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Revista Diacrítica

versión impresa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.29 no.1 Braga  2015

 

IN MEMORIAM

A nova ortografia tem 25 anos

Portuguese «new orthography» is 25 years old

 

Ivo Castro*

*Universidade de Lisboa, Portugal.

ivo.castro@letras.ulisboa.pt

 

RESUMO

A reforma da ortografia de 1911 é, de longe, a mais apurada que a língua portuguesa teve. Foi originada numa teoria prudente, que concilia conservação com modernização, foi executada rapidamente e teve a preocupação de facilitar o acesso à língua escrita de crescentes massas escolarizadas. Comparados com ela, todos os posteriores empreendimentos normativos do domínio do português são de qualidade e êxito inferiores. A chamada «nova ortografia», que ao fim de 25 anos continua a aguardar implementação geral, é das menos más, mas tem sido prejudicada por uma gestão desastrosa das oportunidades políticas

Palavras-chave: língua portuguesa, ortografia, grafémica.

 

ABSTRACT

1911 orthographic reform is by far the most successful the Portuguese language has had so far. Wisely supported by a theory that tried to conciliate conservatism with modernization, it was quickly put in operation and aimed at facilitating the access to reading and writing of new numbers of literate masses. Every later attempt at normatization, in the Portuguese domain, compares poorly in terms of quality and success. The «new orthography», so called in spite of its 25 years, is better than most, but it is still waiting to be generally implemented, due to a hazardous political management.

Keywords: Portuguese language, orthography, graphemics.

 

Estamos em Maio de 2015. Desde há poucas semanas, acha-se instalado entre os países que têm o português como língua oficial um desacordo ortográfico perfeito, que não sabemos como irá evoluir. Em Portugal, considera-se que entrou plenamente em vigor o «novo acordo», assim chamado apesar de ter sido aprovado há um quarto de século, porque muitos ainda não se conformaram com as suas novidades; mas já voltaremos a isso, para ver se o advérbio «plenamente» tem alguma consistência. No Brasil, perdurará por mais algum tempo o período de transição que precede a entrada em vigor da nova ortografia; esta é já bem visível na imprensa e na escrita oficial, mas a antiga ortografia de 1943 continua a ser usada, quando muito por inércia, enquanto se ouvem vozes políticas clamando por uma novíssima ortografia a definir, diferente de todas as outras. Em Angola e em Moçambique, porque não se deram passos definitivos na adopção do novo acordo, mantém-se na prática a situação ortográfica do período colonial, com a antiga ortografia portuguesa de 1945. Mesmo sem mencionar os países pequenos da CPLP, o leque das práticas oficialmente em vigor neste momento não podia ser mais aberto: Brasil admite tanto a ortografia de 1943 como a de 1990, África mantém a de 1945 e Portugal a de 1990. Quem visava atingir a meta de uma ortografia unificada em todos os estados da língua portuguesa reconhecerá que ainda resta algum caminho por andar. Sem roteiro para porto seguro.

Claro que, em Portugal, a nova ortografia não se acha plenamente em vigor. As linhas que estou escrevendo seguem a ortografia de 1945, porque foi essa que aprendi e sempre uso. Mas pode bem acontecer que, ao serem compostas para impressão, passem pelo filtro de um corrector ortográfico que eliminará, por exemplo, o C mudo que a palavra corrector acaba de receber. Se assim for, este texto será publicado em ortografia que não uso, mas que não me incomoda que outros se dêem ao trabalho de importar. Acaso o texto muda quando se altera o seu grafismo e o alfabeto tipográfico em que está composto se converte de Times New Roman em Palatino Linotype? Apenas se torna mais claro, elegante e passa a ocupar mais papel. Da mesma forma, não será pela falta do C que o texto se tornará incompreensível ao leitor, que sem dificuldade reconhecerá no sintagma corretor ortográfico um conceito que lhe é familiar e cujo conjunto de grafemas identificaria e interpretaria correctamente mesmo que comportasse uma gralha ou omissão, pois o leitor não lê letra a letra (excepto perante palavras estranhas), mas por meio do reconhecimento da imagem visual memorizada de vocábulos inteiros ou sintagmas e a sua perspicácia resiste a pequenas variações introduzidas nessa imagem. Só teria problema se não conhecesse ainda nem o conceito nem a imagem, mas nesse caso provavelmente não estaria a ler textos como este.

A ortografia de 1990 está em vigor na medida em que algumas áreas centrais de produção de língua escrita a aplicam integralmente em Portugal: nos instrumentos e nos actos de ensino, nos documentos da administração pública e das corporações empresariais (com algumas bizarras auto-exclusões no sector judicial), na imprensa escrita (embora com direito a objecção de consciência), na edição (também com margem para discrição autoral). Mas assim como a ortografia de 1990 admite no seu seio certos casos de dupla grafia, legitimados por variação fonética nacional (ou regional, que os legisladores talvez não tenham previsto), assim também admite áreas social ou culturalmente diferenciadas em que a sua aplicação é facultativa ou a que pode não chegar. Quem impedirá um cidadão de escrever o seu diário íntimo na ortografia de 1945 e de, em seguida, o exibir no facebook ou em blogs? A escrita privada, comunicada a um destinatário individual da mensagem ou entre círculos que, por serem globais, não deixam de ser categorizados como confidentes, escapa à aplicação da ortografia oficial. O mesmo com a escrita de antetextos, de versões preparatórias de texto destinado a publicação, que só na sua face final e pública receberá o polimento da ortografia oficial, dado por revisor ou programa automático. Ou não o receberá, se a natureza e os fins do texto impuserem o uso de grafias especiais, no caso de edições rigorosas de obras antigas; ou se o criador textual for conservador e tiver força para se impor ao editor; ou se este também for conservador ou, o que vale o mesmo, irreverente.

Ou seja, a ortografia de 1990, sem ser isenta de falhas de técnica e de coerência, deixa-se aplicar com uma apreciável latitude de opções por parte do escrevente, que consegue atender à situação comunicacional e aos seus gostos pessoais com uma liberdade que a ortodoxos parecerá ser exagerada num sistema de normas cujo nome, «ortografia», se adorna do mesmo prefixo. Se se concede ao cidadão o direito de alterar a grafia consoante o seu modo de articular certos sons, como lhe recusar outro direito análogo, o de usar grafias alternativas, arcaizantes ou inovadoras, quando escreve para si ou para confidentes, sem exibição nem responsabilidades públicas? Essa relativa fraqueza normativa, que é um dos aspectos mais interessantes e despercebidos desta ortografia, e que permite obter resultados práticos, contrasta, na escala do censurável, com a absoluta inabilidade de que têm dado provas sucessivos governos, de cá e de lá, no estabelecimento do calendário e do processo de entrada em vigor do novo acordo. Ao fim de anos de gaveta, repescar um acordo mal-amado sem aproveitar a oportunidade para o rever e, quem sabe, melhorar? Alinhar Portugal com as pressas brasileiras sem aguardar que os grandes países africanos se pusessem em movimento? Decidir o Brasil uma moratória própria, sem consultar ninguém, depois de ter criticado a moratória portuguesa? Continuarem Moçambique e Angola como se não enxergassem as consequências dissolutórias da sua demora em agir? Que acordo deve entrar em vigor quando apenas um terço dos signatários se pronunciou? Por aqui se vê que o principal problema da ortografia portuguesa é andar nas mãos de estrategas destituídos de capacidade de previsão.

No terreno das aplicações concretas, as coisas são muito menos graves, desde que se aceitem compromissos e evitem posições radicais, como tive oportunidade, recentemente, de verificar com a experiência de publicar os poemas de Alberto Caeiro (Fernando Pessoa, Poemas de Alberto Caeiro, ed. crít. de Ivo Castro, Lisboa, IN-CM, 2015). À partida, os dados que tínhamos de jogar não eram favoráveis. Por um lado, o modelo da edição tinha sido definido há muitos anos (a Edição Crítica de Pessoa foi desenhada quando ainda não havia acordo de 1990) e previa a reprodução de materiais em transcrição diplomática, o que implica a manutenção de todas as grafias saídas, mesmo que por lapso, das mãos do autor; isto valendo não só para os textos documentais que fazem parte do aparato, como para a fixação crítica do texto, que não reflecte outra ortografia que a do autor. Por outro lado, a casa editora é a Imprensa Nacional-Casa da Moeda, que também publica o Diário da República, além de grande parcela da produção textual do Estado, e que tem o dever, que lhe foi explicitado pela tutela, de aderir à ortografia de 1990 em todas as suas publicações, como fez desde o início do período de transição agora terminado[1]. Dado que a IN-CM, além de editora oficial do Estado, actua também na esfera da edição literária e cultural, foi decidido internamente aplicar em toda a sua actividade aquela ortografia, com algumas discretas reservas. O motivo principal era prático e compreensível: o corpo de compositores e revisores da casa não poderia assegurar níveis estáveis de eficiência e atenção no tratamento de material escrito em diferentes regimes ortográficos, como seria possível na fase de transição, pelo menos. As reservas que atenuaram, desde o princípio, a orientação da IN-CM decorrem da natureza de boa parte do seu catálogo de publicações, em que avultam textos de linguagem historicamente diferenciada, com valor documental ou autográfico que seria neutralizado por uma barrela de actualização ortográfica. É esse precisamente o caso da edição de Pessoa e aí se achou a chave da solução: a ortografia original foi mantida no texto crítico e em todas as citações das notas de aparato, enquanto a minha prosa da introdução e dos comentários às notas seguiu a ortografia «da casa», que é a de 1990. Os custos em repetidas revisões não foram ligeiros, pois o meu original tinha sido escrito na ortografia de 1945 e precisou de ser reconvertido, o que requereu atenta intervenção humana. O resultado, que poderia ser etiquetado de híbrido, implicou um nível aceitável de compromisso, que terá de ser mantido depois do período de transição ortográfica, pois se mantém a justificativa e não colide com a flexibilidade inata do sistema de 1990. Este é, assim, um exemplo de como podem co-ocorrer, dentro de um mesmo livro, as duas ortografias.

Este exemplo chama também a atenção para o papel activo que a IN-CM tem tido na definição de modelos ortográficos. Não é um papel recente e merece a pena recordar intervenções passadas, designadamente as que precederam a elaboração da reforma ortográfica que, em 1911, seguiu de perto a implantação da República.

O primeiro facto a assinalar é que essa reforma não provocou, entre uma população largamente arredada da língua escrita, reacções emotivas do tipo que modernamente se associa a mudanças de hábitos ortográficos. O interesse que a reforma de 1911 hoje desperta explica-se tanto pela sua intrínseca qualidade científica, muito superior à das ortografias subsequentes (cujo apuro técnico deixa a desejar, sobretudo nas mais recentes), como por ser olhada com olhos informados por tudo o que depois aconteceu, ao longo de um século fértil em agitação ortográfica. No seu momento, o mais notável talvez tenha sido a celeridade dos procedimentos, sinal de ambiente bem preparado e de proponentes com influência no novo regime republicano. Embora o tema da reforma ortográfica estivesse presente nos meios letrados portugueses há bastante tempo, a iniciativa concreta partiu de um sector inesperado: em 10 de Dezembro de 1910, pouco mais de dois meses entrados na República, o chefe dos revisores da Imprensa Nacional, José António Dias Coelho, escreveu à hierarquia denunciando a «anarquia ortográfica» das publicações que saíam da editora do Estado, nelas se incluindo «o próprio Diário do Govêrno, que deveria ter ortografia uniforme, [mas] emprega diversas, conforme o capricho de quem envia os originais, geralmente pessoas indoutas», o mesmo sucedendo nas demais publicações oficiais dele subsidiárias. Saboreie-se o atestado de incultura passado aos legisladores (que revisores de imprensa costumam tornar extensivo a todo o ser humano que escreve), mas note-se que com ele vem uma dúvida que suponho não ter sido ainda explorada: seria a proposta de uma ortografia reformada vista como reacção normativa e politicamente conservadora a uma liberdade social anarquizante? Como geralmente se considera que a reforma de 1911 foi uma novidade modernizadora trazida pelas mudanças políticas, o esclarecimento desta dúvida, que aqui não cabe fazer, não seria desprovido de interesse.

As vantagens da «adopção de um único sistema ortográfico» eram duas, para Dias Coelho: economia na composição e revisão dos documentos oficiais (precisamente o mesmo argumento que hoje sustenta a IN-CM) e «maior facilidade no ensino da leitura da nossa bela língua». A 14 de Janeiro de 1911, o administrador da Imprensa Nacional Luís Derouet encaminhava a proposta de Coelho ao governo, que imediatamente, a 15 de Fevereiro, pela mão do ministro do Interior António José de Almeida, constituía uma comissão de linguistas encarregada de «fixar as bases da ortografia que deve ser adoptada nas escolas e nos documentos e publicações oficiais, e bem assim organizar uma lista ou vocabulário das palavras que possam oferecer qualquer dificuldade quanto à maneira como devem ser escritas». Em pouco mais de dois meses, o governo dava satisfação aos objectivos identificados por Dias Coelho e ainda lhes acrescentava um novo: a elaboração do vocabulário ortográfico. Repare-se em como desde então se acham definidas, e circunscritas, as áreas-alvo de intervenção da reforma ortográfica: a língua do ensino, a língua do governo e administração e o prontuário de dúvidas. A imprensa escrita não tinha menção, porque poucos portugueses sabiam ler e a circulação de jornais não era significativa.

A comissão formada pelo governo tinha inicialmente cinco membros: Carolina Michaëlis de Vasconcelos presidia e Gonçalves Viana, autoridade incontestada no domínio, foi o relator e, na prática, o autor da reforma. Os outros três membros tinham problemas de relacionamento: Leite de Vasconcelos e Cândido de Figueiredo tratavam-se com uma acrimónia invulgar mesmo entre homens de letras, e Adolfo Coelho tardava em reconciliar-se com Leite de uma briga que vinha do século transacto. Talvez por isso, o governo cedo adicionou à comissão outros nomes de destaque: Gonçalves Guimarães, Ribeiro de Vasconcelos, Júlio Moreira, José Joaquim Nunes e Borges Grainha, além de outros que se escusaram. Os rápidos trabalhos da comissão foram facilitados pela concordância quanto ao sentido das reformas, estabelecida há muito entre Carolina Michaëlis e Gonçalves Viana. De facto, muitas das medidas aprovadas pela comissão foram transpostas do tratado de Viana, publicado em 1904, Ortografia Nacional. Simplificação e uniformização sistemática das ortografias portuguesas. Viana finalizou a 23 de Agosto o seu relatório, que o governo aprovou uma semana depois, determinando que a nova ortografia fosse adoptada nas escolas, documentos e publicações oficiais, que se publicasse um vocabulário ortográfico e uma cartilha e que os livros escolares tivessem uma tolerância de três anos para se adaptarem.[2]

A reforma, como disse, vinha sendo há muito preparada. É enganador pensar que harmonia e regularidade tivessem dominado o chamado período da ortografia etimologizante. No séc. XVI, os gramáticos começaram a defender que a língua portuguesa devia assumir uma fisionomia escrita modelada na latina, mas, na verdade, nem as normas defendidas pelos diferentes tratadistas coincidiam entre si, nem o afã com que as tentavam incutir indicia que fossem escutados e obedecidos. Para sabermos como se escrevia na época clássica e no romantismo, não importa ler as suas receitas normativas mas antes os manuscritos de pessoas reais. Quem folhear um autógrafo de Camilo facilmente concluirá que o homem que mais palavras conhecia do dicionário não revelava igual perícia enquanto ortografista. Da sua pena tanto saíam Relação como Rellação e Relaçam; preso ou prezo; casa ou caza; ceu ou ceo; cadeia, cadea ou cadêa; cincoenta ou sincoenta; cair ou cahir; e muitas outras grafias de incerta idade e razão linguística. Não admira, pois, que os compositores e os revisores tipográficos, briosos oficiais da ordem, reprovassem este estado de coisas e o classificassem de anárquico. Um outro moderno, Almeida Garrett, já em 1825, no prefácio de Camões, reconhecera que em matéria de ortografia «é fôrça cada um fazer a sua entre nós, porque a não temos». Mas defendia que o respeito pela etimologia fosse temperado pela observação da pronúncia. Precisamente nesse sentido de uma ortografia simplificadora e colada à realidade fonética se iriam pronunciar, ao longo do século XIX, autores como António José Vaz Velho, Opúsculo sobre Ortografia dividida em Serões de Inverno, Lisboa, Imprensa Nacional, 1856 («Que implicância terá o sistema liberal com o sistema ortográfico, que vai caminhando na razão inversa do progresso?»); ou José Tavares de Macedo, Elementos de Orthographia Portugueza, Lisboa, 1861 («se o auctor quizesse expor o que lhe parece melhor nesta materia, sem a menor hesitação preferiria a orthographia chamada de pronuncia»). Em 1875, José Barboza Leão apresenta no Porto uma proposta de reforma de «sentido sónico», que envia à Academia das Ciências, defendendo «que para cada som aja um único sinal, e cada sinal tenha por função escluziva o transcrever um som e nada mais». A Academia rejeita em 1878 essa proposta, que é retomada e aperfeiçoada em 1885 por Aniceto dos Reis Gonçalves Viana e Guilherme de Vasconcelos Abreu nas Bases da Ortografia Portugueza, a não confundir com as de 1911, e cuja justificação é feita nestes termos:«Todos nós [...] sabemos quão diverjentes são as ortografias das várias Redacções e estabelecimentos tipográficos. Teem escritores suas ortografias próprias, como as teem as imprensas particulares e as do Estado. E nas do Estado são diferentes as ortografias da Imprensa Nacional e as da Imprensa da Universidade.» As principais medidas preconizadas neste trabalho, e logo na Ortografia Portuguesa de 1904, viriam a reaparecer na reforma de 1911, apenas com algumas renúncias: o H inicial não foi suprimido, o X manteve o valor de cs e de gz, e o GE, GI continuaramao lado de JE, JI, de idêntico valor.A reforma ficou, assim, um pouco aquém do programa simplificador de Gonçalves Viana, conservando a contragosto certas grafias «habituais», embora «menos consequentes», leia-se pseudo-etimológicas, e evitando «preceitos prematuros», de forma a que «a estranheza, que poderiam ocasionar no público certas innovações ou renovações gráficas, não viesse prejudicar a aceitação dos demais preceitos». Mas, na generalidade dos casos, o programa de Gonçalves Viana foi consagrado como norma ortográfica oficial.[3]

Assim, e a título de exemplo (sempre citando o texto das Bases), foram eliminadas grafias cultas como PH, TH, RH, CH (com valor de K), Y; foram abolidas as consoantes duplas mediais, salvo nos casos de RR, SS, MM, NN (como em carro, cassa, emmalar, ennovelar); foram desfeitos falsos grupos consonânticos quando o elemento inicial não era articulado, como G em palavras como assignar, augmentar, Magdalena (mas mantendo-se em designar, fragmento), M em palavras como damno, solemne, C em palavras como producto, funcção, e P em palavras como escripto, assumpção. Neste capítulo, a reforma de 1911 admitiu uma ressalva, para conservar consoantes mudas que são precedidas das vogais a, e ou o, quando átonas mas abertas; deste procedimento se afasta famosamente a ortografia de 1990, quando admite a supressão da consoante muda em direcção, directo, acção, activo, acto, excepção, exceptuar, adopção, adoptar. Não escapou à comissão de 1911, a este respeito, o pormenor de muitas destas ocorrências disporem de dupla pronúncia («é certo que em muitas destas palavras as letras c e p por muitas pessoas são ainda proferidas, tais como facção, recepção, espectador, a par de espe(c)táculo, etc.»), mas não extraiu dessa variação a licença para duplas grafias, como fizeram os normatizadores de 1990. A regularização da acentuação gráfica foi outra das medidas inovadoras da reforma, destinando-se a introduzir, por meio do acento, uma distinção visual entre palavras que, sem isso, seriam homógrafas, embora não homófonas, pois a qualidade das vogais tónicas é distinta: entêrro / enterro, almôço / almoço, pára / para, dêmos / demos, louvámos / louvamos. Também ao acento grave foram dadas novas funções (mais recentemente abandonadas ou diminuídas): distinguir homógrafos como aquela / àquela, pregar / prègar; marcar vogais abertas em sílaba tónica secundária, como em avòzinha, màzona; impedir que duas vogais em hiato sejam lidas como ditongo, para isso assinalando com acento agudo a tónica de saúde e com grave a átona de saùdar; deste mesmo modo forçar a leitura do U nos dígrafos QU, GU (freqùente comparado com quente, argùir com seguir), função que no Brasil foi confiada ao trema.

Como se verifica, estas medidas nem sempre se mostravam inspiradas pela mesma intenção: quando simplificaram os processos de escrita, o seu intuito era facilitar a tarefa de quem escreve; mas, quando introduziam acentos e diacríticos, de facto complicando a escrita, o destinatário era o leitor, quando lia pela primeira vez palavras que não conhecia, porque as não aprendeu de ouvido e para as quais não dispunha de modelo oral. São, de certa maneira, medidas destinadas a orientar a decifração da palavra escrita por parte de um público cuja competência linguística, adquirida por experiência auditiva, era rica em léxico do mundo real quotidiano mas deficiente em léxico de transmissão predominantemente escrita, o que pode dificultar o reconhecimento de palavras escritas e a sua correcta produção oral. A alfabetização de massas, o incremento cultural do povo através da leitura e o enriquecimento do seu léxico com novos termos cultos, técnicos e científicos, configuram-se como grandes metas sociais, e revolucionárias, a que a reforma ortográfica visava dar uma resposta adequada.

Também ao leitor se destinavam outras medidas da reforma, desta vez, porém, visando o leitor experimentado e dotado de memória visual. São medidas como a conservação da distinção gráfica entre Ç e S, entre Z e S mediais, apesar de nenhuma diferença fazer entre estas letras «a pronúncia do Mondego para sul» e mesmo «nos centros urbanos das províncias do norte», apenas por razões etimológicas perpetuadas na ortografia tradicional, que neste particular a reforma não ousou reformar (nem a de 1990). Na mesma categoria entra a manutenção dos homófonos X e CH, porque a língua antiga e alguns dialectos do norte os distinguiam. Mais radicais eram as propostas anteriores de Gonçalves Viana, que nestes pontos avançavam para a absoluta igualdade gráfica sempre que havia igualdade de pronúncia. A manutenção destas distinções denota, portanto, a necessidade que a comissão sentiu de estabelecer compromissos entre certos hábitos da véspera e as aspirações futuras que visava satisfazer.

Aspirações que, mudando um pouco o que tem de ser mudado, o futuro continuará a alimentar. Mais tarde ou mais cedo, a ortografia do português deverá ser revista, porque isso decorre da necessidade natural de a grafia acompanhar o passo das pronúncias, quando invoca para si alguma legitimidade fónica. Apenas as ortografias muito conservadoras se acham dispensadas de acompanhar a evolução do sistema fonético e fonológico, pois conferem ao desenho das palavras o valor de quase ideogramas cujo significado e respectivo significante fónico são memorizados sem depreensão analítica de componentes menores e podem perdurar no tempo. Foi o que aconteceu à ortografia do latim, que continuou a funcionar na România alto-medieval para as línguas vulgares emergentes como se nada estivesse a acontecer e todos falassem latine, e ainda não romanice. Não é esse o caso da portuguesa, embora a equivalência de grafias duplas (ou múltiplas) permitida por 1990 abra um convite nessa direcção. Esperemos, portanto, uma revisão daqui a duas ou três gerações, ou depois de amanhã, pela mão de políticos apressados.

Terá essa revisão a forma de um acordo internacional negociado entre estados e visará apenas remendar aspectos diplomáticos e legais menos felizes do presente? Ou irá à substância das coisas? Se o fizer, terá de começar por definir um ponto simples: pretende-se um novo acordo ortográfico para a língua, a convencionar entre estados cada vez mais separados pela mesma língua, ou em vez disso uma reforma de sentido conservador, que regresse a grafias saudosas, ou de sentido modernizador, que encoste mais a letra ao som? Neste quadro, um eventual regresso a 1945 equivaleria a uma reforma, porque teria de ser unilateral, inaceitável por brasileiros e, muito provavelmente, também por africanos, porque teria sido decidida apenas por portugueses. Uma reforma ortográfica de Portugal desencadearia reacções de afirmação nacional nos outros estados, como sucedeu após 1911, mas em grande. E a busca de um destino internacional para o português entraria definitivamente no domínio do imaginário.

 

Notas

[1]A resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011 estabelece que a «INCM, enquanto editora do Diário da República, está obrigada a assegurar o princípio de autenticidade entre os atos submetidos e os atos publicados, não podendo alterar os textos, nem quanto ao fundo nem quanto à forma. De acordo com a Norma Aplicável, os atos publicados no Diário da República a partir de 2 de janeiro de 2012, deverão respeitar o Acordo Ortográfico.»

[2]Todas estas informações constam das Bases para a Unificação da Ortografia que deve ser adoptada nas escolas e publicações oficiais. Relatório da Comissão nomeada pela portaria de 15 de Fevereiro de 1911, novamente revisto pelo relator, Lisboa, Imprensa Nacional, 1911.

[3]Ivo Castro, Inês Duarte, Isabel Leiria, A Demanda da Ortografia Portuguesa. Comentário do Acordo ortográfico de 1986 e subsídios para a compreensão da Questão que se lhe seguiu, Lisboa, Eds. João Sá da Costa, 1987.

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