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Revista Diacrítica

versión impresa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.29 no.1 Braga  2015

 

RECENSÕES

Sérgio Luís de Carvalho (2014). Dicionário de insultos. Lisboa: Planet. (215 pp.)

Jacek Pleciński

*Escola Superior de Línguas, Wrocław, Polónia.

j.plecinski@wsf.edu.pl

 

Lusitanus ridet lexica conscribens, eis a frase que me veio à mente durante a leitura do Dicionário de insultos (DI). O Autor, segundo diz a Editora na capa do livro, formou-se em História, é mestre em História Medieval, e tem até hoje mais de trinta livros publicados, entre os quais há não só estudos históricos, mas também livros infanto-juvenis e romances.

DI leva um subtítulo: A estranha origem e a bizarra história dos insultos portugueses, e mais um subtítulo suplementar: Apodos, epítetos, apóstrofes, desconsiderações, achincalhamentos, verrinas, ofensas e outros modos de apoucar quem nos azucrina. Sendo polaco, não conhecia até agora esses termos todos, nem imagino se eles são evidentes para cada português letrado, mas procurei-os em vários dicionários de português e encontrei quase todos. Aprendi então que achincalhar quer dizer o mesmo que ‘ridiculizar, chacotear', aprendi igualmente, graças ao Dicionário de expressões populares portuguesas de Guilherme Augusto Simões, que azucrim é um “indivíduo inoportuno que nos molesta, apoquenta”. Achincalhamento e azucrinar seriam derivados inventados pelo Autor?

Na minha qualidade de autor de textos sobre o lúdico nas línguas, especialmente românicas, fui capaz de constatar que Sérgio Luís de Carvalho divertiu-se muito na pesquisa e soube divertir o leitor da sua obra. Já houve em Portugal lexicógrafos que se divertiam: Orlando Neves, Eduardo Nobre, o acima mencionado Simões, talvez António Nogueira Santos, e mais alguns com certeza; mas talvez o Sérgio Luís de Carvalho seja primeiro a pôr o lado lúdico em primeiro lugar. Esse valor reside, obviamente e antes de mais, no tratamento das origens dos verbetes. O Autor deixa-se simplesmente encantar pela extravagância e pela esquisitice da história dos insultos. O aspeto lúdico manifeta-se igualmente na análise da polisemia de muitas palavras e, em terceiro lugar, nas observações acerca de falsos amigos ibéricos (em português e em castelhano, por exemplo trampa e presunto), verdadeiras armadilhas que ameaçam tradutores e intérpretes.

O DI lê-se como um romance. Quase todas as curiosidades etimológicas são intensamente divertidas e ao mesmo tempo instrutivas. Vejamos então, para confirmar, algumas delas na ordem alfabética.

As chamadas mesclas lexicais são sempre dotadas de aspeto cómico, e tal é o caso de analfabeta e analfabruto.

Uma expressão idiomática (EI) usada por todos pode ser enigmática e incompreensível até ao momento em que se nos explica a origem dela. Tal é o caso de andar com o rei na barriga ‘ser soberbo, orgulhoso'. Por ser incompreensível, uma EI não tem nenhum valor cómico; esse torna-se óbvio com a explicação histórica. Tal como a que o Autor nos oferece.

A bambochata vinda da Itália (bambocciata ‘brincadeira infantil') ganha tanto mais efeito quanto se nos traz à memória a recente palavra italiana bamboccione ‘homem não assim tão novo que ainda está na casa dos pais'.

A mudança total de sentido chamada enantiosemia que ocorre na evolução semântica é um fenómeno linguístico bastante frequente. Tal coisa aconteceu com a beata: Sérgio Luís de Carvalho cita José Jorge Letria que tem explicado o significado antigo do termo: “mulher do povo pouco versada em religião”, sendo uma beata, hoje em dia, “muito ligada às coisas da igreja e da religião”. A palavra beata fica ainda mais curiosa se a compararmos com o adjetivo latim beatus (fem. beata) e com a sua forma em francês: hoje béat quer dizer ‘ingénuo, parvo'.

Cábula, diz Dr. Carvalho, vem do hebraico Qabbalah (Cabala); cretino e cristão encontram-se aparentados na história das línguas românicas (acrescentemos: cretin e creştin, em romeno); a EI fazer as coisas em cima do joelho tira sua origem da Roma antiga; outra EI, emprenhar pelos ouvidos, refere-se a uma história esquisita ligada à Nossa Senhora – que etimologias tão curiosas! No DI há mais dezenas de casos assim.

Depois da origem em si, outra fonte de enlevo e êxtase do leitor é a polisemia de palavras e de EI, relacionada – na esmagadora maioria dos casos – com a evolução semântica delas durante séculos a fio. Borracho ‘bêbado' e ‘menina bonita' (lembremo-nos de: “No bêbado e no borracho / Põe Deus a mão em baixo”), chulo, já citada beata são alguns exemplos entre muitos mais.

Quanto aos falsos amigos do tradutor na área do português e castelhano, não há muitos do DI, mas são saborosos. Já mencionei trampa e presunto, agora apetece-me acrescentar perdulário, mais uma vez porque sou um linguista polaco. Houve tempos em que se atribuía ao verbo polaco obsceno pierdolić ‘lat. futuere → port. foder' umaorigem ibérica que teria surgido na época napoleónica, quando soldados polacos participavam na guerra peninsular do lado francês. Mas essa crença foi sol de pouca dura, já é sábido desde antes de 1939 que se trata duma etimologia falsa.

Já que estamos com a mão na língua polaca, eis outra referência no DI à família eslava. O Autor soube relatar corretamente a origem checa de robot, termo inventado pelo escritor checo Karel Čapek em 1921, apesar da convicção geral nos países românicos, enfim, na Europa ocidental, que robot vem do russo (robota em russo: ‘trabalho', em checo: ‘servidão, trabalho extenuante'; em polaco: ‘trabalho manual').

Como mesmo numa obra genial se encontram elementos mais fracos, vamos agora buscar cinco pés ao gato, chercher la petite bête, ou em polaco, na tradução literal para a língua de Camões, “buscar um pouco de alcatrão num barril de mel”. “Bonum ex integra causa, malum ex quocumque defectu”, diziam sábios romanos, observadores do ser humano. Os verbetes que se prestam a alguma dúvida ou censura são: boche, caralho, charada, chulo, ladrão, totó.

O insulto anti-alemão boche tem pouca chance de vir do francês caboche. Ele vem antes da abreviação de alboche ‘alemão', Allemand com substituição de uma parte da palavra pelo chamado sufixo parasita. É sim verdade que a história do termo remonta ao século XIX (a 1887, segundo o dicionário Lexis). Mais tarde, surgiram em França outros insultos para ofender alemães: fridolin, fritz, chleuh, em 1914 e em 1940, e não foi por mero acaso...

Frase feita: Vai para o caralho! – Aqui não tenciono propôr nem emenda nem censura, mas apenas uma explicação que até parece confirmar uma intuição tímida do Autor que diz: “Penso que o insulto que consiste em mandar alguém para o caralho é um exclusivo ibérico. Não me lembro de nenhum outro idioma para lá dos Pirenéus que mande alguém... Mas admito que possa estar enganado.” Admite bem, porque está! A etnia polaca costuma mandar quem nos molesta àquela parte do corpo; e os russos fazem o mesmo, ainda que mandem com mais frequência para a cona. È vero, non è mica trovato...

No verbete pessoa esfíngica fala-se em Esfinge, ser mitológico “com corpo felino e rosto humano, que interpelava os viandantes com uma charada”. Logo o Autor cita uma pressuposta charada: “Qual o animal que caminha com quatro patas de manhã, com duas patas ao meio-dia e com três patas de noite?” Ora não é charada, é uma simples adivinha! A charada é uma adivinha muito especial, um enigma onde é preciso descobrir uma palavra dividida em sílabas, por exemplo: “A primeira [sílaba] está na música, a segunda aqui, e o todo na mesa”; solução: fá + cá + faca (este exemplo vem do dicionário Lello).

Se falarmos de chulo, surge uma dúvida séria quanto à origem do termo, como já aconteceu no caso de boche. Há vários sinais no céu estrelado que chulo não vem de fanciullo (‘rapazola' em italiano), mas sim de jules (Jules), ‘Júlio' em francês, onde o sentido de ‘proxeneta' se alargou e, atualmente, jules quer dizer também ‘amante' e até ‘marido', na generalidade ‘homem na relação com uma mulher'.

Ladrão. “Em latim o latro era o guarda. (...) Com o passar do tempo, o termo foi-se deteriorando, passando a designar soldados mercenários.” (pág. 123). Dicionários de latim, explicativos e bilingues, evidenciam três sentidos de latro: 1) ‘mercenário', 2) ‘bandido, cangaceiro', 3) ‘caçador clandestino', sem mencionar ‘guarda'. (Em polaco, latro → łotr ‘gatuno, canalha'.)

Totó ‘ingénuo e papalvo'. Sérgio Luís Carvalho relata duas hipóteses, uma italiana e outra francesa, que tocam a origem da palavra. Não tenciono optar por nenhuma delas. O que parece pouco credível é o verdadeiro nome citado do famoso ator italiano Totò (1898-1967), que representou em filmes de qualidade como I soliti ignoti e Uccellacci e uccellini. Onde o Autor foi buscar a informação (p. 194) que Totò chamava-se Antonio Stefano Clemente? Na minha mocidade era eu “militante” num cineclube académico e já sabia vagamente que Totò fora aparentado à família imperial bizantina. Eis duas confirmações ulteriores desta versão. O Dictionnaire du cinéma Larousse: “Totò – Antonio Furst de Curtis Gagliardi Ducas Comneno di Bisanzio ». O Filmweb, informação atual em 2014 : « Antonio Griffo Focas Flavio Angelo Ducas Comneno de Curtis di Biszanzio ( !)”. Isso faz-me pensar em alguns boletins de identidade que vi em Portugal...

Mesmo se essas dúvidas e propostas de emenda fossem legítimas (e o são na minha opinião), são detalhes sem maior influência no valor geral do Dicionário de insultos. O DI não deixa de ser uma obra extremamente interessante e engraçada, um livro que, apesar de ser um dicionário – coisa para consultar se for preciso – pode ser lido de uma assentada. Com proveito científico e erudita, e para nos divertirmos. É um entretenimento espirituoso fora de comum.

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