforço da negação enfática expressa por não … nada, o que não é permitido aos DPs com nenhum pré-nominal, como se vê em (22). Neste caso [N+algum] também não parece possível, o que talvez se explique por as frases em (22) serem marcadamente coloquiais e a frequência de uso da inversão nominal negativa com algum estar em declínio, ao contrário do que acontece com a inversão nominal negativa com nenhum (cf. secção 3).

(22) A: Já sei que vais vender a casa da tua avó.

B: a. Não vou nada vender a casa da minha avó.

b. Não vou nada vender a casa da minha avó {coisa nenhuma

/ *nenhuma coisa}

c. Não vou nada vender {casa nenhuma / *nenhuma casa}.

D) Nomes contáveis vs. nomes massivos

A inversão nominal negativa com algum e nenhum interage com a distinção massivo/contável, parecendo bloquear a interpretação contável, como se exemplifica em (23) a (25). Este facto pode ser explicado como consequência da ausência do núcleo Pl(ural) na estrutura do DP quando NegP é projetado. Na verdade, Borer (2005) considera que os nomes são à partida não especificados quanto às propriedades massivo/contável e, na ausência de estrutura funcional acima do NP, são interpretados por defeito como massas. É a presença da categoria funcional PlP na estrutura do DP que permite dividir a denotação dos nomes e tornar a interpretação contável acessível.[6] Nas frases em (a), a posição pré-nominal do quantificador favorece a interpretação contável (que é interpretativamente inadequada em (25a)), enquanto nas frases em (b) a inversão da ordem bloqueia a interpretação contável. Recorde-se que, normalmente, o DP inclui a categoria funcional Pl(ural)P, que deixa de ser projetada apenas quando NegP ocorre internamente ao DP (cf. (3) acima). Assim, nas frases em (a), em que não há inversão nominal negativa, PlP é parte da estrutura do DP, ao contrário do que acontece nas frases em (b).[7]

(23) a. Não vais conseguir chegar de nenhuma maneira. Todos os transportes estão parados.

b. Não vais conseguir chegar a horas de maneira {nenhuma/ alguma}. Não se fazem 40km em 5 minutos.

(24) [Situação: o meu gato só come peixe e nenhum outro tipo de comida]

a. Há três dias que o gato não come nenhum peixe. Estão todos no

aquário. Finalmente!

b. Há três dias que o gato não come peixe {nenhum/algum}. Temos de levá-lo ao veterinário.

(25) a. A: Vou sair.

B: #Não vais a nenhum lugar, ficas a estudar.

b. A: Vou sair.

B: Não vais a lugar nenhum, ficas a estudar.

Para alguns falantes do português, entre os quais me incluo, a inversão nominal negativa é obrigatória em frases negativas com nomes não contáveis como medo, sorte, calor, frio, calma. Daí os contrastes de gramaticalidade entre as frases (a) e (b) nos exemplos (26) a (28). A frase em (29) pertence a um texto jornalístico. A frase correspondente sem inversão nominal negativa seria, de acordo com o meu juízo, agramatical. Uma possível alternativa a (29) seria “…e eu não queria ter calma!” (sem o quantificador indefinido), mas não “*…e eu não queria ter nenhuma calma”.

(26) a. Não temos {medo nenhum / sorte nenhuma}.

b. *Não temos {nenhum medo / nenhuma sorte}.

(27) a. Não temos {medo algum / sorte alguma}.

b. *Não temos {algum medo / alguma sorte}.

(28) a. Não está {calor/frio} algum.

b. Não está {calor/frio} nenhum.

c. *Não está nenhum {calor/frio}.

(29) Toda a gente me dizia para ter calma e eu não queria ter calma nenhuma!

(Público, 05-4-2015)

E) Quantificadores graduáveis

Os quantificadores como muitos e poucos admitem modificação de grau (cf. Solt (2014), por exemplo). Em português, também a palavra negativa nada pode ter modificação de grau, como se vê em (30), onde se atesta a forma nadíssima. Paralelamente a nada, nas sequências invertidas [coisa+alguma] e [coisa+nenhuma], o nome coisa pode ser modificado pelo sufixo superlativo –íssima, originando coisíssima alguma/coisíssima nenhuma (cf. (31) abaixo), embora *coisíssima só por si seja agramatical. Crucialmente, a sequência *nenhuma coisíssima, com nenhum pré-nominal, é fortemente agramatical, como mostra (32). Estes dados suportam a proposta de que a inversão nominal negativa dá origem a uma palavra negativa com características próprias, num processo que altera algumas das propriedades das suas partes constitutivas.

(30) a. E ainda não fez nadíssima! (Google)

b. Acreditem, não quero vender nadíssima a ninguém. (Google)

(31) a. Não me tem doído coisíssima {alguma/nenhuma}.

(CORDIAL-SIN)

b. Não senti dores, não senti nada. Não senti coisíssima nenhuma.

(CORDIAL-SIN)

(32) *Não me tem doído nenhuma coisíssima.

2. Inversão nominal negativa com algum/alguno em português e em espanhol (estrutura funcional do DP e gramaticalização)

Para além do português, também o espanhol permite a inversão nominal negativa com alguno, como se exemplifica em (33).[8] Além disso, o contraste de gramaticalidade entre as frases (a) e (b) de (34) mostra que, tal como no português, a flexão de plural é bloqueada nas estruturas com inversão, i.e. [N+alguno].

(33) a. No he visto película alguna esta semana.

b. La asemblea no planteó problema alguno a la propuesta.

(34) a. No hay solución alguna para esse dilema.

b. *No hay soluciones algunas para ese dilema.

Apesar desta proximidade, a inversão nominal negativa com algum/alguno não tem as mesmas propriedades nas duas línguas As frases em (35) e (36) mostram que, no espanhol, a sequência invertida [N+alguno] precisa de ocorrer sob o escopo da negação para ser legitimada. O IPN [N+alguno] não pode ocorrer antes do verbo e exige sempre a presença do marcador de negação predicativa ou de um outro operador que crie o contexto negativo apropriado.[9] Neste aspeto, o espanhol contrasta com o português. Assim, as frases (35b) e (36b) são agramaticais no espanhol, mas as frases que lhes correspondem em português são uma opção gramatical.

(35) a. No fue necesaria ayuda alguna.

b. *Ayuda alguna fue necesaria.

(36) a. No vive aquí persona alguna.

b. *Persona alguna vive aqui.

As restrições de posicionamento na frase de [N+alguno], em espanhol, evocam a distribuição sintática dos nomes nus (i.e. sem determinante visível), que tal como [N+alguno] ocorrem tipicamente em posição pós-verbal nas línguas românicas. A análise de Longobardi (1994) para os nomes nus sugere uma hipótese para dar conta das diferenças entre o espanhol e o português relativamente à inversão nominal negativa. A distribuição sintática mais limitada do espanhol [N+alguno], em contraste com o português [N+algum], pode ser consequência da necessidade de legitimar o núcleo D nulo na estrutura em (37). Uma vez que o português escapa às restrições de posicionamento na frase que se observam no espanhol, isso indicará que no português há movimento sintático de Neg para D, ou seja, há incorporação da unidade [N+alguno] no núcleo D(eterminante). Logo, deixa de ocorrer na estrutura um núcleo D nulo, como se mostra em (38).

Espanhol:

(37) [DP [D' [e] [NegP [Neg' [ animali ]k [NumP alguno [Num' [ animali ]k

[NP animali ] ] ] ] ] ]

Português

(38) [DP [D' [ animali algum ]k [NegP [Neg' [ animali algum ]k [NumP [Num'

[ animali algum ]k [NP animali ] ] ] ] ] ]

Esta hipótese parece capaz de explicar um outro facto. O espanhol também difere do português na medida em que [N+alguno] pode ser legitimado nos chamados “contextos negativos fracos” (Zwart (1996, 1997)) ou “contextos modais” (Bosque (1996)), como se ilustra a seguir. Na frase (39a) a sequência invertida é legitimada pelo operador temporal antes de, em (39b) pelo verbo de proibição e em (39c) pela subordinada comparativa. Estes exemplos mostram que [N+alguno] é um IPN fraco no espanhol, podendo por isso ocorrer em contextos modais. No português, por outro lado, [N+algum] é um IPN forte e ocorre estritamente em frases negativas (podendo ser o único elemento visível que exprime a negação). Por isso as frases correspondentes a (39a-c) são agramaticais no português. Nos mesmos contextos, o português permite apenas sequências sem inversão (com algum ou qualquer), como se mostra em (40). Nas frases de (40), algum tem o comportamento regular dos itens de polaridade positiva fracos, que podem ser legitimados tanto em contextos afirmativos (assertivos) como em contextos modais.[10] Retomando a ideia de que a inversão nominal negativa envolve um D(eterminante) nulo no espanhol mas não no português, podemos admitir que um IPN formado na sintaxe com movimento de Neg para D (o que acontece apenas no português) é necessariamente um IPN forte. Esta proposta está de acordo com a análise da estrutura do DP elaborada por Zamparelli (1995), que associa a categoria funcional mais alta no domínio do DP com os quantificadores fortes.

(39) a. Durante la peregrinación, constantemente nos sacábamos nuestros

zapatos (…) antes de entrar a lugar alguno [sagrado]. (Google)

b. Jamás mi país le ha prohibido a nadie que viaje a lugar alguno

que desee. (Google)

c. Una comedia cuyos personajes se vistan a este modo tendrá,

por mala que sea, más entradas que otra alguna. (Google)

(40) a. Durante a peregrinação constantemente tirávamos os sapatos

antes de entrar em {*lugar algum / algum lugar} sagrado.

b. Nunca o meu país proibiu a alguém que viaje para {*lugar

algum / algum lugar / qualquer lugar} que lhe agrade.

c. Uma comédia cujos personagens se vistam dessa maneira terá,

por má que seja, mais público do que {*outra alguma /

qualquer outra}.

O espanhol também difere do português porque a inversão nominal negativa com alguno não implica sempre adjacência estrita com o nome. Os modificadores preposicionais não podem intervir entre o nome e o quantificador indefinido, como se vê em (41). Mas os adjetivos avaliativos podem intervir e os adjetivos relacionais ocorrem obrigatoriamente entre o nome e alguno, como se mostra respetivamente em (42) e (43). No português, qualquer modificador do nome só poderá posicionar-se depois da unidade [N+algum], como se exemplifica em (44). É possível derivar o contraste entre o espanhol e o português se considerarmos que o espanhol alguno é inserido na posição de especificador de NumP, e não na posição de núcleo (ou seja, é um XP, não um X0), não sendo por isso afetado pelo movimento cíclico do nome através da estrutura funcional do DP. Comparem-se (37) e (38) acima.

(41) a. No conozco libro alguno de matemáticas que discuta este teorema.

b. *No conosco libro de matemáticas alguno que discuta este teorema.

(42) a. No asistí a conferencia alguna interesante.

b. No asistí a conferencia interesante alguna.

(43) a. *No hay avería alguna eléctrica en este barrio.

b. No hay avería eléctrica alguna en este barrio

(44) E não há “paciência” para quem não pensa assim e não consegue ver o que ele enxerga ao longe, se bem que sustentado em facto algum relevante.

(Expresso, Miguel Sousa Tavares, 1-11-2014)

Os factos acima descritos, a par da total exclusão do correlato de coisíssima nenhuma no espanhol, sugerem que a inversão nominal negativa não envolve, nesta língua, incorporação conjunta do nome e do quantificador indefinido em Neg, nem o subsequente movimento para o núcleo D. Ou seja, em espanhol a sequência [N+alguno] apresenta um grau mais baixo de gramaticalização do que em português. Deste modo, a estrutura (37), acima, parece ser a análise mais adequada para o espanhol, enquanto que no português a inversão nominal negativa corresponderá à estrutura em (38). Numa perspetiva diacrónica, e quando vistas lado a lado, as duas estruturas aparecem como um caso típico de reanálise ascendente (upward reanalysis) ao longo da hierarquia funcional, no sentido de Roberts e Roussou (2003), como se indica em (45).

(45) a. Português dos séculos XVII-XVIII (igual ao espanhol)

[DP [D' [e] [NegP [Neg' [ animali ]k [NumP algum [Num' [ animali ]k

[NP animali ] ] ] ] ] ]

b. Português a partir do século XVIII (a inovação separa o

português do espanhol)

[DP [D' [ animali algum ]k [NegP [Neg' [ animali algum ]k [NumP [Num'

[ animali algum ]k [NP animali ] ] ] ] ] ]

Na próxima secção comprovaremos que antes de ocorrer o processo de reanálise que originou a estrutura em (45b), a inversão nominal negativa com algum/alguno tinha propriedades semelhantes no português e no espanhol. Ou seja, as duas línguas divergiram apenas quando o português evoluiu para além do estádio que o espanhol ainda mantém. Por outro lado, veremos que a coincidência cronológica entre a evolução de [N+algum] e outras mudanças sintáticas ocorridas no domínio do DP, em português, constitui boa evidência em apoio da proposta de análise desenvolvida neste trabalho.

3. Mudança sintática no português moderno: evidência histórico-comparativa e correlações cronológicas

Nesta secção, começarei por mostrar que nos séculos XVII-XVIII o português se comportava como o espanhol nos seguintes aspetos: (i) [N+algum] era legitimado no escopo da negação, ocorrendo normalmente em posição pós-verbal; (ii) era possível a legitimação da inversão nominal negativa em contextos modais (também chamados “contextos negativos fracos”); (iii) a adjacência entre o nome e algum não era obrigatória; (iv) coisíssima alguma não ocorria. De seguida, veremos que é possível identificar uma correlação de mudanças no domínio do DP quando o movimento de Neg para D emerge no português nas estruturas de inversão nominal negativa, ou seja, quando tem lugar a última etapa do processo de gramaticalização de [N+algum].

No Corpus do Português não foi possível encontrar nenhum exemplo de [N+algum] na posição canónica de sujeito ou em qualquer outra posição fora do escopo da negação ao longo do século XVII. Raros exemplos aparecem no século XVIII. É necessário esperar pelo século XIX para se encontrarem facilmente atestações da inovação. Os dados registados no diário do Conde da Ericeira,[11] que cobre o período de 1729 a 1737, apontam no mesmo sentido, mostrando que na primeira metade do século XVIII a evolução divergente do português relativamente ao espanhol ainda não era visível. Há 57 ocorrências de algum pós-nominal no diário (num total de 1.064 ocorrências de algum) mas não há um único exemplo de [N+algum] senão na posição de complemento verbal sob o escopo da negação.

Em (47) e (48), abaixo, apresento exemplos da inovação que transformou [N+algum] num IPN forte, o que determinou que passasse a poder ocorrer fora do escopo da negação, a anteceder o verbo, quer na função de sujeito, como em (48a-b), quer como complemento anteposto, como em (47) e (48c). O exemplo (47) é uma das raras atestações da inovação no século XVIII. Quanto à possibilidade de modificação de grau, as primeiras atestações de coisíssima alguma são do século XIX, e estão exemplificadas em (49).

Século XVIII (Corpus do Português):

(47) Coisa alguma há mais deliciosa que a sua alegria, nem mais penetrante que a sua ternura.

Século XIX (Corpus do Português):

(48) a. Namorado algum, dos mais ardentes, palpitou com tanta febre

no antegozo de uma aventura.

b. Coisa alguma escapou!

c. Em época alguma tinham os criados conhecido Maurício tão caseiro.

Século XIX (Corpus do Português):

(49) a. Nunca recebi favor do Sr. D. Pedro II, nem ele me deve

coisíssima alguma.

b. Não preciso dela para coisíssima alguma.

Antes de ocorrer a mudança que deu à inversão nominal negativa com algum as características que tem no português contemporâneo, o IPN [N+algum] podia ser legitimado em contextos modais, como se mostra em (50) com um verbo de proibição e uma oração temporal introduzida por antes de. Além disso, a adjacência entre o nome e algum não era obrigatória, como revelam as frases em (51). O exemplo (51c) pertence ao século XIX, o que não nos deve surpreender pois o surgimento de uma inovação não significa a sua imediata difusão a toda a comunidade de falantes.[12]

(50) a. ali se defende que pessoa alguma compre trigo (…) para (…)

vender

b. Os admitidos antes de auerem cousa alguma darão fianças

(Corpus do Português, século XVIII)

(51) a. não acharão … qualidade pessoal alguma mais que estas

(Corpus do Português, século XVII)

b. não havendo comércio interno algum em Portugal

(Corpus do Português, século XVIII)

c. sem … elegância moderna alguma

(Corpus do Português, século XIX)

Para concluir esta secção serão identificadas as mudanças gramaticais que parecem estar relacionadas com a alteração da configuração estrutural da inversão nominal negativa com algum. Essas mudanças são: (i) o aumento acentuado da frequência da inversão com nenhum; (ii) a substituição de algum e nenhum como pronomes com o traço [+hum] por alguém e ninguém; (iii) a generalização do uso do artigo definido antes de possessivo. Também a evolução que transformou os indefinidos negativos nenhum, nada, ninguém em IPNs fortes, sem possibilidade de legitimação em contextos modais, provavelmente coincide cronologicamente com as outras mudanças aqui consideradas. Mas deixarei essa matéria fora do presente artigo.

A) Nenhum pós-nominal

A partir do século XIX, há um aumento surpreendente da frequência de nenhum pós-nominal no português europeu. Tomando como referência o Corpus do Português, de um total de 16% de ocorrências no século XVIII, a proporção da colocação pós-nominal de nenhum sobe para 43% no século XIX e aproxima-se dos 50% no século XX. A frequência de [N+nenhum] atinge os 68% no corpus FLY, um corpus de cartas pessoais escritas no contexto de guerra, migração, prisão e exílio, e é superior a 90% no corpus dialetal CORDIAL-SIN. Os dados extraídos do Corpus do Português e do corpus FLY são apresentados nos quadros 1 e 2 abaixo. Estes dados parecem indicar que na etapa final do processo de gramaticalização, a inversão nominal negativa se alargou de algum a nenhum. Nessa altura, a sequência invertida [N+nenhum] torna-se uma opção não marcada e passa a exibir, em paralelo com [N+algum], os efeitos morfológicos e semânticos descritos na secção 1. Numa possível interpretação dos dados empíricos, o processo de inversão nominal negativa será uniforme, sendo a diferença entre [N+algum] e [N+nenhum] superficial. Concretamente, a diferença resultaria de no primeiro caso o núcleo Neg não ter expressão fonológica (sendo um núcleo abstrato/nulo), enquanto no segundo caso os traços do núcleo Neg se realizariam sob a forma de um morfema negativo ligado ao quantificador indefinido (o que, note-se, só é possível na estrutura inovadora (45b), na qual o quantificador indefinido está incorporado em Neg). Se esta hipótese, que deixo para futuro desenvolvimento, puder ser confirmada, indicará que na origem do aumento de frequência de [N+nenhum], em português, está a mudança morfofonológica que permitiu ao núcleo Neg, interno ao DP, ter realização visível. Esta mudança tornou-se possível apenas quando o quantificador indefinido passou a incorporar-se em Neg juntamente com o nome (compare-se (45a) com (45b), acima)).

 

QUADRO 1: nenhum e algum pós-nominais no Corpus do Português

NENHUM

ALGUM

Pré-nominal

Pós-nominal

Pré-nominal

Pós-nominal

Século XVIII

325

63 – 16%

2220

391 – 15%

Século XIX

676

504 – 43%

8726

1152 – 12%

Século XX

(Port. europeu)

1250

1066 – 46%

9821

812 – 8%

 

 

QUADRO 2: nenhum pós-nominal no corpus FLY –

Forgotten Letters Years 1900-1974

Português europeu

Nenhum pré-nominal

Nenhum pós-nominal

Século XX

40

85 – 68%

 

O espanhol não se comporta como o português relativamente à possibilidade de inversão da ordem com nenhum/ninguno. O quadro 3 mostra valores quantitativos baixos para ninguno pós-nominal em espanhol, e com tendência a decrescer ao longo do tempo, em contraste com os dados quantitativos do português revelados pelos quadros 1 e 2. A emergência da inversão nominal negativa com nenhum tornou esta nova opção extremamente comum e natural no português, diferenciando-o do espanhol. Comum às duas línguas é o decréscimo da frequência de [N+algum/alguno].

 

QUADRO 3: ninguno e alguno pós-nominais no Corpus del Español

NINGUNO/NINGÚN

ALGUNO/ALGÚN

Pré-nominal

Pós-nominal

Pré-nominal

Pós-nominal

Século XVII

1206

235 – 16%

3239

879 – 21%

Século XVIII

1553

135 – 8%

4605

2107 – 31%

Século XIX

3587

539 – 13%

6066

2608 – 30%

Século XX

3636

100 – 3%

5232

677 – 12%

 

Em espanhol, ninguno pós-nominal é uma opção marcada, correspondendo a um caso de extraposição com valor enfático (já que a extraposição cria uma configuração de focalização do quantificador indefinido). A demonstrá-lo está não só a evidência quantitativa mas também o facto de a inversão da ordem de palavras com ninguno não ter no espanhol o tipo de efeitos morfológicos e semânticos que observámos para o português e estão descritos na secção 1. As diferenças entre o espanhol e o português quanto à posição de nenhum/ninguno relativamente ao nome estão exemplificadas em (52) a (54). O contraste de gramaticalidade entre (54b) e (54c), em espanhol, é particularmente revelador de que a inversão de ninguno é estruturalmente diferente da inversão de alguno. A primeira corresponde a um tipo de extraposição e não a inversão nominal negativa, pelo que a sequência en tiempo ninguno não se comporta como um IPN equivalente a nunca, jamás.[13]

(52) Espanhol | Português

A: Vas allá mañana? | A: Vais lá amanhã?

B: a. *De manera ninguna. | B: a. De maneira nenhuma.

b. De ninguna manera. | b. #De nenhuma maneira.

(53) Espanhol Português

a. No tenemos ningún miedo. | a. *Não temos nenhum medo.

b. No tenemos miedo ninguno. (enfático) | b. Não temos medo nenhum.

(54) Espanhol Português

a. Nunca, jamás, en ningún tiempo. | a. *Nunca, jamais, em nenhum tempo.

b. *Nunca, jamás en tiempo ninguno. | b. Nunca, jamais, em tempo nenhum.

c. Nunca, jamás, en tiempo alguno. | c. Nunca, jamais, em tempo algum.

B) A substituição dos pronomes algum, nenhum por alguém, ninguém

Os pronomes alguém e ninguém estão atestados no português desde o século XIII. No entanto, ocorrem pouco nos textos medievais, sendo aí preferidas as palavras algum e nenhum, com valor pronominal e o traço [+humano], como ilustrado em (55) e (56).[14]

(55) a. eu digo aqui perante vós que sse hi há algũu que me diga que

eu errei ou fiz algũua cousa contra serviço d'el-rrei meu senhor,

que eu lhe farei conhecer que nom disse nem diz verdade

b. e foi alli preso Garcia Rrodriguez, meirinho-moor d'el-rrei

dom Fernando, sem mais prisom d'outra pessoa nem morte

d'algũu d'hũua parte nem da outra

c. e posto que algũus digam que el nom tomou em esta guerra se

nom titulo de vingador da morte d'el-rrei dom Pedro seu primo,

esto nom foi d'esta guisa

(Fernão Lopes, Crónica de Dom Fernando. Macchi (1975))

(56) a. como assi seja que na morte do filho nẽhũu pode sentir moor

dor que o padre

b. Eu, todo o que fize, tiinha rrazom de o fazer; e que mais fezera,

nẽhũu m'o deve teer a mall

c. e depois soube el-rrei quanto elles fezerom por se defender

e que nom eram em culpa, e perdohou-lhe o erro em que nom

cahirom, e ouve-os por bõos e por leaaes, e mandou que lh'o

nom lançasse nẽhũu em rrostro.

(Fernão Lopes, Crónica de Dom Fernando. Macchi (1975))

A substituição do pronome algum por alguém e do pronome nenhum por ninguém acontece no português moderno (as gramáticas históricas colocam-na depois do século XVI, sem oferecerem uma cronologia precisa). Os dados quantitativos apresentados no quadro 4 indicam um aumento significativo das ocorrências de alguém e ninguém a partir do século XVIII, o que coincide com a cronologia das outras mudanças discutidas nesta secção.[15] A substituição ao longo do tempo dos pronomes algum/nenhum, com o traço [+hum], por alguém/ninguém pode assinalar que algum e nenhum se tornaram formas fracas, no sentido de Cardinaletti e Starke (1999).[16] Isto estaria de acordo com a hipótese de que a mudança estrutural que conduziu ao reforço do grau de gramaticalização da sequência invertida [N+algum] passa pela transformação de algum de projeção máxima (XP) em núcleo (Xº),[17] com as consequências apontadas na secção 2 (cf. (45a-b) acima).

 

QUADRO 4: algum/alguém e nenhum/ninguém no Corpus do Português

ALGUM vs. ALGUÉM

NENHUM vs. NINGUÉM

Algum

Alguém

Nenhum

Ninguém

Século XVII

1596

172 – 10%

949

494 – 34%

Século XVIII

1466

417 – 22%

494

370 – 43%

Século XIX

5038

1564 – 24%

2150

4729 – 69%

Século XX

4361

3275 – 43%

3628

6775 – 65%

 

C) O artigo definido antes de possessivo

A presença do artigo definido antes de possessivo pré-nominal é quase obrigatória no português europeu, mas esta situação definiu-se tarde na história do português. A figura 1, extraída de Rinke (2010), representa a progressão ao longo do tempo do uso do artigo definido antes de possessivo. O diagrama mostra que no século XIII o uso do artigo definido antes de possessivo é infrequente e assim se mantém até ao século XVII. Só a partir do século XVIII é possível observar um aumento significativo do emprego do artigo definido em sintagmas nominais possessivos. No século XIX, o uso do artigo definido generaliza-se. De novo a cronologia da mudança identifica os séculos XVIII e XIX como período crítico. A coincidência cronológica estabelece portanto uma primeira ligação com os outros casos previamente considerados. Acresce que se trata de uma mudança no domínio do DP e possivelmente centrada na categoria D(eterminante). Tanto Rinke (2010) como Brito (2014) sugerem que a natureza dos possessivos não mudou ao longo do tempo, mudou sim a natureza do núcleo D(eterminante) que, em muitos casos, passou a exigir ter realização fonológica. A presença do artigo definido antes de possessivo satisfaz esse requisito, já que o artigo definido preenche o núcleo D. O movimento de Neg para D na inversão nominal negativa é uma outra forma de satisfazer a mesma condição. Uma e a outra mudança manifestam-se a partir do século XVIII e difundem-se no século XIX.

 

 

4. Conclusão

Neste trabalho propõe-se que nas estruturas com inversão nominal negativa [N+algum] é um IPN formado na sintaxe através da incorporação do nome e do quantificador indefinido num núcleo negativo nulo, conforme se mostra em (57):

(57) [DP [D' [ animali algum ]k [NegP [Neg' [ animali algum ]k [NumP [Num'

[ animali algum ]k [NP animali ] ] ] ] ] ]

A análise é suportada por evidência comparativa e diacrónica, permitindo compreender o modo como o espanhol e o português divergiram ao longo do tempo quanto à inversão nominal negativa com algum/alguno. Permite ainda estabelecer correlações entre um conjunto de mudanças, no domínio do DP, que se manifestam no português a partir do século XVIII.

A hipótese de que um IPN pode ser formado na sintaxe com o contributo de um núcleo negativo, abstrato, interno ao DP, pode ajudar-nos a explicar o percurso evolutivo que transformou o francês aucun e o italiano alcun(o) de itens de polaridade positiva (IPP) em itens de polaridade negativa (IPN). Relativamente ao italiano, é muito significativo que a forma do plural alcuni (‘alguns') tenha mantido o valor original de IPP, enquanto a forma alcuno (‘nenhum') evoluiu diacronicamente para um IPN. Uma vez que a inversão nominal negativa bloqueia a flexão de plural, este é um resultado esperado se admitirmos a hipótese de que o IPN lexical alcuno passou por um estádio evolutivo em que integrava um IPN composto na sintaxe. O IPN aucun do francês contemporâneo não tem flexão de número. Na perspetiva de que a transformação de um IPP em IPN, no plano lexical, pode fazer-se através de uma etapa de construção sintática do IPN, há outros factos interessantes no desenvolvimento diacrónico de aucun. Déprez e Martineau (2003) mostram-nos que no francês do século XVI aucun adquire uma interpretação negativa sobretudo quando está em posição pós-nominal, e mostram-nos ainda que o singular favorece e o plural desfavorece essa mesma interpretação. Na hipótese de o francês do século XVI admitir a inversão nominal negativa com aucun, estes factos são esperados.

A observação das propriedades gramaticais e evolução diacrónica de [N+algum] no português permite-nos, assim, reapreciar outros casos de evolução de itens de polaridade nas línguas românicas, estabelecendo uma nova hipótese para o percurso evolutivo de IPPs que se tornaram IPNs.

 

Referências

I – Corpora

CORDIAL-SIN – Corpus Dialetal para o Estudo da Sintaxe: Martins, Ana Maria, coord. (2000-), Lisboa: Centro de Linguística da Universidade de Lisboa. Pesquisável em: http://www.clul.ul.pt.         [ Links ]

Corpus do Português: Davies, Mark and Michael Ferreira. (2006-) Corpus do Português: 45 million words, 1300s-1900s. Pesquisável em: http://www.corpusdoportugues.org.         [ Links ]

Corpus del Español: Davies, Mark (2002-) Corpus del Español: 100 million words, 1200s-1900s. Pesquisável em: http://www.corpusdelespanol.org.         [ Links ]

FLY: Forgotten Letters Years 1900-1974: Marquilhas, Rita, coord. (2013-) Pesquisável em: http://www.clul.ul.pt.         [ Links ]

II – Textos

Lisboa, João, Tiago C. P dos Reis Miranda e Fernanda Olival, eds. 2002. Gazetas manuscritas da Biblioteca pública de Évora, vol. 1 (1729-1731). Lisboa: Colibri, CIDEHUS, CHC-UNL.         [ Links ]

Lisboa, João, Tiago C. P dos Reis Miranda e Fernanda Olival, eds. 2005. Gazetas manuscritas da Biblioteca pública de Évora, vol. 2 (1732-1734). Lisboa: Colibri, CIDEHUS, CHC-UNL.         [ Links ]

Lisboa, João, Tiago C. P dos Reis Miranda e Fernanda Olival, eds. 2011. Gazetas manuscritas da Biblioteca pública de Évora, vol. 3 (1735-1737). Lisboa: Colibri, CIDEHUS, CHC-UNL.         [ Links ]

Macchi, Giuliano (Ed.) (1975). Crónica de D. Fernando. Lisboa: Imprensa Nacional ­– Casa da Moeda.         [ Links ]

Aelbrecht, Lobke (2012). Ellipsis in Negative Fragment Answers. International Journal of Basque Linguistics and Philology, 46 (1), 1-15.         [ Links ]

Bernstein, Judy (1991). DP's in French and Walloon: Evidence for Parametric Variation in Nominal Head Movement. Probus. 3, 101-126.         [ Links ]

Bernstein, Judy (2001). The DP Hypothesis: Identifying Clausal Properties in the Nominal Domain. In M. Baltin e C. Collins (Eds.), The Handbook of Contemporary Syntactic Theory. Oxford UK / Cambridge USA: Blackwell.         [ Links ]

Borer, Hagit (2005). In Name Only. Oxford / New York: Oxford University Press.         [ Links ]

Bosque, Ignacio (1996). La polaridad modal. Actas del Cuarto Congreso de Hispanistas de Asia. Seúl: Asociación Asiática de Hispanistas.         [ Links ]

Brito, Ana Maria (2014). Possessives in Portuguese and grammars in competition. Comunicação apresentada em: I International Symposium on Variation in Portuguese. Braga, 28-30 de Abril, 2014.         [ Links ]

Cardinaletti, Anna & Starke, Michael (1999). The typology of structural deficiency: A case study of the three classes of pronouns. In H. van Riemsdijk (Ed.), Clitics in the Languages of Europe (pp.145-233). Berlin / New York: Mouton de Gruyter.         [ Links ]

Castro, Ana & Costa, João (2002). Possessivos e advérbios: formas fracas como X0. In Anabela Gonçalves & Clara Nunes Correia (Eds.), Actas do XVII Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Linguística (pp.101-112). Lisboa: APL.         [ Links ]

Déprez, Viviane & France, Martineau (2003). Microparametric Variation and Negative Concord. In Julie Auger, J. Clancy Clements e Barbara Vance (Eds.), Contemporary Approaches to Romance Linguistics (pp. 139-158). Amsterdam / New York: John Benjamins.         [ Links ]

Haegeman, Liliane (2002). Some Notes on DP-internal Negative Doubling. Syntactic Microvariation. Electronic Publication. http://www.meertens.knaw.nl/books/synmic.         [ Links ]

Haegeman, Liliane & Lohndal, Terje (2010). Negative Concord and (Multiple) Agree: A Case Study in West Flemish. Linguistic Inquiry, 41, 181-211.         [ Links ]

Heycock, Caroline & Roberto Zamparelli (2000). Friends and colleagues: Coordination, plurality and the structure of DP. Proceedings of the North East Linguistic Society, 30.         [ Links ]

Heycock, Caroline & Zamparelli, Roberto (2005). Friends and colleagues: Coordination, plurality and the structure of DP. Natural Language Semantics, 13, 201-270.         [ Links ]

Longobardi, Giuseppe (1994). Reference and Proper Names. Linguistic Inquiry, 25, 609-665.         [ Links ]

Martins, Ana Maria (2015). Negation and NPI composition inside DP. In Theresa Biberauer & George Walkden (Eds.), Syntax over Time: Lexical, Morphological and Information-Structural Interactions (pp.102-122). Oxford / New York: Oxford University Press.         [ Links ]

Rigau, Gemma (1999). La estructura del Sintagma Nominal: Los Modificadores del Nombre. In Ignacio Bosque & Violeta Demonte (Eds.), Gramática Descriptiva de la Lengua Española (pp. 311-393). Madrid: Espasa.         [ Links ]

Rinke, Esther (2010). A combinação de artigo definido e pronome possessivo na história do português. Estudos de Lingüística Galega, 2, 121-139.         [ Links ]

Roberts, Ian (2007). Diachronic Syntax. Oxford / New York: Oxford University Press.         [ Links ]

Roberts, Ian & Anna Roussou (2003). Syntactic Change: A Minimalist Approach to Grammaticalization. Cambridge UK: Cambridge University Press.         [ Links ]

Sánchez López, Cristina (1999). La Negación. In Ignacio Bosque & Violeta Demonte (Eds.), Gramática Descriptiva de la Lengua Española (pp. 2561-2634). Madrid: Espasa.         [ Links ]

Solt, Stephanie (2014). Q-Adjectives and the Semantics of Quantity. Journal of Semantics, 26, 217.252.         [ Links ]

Tovena, L. M. (2003). Distributional restrictions on negative determiners. In K. Jaszczolt & K. Turner (Eds.), Meaning Through Language Contrast (pp. 3-28). Amsterdam / Philadelphia: John Benjamins.         [ Links ]

Troseth, Erika (2009). Degree Inversion and Negative Intensifier Inversion in the English DP. The Linguistic Review, 26 (1), 67-134.         [ Links ]

Zamparelli, Robert (1995). Layers in the Determiner Phrase. Ph.D. dissertation. University of Rochester.         [ Links ]

Zwarts, Frans (1996). A hierarchy of negative expressions. In H. Wansing (Ed.), Negation: A Notion in Focus (pp.169-194). Berlin / New York: de Gruyter.         [ Links ]

Zwarts, Frans (1997). Three Types of Polarity. In F. Hamm & E. W. Hinrichs (Eds), Plurality and Quantification (pp. 177-237). Dordrecht: Kluwer Academic Publishers.         [ Links ]

 

Notas

[1] A investigação para este trabalho foi financiada pela FCT, no âmbito do projeto WOChWEL – Word Order and Word Order Change in Western European Languages (PTDC/CLE-LIN/121707/2010). Estou muito grata a Montse Batllori, Paola Crisma, Ernestina Carrilho, Anthony Kroch, Adriana Belletti, Esther Rinke e Telmo Móia pelos contributos valiosos para o desenvolvimento da investigação.

[2] Adoto, por convenção, as siglas correspondentes aos termos ingleses. As siglas usadas são as seguintes: DP (Determiner Phrase), NegP (Negation Phrase), NumP (Number Phrase), PlP (Plural Phrase), NP (Noun Phrase), ClassP (Classifier Phrase) e QP (Quantity Phrase). Os termos NumP e QP são equivalentes, ou seja, duas designações diferentes para a mesma categoria funcional. O mesmo acontece no caso de PlP e ClassP.

[3] O português europeu e o português brasileiro poderão ter comportamentos distintos relativamente a alguns dos factos em análise. Mas esta questão não será estudada neste trabalho.

[4] Outras diferenças entre o espanhol e o português, representadas nas estruturas em (5) e (6), serão comentadas na secção 3.

[5] Existe nenhures nos dicionários da língua portuguesa mas, possivelmente, não no léxico mental da maioria dos falantes do português.

[6] A categoria funcional Pl(ural)P corresponde a Class(ifier)P na terminologia de Borer (2005).

[7] A categoria funcional NumP (também designada QP), que domina PlP, permite atribuir quantidades quer a ‘matéria' não dividida (i.e. massas) quer a ‘matéria' dividida e, portanto, contável. Sobre as restrições de ocorrência manifestadas por certos determinantes negativos relativamente à oposição massivo/contável, veja-se Tovena (2003).

[8] Os exemplos apresentados nesta secção foram retirados de Rigau (1999: 337) e Sanchéz-Lopez (1999: 2597-2598), ou devem-se a Montse Batllori (comunicação pessoal).

[9] Como, por exemplo, a preposição sin: A los ricos los dejó sin cosa alguna.

[10] Sobre a tipologia dos itens de polaridade e a evolução das palavras negativas de IPNs fracos para IPNs fortes, na história português e das línguas românicas, veja-se Martins (1996, 2000).

[11] Editado por Lisboa, Miranda e Olival (2002, 2005, 2011). Cf. referência completa na secção Fontes dos dados.

[12] Para o século XX, não há no Corpus do Português qualquer exemplo de ausência de adjacência entre o nome e algum pós-nominal em textos de autores portugueses. A situação é diferente nos textos de autores brasileiros. No corpus FLY e no corpus dialetal CORDIAL-SIN, que representam ambos o português europeu do século XX, há sempre adjacência entre o nome e o quantificador indefinido nas estruturas com inversão nominal negativa.

[13] A extraposição com nenhum/ninguno encontra-se tanto no espanhol como no português. Diferentemente da inversão nominal negativa, a extraposição de nenhum/ninguno não requer adjacência entre o nome e o quantificador indefinido e permite flexão de plural. A extraposição permite focalizar o quantificador nenhum/ninguno, o que explica a preferência pela posição final de frase, à qual é atribuído por defeito o foco prosódico – veja-se o contraste de gramaticalidade entre (ia) e (ib). A flexão de plural desambigua os dados apresentados em (i), indicando que se trata de extraposição e não de inversão nominal negativa. A frase (ic) é perfeitamente natural, em contraste com (ib), porque em (ic) nenhuns precede o nome, ou seja, não há extraposição do quantificador indefinido.

(i) a. Não vivem aqui animais selvagens quase/absolutamente nenhuns.

b. *?Animais selvagens quase/absolutamente nenhuns vivem aqui.

c. Quase/absolutamente nenhuns animais selvagens vivem aqui.

[14] Existiam no português medieval outras alternativas aos pronomes alguém, ninguém, como por exemplo alguma pessoa e nenhuma pessoa nos exemplos seguintes:

(i) a. e que hũu rrei nom fosse theudo d'ajudar o outro contra algũua pessoa, posto que com ella ouvesse desvairo. (Fernão Lopes, Crónica de Dom Fernando. Macchi (1975))

b. nom descobrindo porém a nẽhũua pessoa esta bem-querença tam grande que em seu

coraçom novamente morava. (idem)

[15] Tenha-se em atenção que o quadro 4 junta todas as ocorrências de algum e nenhum registadas no Corpus do Português, não distinguindo pronomes de adjetivos.

[16] De acordo com a tipologia tripartida das formas pronominais proposta por Cardinaletti e Starke (1999), os pronomes fortes referem necessariamente entidades humanas, enquanto os pronomes clíticos e os pronomes fracos podem ter como referentes quer entidades humanas quer não-humanas. Além disso, os pronomes fortes são portadores de referência própria, independentemente de poderem estar associados a um antecedente no discurso, enquanto os pronomes fracos e os clíticos são sempre anafóricos.

[17] Embora Cardinaletti e Starke (1999) considerem que só os pronomes clíticos são núcleos, Castro e Costa (2002), entre outros, defendem que também os pronomes fracos podem ser núcleos, em contraste com os pronomes fortes que são sempre projeções máximas.

Creative Commons License Todo el contenido de esta revista, excepto dónde está identificado, está bajo una Licencia Creative Commons