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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.29 no.2 Braga  2015

 

VÁRIA

A Paisagem como elemento de apropriação artística

 

Rui Paes Mendes*

*CEGOT – Centro de Estudos em Geografia e Ordenamento do Território, FLUP.

ruipaesmendes@gmail.com

 

RESUMO

A paisagem presta-se a inúmeras leituras consoante os contextos geográficos, culturais e individuais do observador. É um suporte que tem tanto de físico como de imaterial que resulta da sua condição de espaço cultural porque construído pelo Homem seja ao nível da sua forma, como dos (pré)conceitos do olhar.

A proposta do presente artigo assenta numa reflexão sobre o conceito como unidade de estudo e de compreensão do mundo como entidade construída (ou a construir) e a sua (re)interpretação ou apropriação pelas expressões artísticas. Esta síntese provocada pelo observável (espaço exterior) e pelo sentido (domínio do indivíduo) contribui fortemente para a transformação cultural da paisagem, especialmente numa sociedade altamente mediatizada como a ocidental.

Palavras-chave: Geografia, Paisagem, Cultura, Artes, Geografia Cultural.

 

ABSTRACT

The landscape lends itself to numerous interpretations depending on the geographical, cultural and individual observer. It is an unit that is both physical as intangible that results from its status as a cultural space, built by man in terms of their shape and characteristics, as well as with individual (pre)concepts.

The aim of this article is set on a reflection on the concept of landscape as a unit of study and interpretation of the world as a crafted entity (or in process of construction) and its (re)interpretation or appropriation by different artistic expres- sions. This synthesis caused by the observable (physical space) and the senses (of the individual domain) contributes meaningfully to the cultural transformation of the landscape, especially in a highly mediated society as Western.

Keywords: Geography, Landscape, Culture, Arts, Cultural Geography.

 

A Paisagem: da Geografia e do quotidiano às Artes

O conceito de “paisagem” constituirá na atualidade um dos termos de uso e compreensão mais universais da cultura ocidental, cultura essa que, em virtude do elevado grau de desenvolvimento atingido, se preocupa com questões que contribuam para a fruição do tempo e do espaço. Neste sentido, o termo “paisagem” tornou-se um conceito subjectivo fortemente enraizado em quadros conceptuais que derivam da cultura e educação de um grupo ou dos afectos de um indivíduo. É cada vez mais um conceito intangível que procura traduzir uma realidade mais visual(izada) do que vivenciada.

A “paisagem” é na sua essência o objecto de estudo da Geografia. Esta, ao ter a superfície da Terra como campo de ação, devido à sua imensidão viu-se na necessidade de a fragmentar em unidades mais ou menos homogéneas, mais ou menos entendíveis e traduzíveis. A “paisagem” constitui então um dos elementos-chave para a compreensão do espaço que nos envolve e do qual somo atores de tal forma que a “paisagem” mais não é do que o cimento aglutinador das várias correntes que estudam o homem e o espaço assim como será o conceito que mais sentido ou unidade pode conceder à Geografia.

No entanto, na sua essência, a “paisagem” como conceito está associada a uma multiplicação e/ou emancipação de ciências que têm o planeta e os problemas que o afectam como linha fundamental de estudo. Desta forma, cada disciplina desenvolveu metodologias que encaram a “paisagem” como um objecto de estudo e sujeita às mais variadas abordagens e interpretações.

A grande dificuldade na análise de uma paisagem assenta na forma como o objeto visual real é captado pelo observador e como este, fruto do seu quadro intelectual e afetivo, perceciona o que vê. Para um dos fundadores desta área de estudo, Sauer, ([1925] 2007):

The cultural landscape is fashioned from a natural landscape by a culture group. Culture is the agent, the natural area is the medium, the cultural landscape the result. The natural landscape is very important for it supplies the material out of which the cultural landscape is formed. The shaping force, however, lies in the culture itself (p. 343).

Um problema se coloca com a abordagem de Sauer, nomeadamente a importância que concede à morfologia da paisagem não valorizando suficientemente elementos de índole mais subjetiva que provêm da natureza humana. Essa dimensão tem vindo a ser compreendida e estudada, sendo crescentemente considerada um elemento essencial na construção, apreensão e transmissão da noção de “paisagem”. É isso que nos recorda Cosgrove (1984) que na sua análise da paisagem a encara na vertente do simbolismo que a mesma contêm:

The frequent association in geographical writing of Landscape with studies of the impact of human agency in altering the physical environment serves to remind us that landscape is a social product, the consequence of a collective human transformation of nature. The elision of landscape with wilderness or nature untainted by human intervention is a recent idea generally involving a rejection of the evidence of human action. The artistic use of landscapes stresses a personal, private, and essentially visual experience (p. 14).

A “paisagem” é, assim, a redução de uma macrounidade complexa numa escala abarcável e passível de estudo. O conceito ultrapassou fronteiras científicas e tornou-se um conceito polissémico, aberto às mais variadas e infindas definições consoante a linha problematizadora que se pretender seguir. É, no entanto, também um reflexo de tradução da realidade em conceitos afetivos e culturais. Comummente associamos uma paisagem a conceitos subjetivos positivos como “belo”, “deslumbrante” sendo elemento de apropriação de projeções do estético que uma comunidade ou indivíduo detém. Igualmente invoca sensações de bem-estar intimamente ligados com aquilo que nos é confortável ou nos dá prazer, cada vez mais assente em conceitos que derivam da exploração dos espaços como áreas de turismo. É, então, comum o epíteto de “paradisíaco” quando referimos a fruição do espaço que corresponde à paisagem vivenciada.

Nas nossas interações sociais raramente traduzimos a paisagem como um elemento negativo ou que nos proporcione más memórias ou sensações. Pelo contrário: crescentemente a “paisagem” é valorizada como algo benévolo e benigno. De acordo com os nossos referenciais culturais e sócio-afectivos, com a importância das memórias visuais mas também ao nível dos odores e sabores, construímos os aspectos valorativos que constituem a qualidade da paisagem sujeitando-se esta a inúmeras interpretações e reinterpretações de acordo com os quadrantes geográficos (aqui entendido como espaço físico e cultural) dos quais o “olhar” inquisidor da paisagem é proveniente e o “sentir” na paisagem que nela se acomoda.

É uma dimensão diversa da paisagem que não a de puro e directo objeto de ciência; uma variação universalizada por factores artísticos e económicos no qual a “paisagem objecto” se transforma em “paisagem cenário” sendo este o sentido que se encontra massificado pelo marketing e pela comunicação social. É esta abordagem e apropriação da paisagem como cenário que forma um novo cânone na sua apropriação e na nossa vivência através da literatura, da música, da fotografia, do cinema, da televisão, da pintura e da banda-desenhada. Qualquer suporte cultural moderno inclui como dispositivo narrativo uma “paisagem” utilizando como elemento contextualizador de ação (muitas vezes espoletador dessa mesma ação), elemento metafórico, ou simplesmente como interlúdio da narrativa para pincelar aquilo que nos é descrito. No fundo uma perspetiva visual (mesmo que literária ou sonora) e estética do dispositivo proposto mais como um “product of the same forces that produced the wilderness landscape, and exists in a symbiotic, interdependent and intertwined relationship with it” (Robertson & Richards, 2003, p. 9).

É da apropriação e relação que estabelecemos com uma dada “paisagem” que nela lançamos o nosso olhar individual e cultural, apropriando-nos dela mas construindo um valor figurativo alicerçando numa imagética de simbolismos vários e conceitos estéticos e poéticos subjectivos dos quais podem resultar a “paisagem arte”. São essas “associations of nature, beauty, and a sense of order, together with the secular role they play, still structure the understanding of landscape in nature and painting” (Kemal, 1995, p. 2) mas também na arte em geral.

A literatura é pródiga na descrição de paisagens sendo aliás este um dos artifícios comummente utilizados para a imersão literária do leitor na narrativa proposta. Por outro lado permite-nos igualmente perceber a estrutura cultural dos elementos a valorizar na paisagem, pois

words are like paint: they can approximate to what the scene is like, but they can't reproduce it. Therefore good writers don't claim to deliver a likeness: they offer a version of the scene that may have a stimulus from real life, but it is better understood as being something newly created (Siddall, 2009, p. 9).

Por sua vez, a pintura permitiu ao ser humano a representação pictórica daquilo que via ou pelo menos uma aproximação a essa realidade, procurando representá-la – muitas vezes de forma simbólica – sendo quase sempre evocativa, procurando transmitir a paisagem de acordo com as características do lugar retratado ou, no limite, com os valores daqueles que o olham (Casey, 2002). Sendo a pintura uma das mais antigas manifestações artísticas é possível documentar a evolução que o tratamento da paisagem teve. Ao longo dos tempos o espaço que ocupava no retrato pictórico estruturado pelo artista, o carácter da “paisagem” foi-se alterando, desde a quase inexistência até à omnipresença. Na pintura renascentista a paisagem ocupava o segundo plano e podia ser desprovida de valor geográfico. O que interessava ao artista representar era o conceito cénico humano das cenas religiosas ou do quotidiano; a paisagem era figurativa servindo o dispositivo principal (Kemal, 1995). Da mesma forma estava igualmente quase ausente da literatura de viagens do período, na qual é possível encontrar referências à arquitetura e às populações de um lugar mas não a descrições de paisagens sendo necessário esperar pelo séc. XVIII para que tal se torne uma marca identitária na cultura (Bell & Lyall, 2012).

Uma forma mais abstrata e complexa de traduzir a “paisagem” é aquela que é captada e projetada pela música. A música é capaz de traduzir através de ambientes sonoros paisagens – ou pelo menos, provocar em quem escuta a música sensações que conduzem para a construção interior de uma paisagem – que na linguagem corrente traduzimos por “paisagens musicais”. É comum reconhecermos mentalmente nos sons de uma orquestra, de uma composição, as “imagens” que evoquem uma estação do ano, uma cultura, um povo (a sua alegria, a sua dor, o seu quotidiano), uma terra (Casey, 2002).

Aliás, o carácter e poder imagético da música no seu posicionamento a um determinado lugar ou espaço é-nos dado pela utilização no parágrafo anterior das expressões “ambiente musical” e “paisagens sonoras” que nos remetem para algo físico ou visualizável. Esse poder da música na criação de imagens é utilizado no cinema e na televisão, quantas vezes valorizando o drama ou contextualizando de forma poderosa a “paisagem em movimento”.

O cinema e a televisão apresentam uma complexidade em muitos aspetos similar ao nível da captação e disseminação da paisagem, mas diversa das outras formas de arte. O cinema e a televisão são suportes artísticos e de comunicação fluidos e dinâmicos. Ambos são imagem em movimento, criadoras de ilusão quase palpável sendo paisagens que “look like we could touch them, walk through them and smell them, as well as those that look entirely fanciful or theatrical, are presented to us through the medium of film” (Horton, 2003) com o potencial de manipular o espaço e o tempo de forma plástica levando-nos para qualquer época ou geografia.

A paisagem é no cinema como linguagem de imagens o elemento estruturador da história que nos aparece como personagem principal ou secundária - determinante ainda que invisível -, diluída na acção do filme. Pode ser um universo previamente reconhecível imbuído de um código apreendido pelo olhar como o são as paisagens associadas pelo imaginário cultural ocidental ao género western ou quando a história decorre numa urbe como Nova Iorque. Mesmo quando a ação se situa num mundo de fantasia (para lá do cinema, reino da fantasia per se) com paisagens idealizadas ou sintetizadas num pastiche de referenciais intemporais e ageográficas (Game of Thrones) para um universo particular como o seja um mundo paralelo ou a vida num outro planeta (Star Wars ou Star Trek) num universo que vai muito para lá do conceito de “não-lugar”. Como escreve Horton (2003) sublinhando o caráter manipulador do cinema:

“reel landscapes” can be created using all of the artifice of Hollywood including rear projection (projecting a film or single shot of a real landscape behind the actors in the foreground) and, more recently, digitally added details or landscapes, specially constructed sets, ingenious lighting and, lastly, real landscapes (p. 80).

Neste contexto, é de sublinhar a dimensão que a tecnologia tem ao possibilitar a criação de cenários virtuais com um horizonte infindo de lugares permitido pelo digital levando a um extremo impensável na criação de “paisagens”.

A Paisagem na forma de relevo e suas representações

Utilizemos como exemplo uma das paisagens mais facilmente reconhecíveis no nosso planeta: os Himalaias, alvo de inúmeras representações nas mais diversas formas de arte. Sabemos que são a maior cordilheira acima do nível médio das águas dos mares, com as montanhas de maior altitude do nosso planeta, e por isso agrestes e pouco convidativas à vida devido aos fortes declives e características climáticas; isolam mais do que aproximam e, como tal, criam culturas características. Cruzemos então ciência com algumas das formas de arte possíveis de serem utilizadas neste suporte de papel: o cinema (não com imagens em movimento mas com a captura de um frame o que o torna fotografia), a banda desenhada, a pintura e a literatura.

 

 

 

 

A frame do filme “Sete anos no Tibete” mostra-nos um grupo de tibetanos numa jornada pelos Himalaias. O que ressalta na imagem não é o grupo em si, ou a narrativa de um refugiado austríaco durante a II Guerra Mundial naquele país. O que é evidenciado é a paisagem que apesar de se encontrar em segundo plano é ela que domina projetando uma ideia de vazio: humano e de vegetação. Apenas o ocre granítico e, no plano distante, a brancura alva do gelo de altitude. A separação entre o grupo e a natureza-cenário é claramente evidenciada por dois artifícios dramáticos; por um lado a imersão na sombra dos viajantes, sombra essa projetada por outra montanha em contraplano, por outro a neblina que se interpõe entre planos e acentua a sensação de isolamento. Não muito diferente deste efeito produzido é a abordagem de Hergé (1907-1983) com o seu seminal “Tintim no Tibete”: a mesma sensação de esmagamento da paisagem sobre o individuo e uma vez mais, no plot é a paisagem que separa; no filme referido separa o protagonista da clausura, no livro de Hergé, separa os protagonistas do amigo que buscam. E, no entanto, o efeito dramático é diverso. No primeiro caso a paisagem é sinónimo de liberdade e novas oportunidades por apartar da prisão, no segundo caso é a sensação de aprisionamento e de impotência face à impossibilidade de se libertarem de uma “paisagem-cenário” que aprisiona e condiciona. Encontramos assim, duas formas distintas de apropriação da paisagem como elemento narrativo e, igualmente artístico.

Mas uma nova problemática deve ser abordada tendo como perspectiva a arte como artifício de ilusão e a subjectividade das formas de arte na manipulação do “real” e do “artístico” com base no real.

Os desenhos de Tintim resultam de um profundo trabalho de pesquisa do autor que cuidava escrupulosamente dos contextos geográficos e paisagísticos nos quais o seu personagem se movia que vão muito além daquilo que conhecemos sobre esse mesmo personagem como sublinha Dunnett (2009), referindo que a descrição frugal do personagem Tintim:

contrasts effectively with the surrounding landscapes and settings of the stories, and Hergé went to a great deal of effort to research into the minutiae of real objects such as automobiles and buildings. The results of this approach have been referred to as ‘Hergéen realism' (p. 586).

A crise interior em que o autor se encontrava mergulhado abre espaço na estruturação da sua narrativa, criando um álbum no qual existe um forte subtexto de jornada interior. A paisagem aqui ocupa um duplo artifício: a da leitura metafórica do eu consciente e elemento estruturador de uma narrativa que tem tanto de “géographique avec la représentation du fait montagnard, géopolitique avec le problème du Tibet et de son annexion par la Chine, géo-environnemental avec la question du maintien ou de la disparition d'espèces faunistiques étranges” (Girard, 2009, p. 77) mas também de jornada interior funcionando “comme allégorie moderne et laïcisée du bon samaritain que nous souhaiterions privilégier” (p.77).

Em “Sete Anos no Tibete” a abordagem é diversa e de discussão complexa. O filme é a adaptação de um livro autobiográfico o que implica o confronto de visões distintas, ajustadas a suportes diversos, com códigos e linguagens próprias. Se em termos de paisagem como espaço físico da acção poderá não ter grande impacto, a narrativa pessoal terá múltiplas implicações. No entanto, foquemo-nos apenas na questão da “paisagem”. O filme narra o período de vida de Heinrich Harrer (1912-2006) no Tibete, e as transformações que sofre em contacto com uma cultura e meios distintos do seu em período de grandes convulsões mundiais que vão desde a II Guerra Mundial até à ocupação do Tibete pela China (1951). A abordagem desta história não foi bem vista pelas autoridades chinesas que recusam autorização de filmagem, tendo a equipa de produção optado por filmar no Canadá e na Argentina, em que os Andes substituíram os Himalaias (Nesselson, 1999). No entanto, a equipa de produção conseguiu enviar duas equipas de filmagem para clandestinamente proceder à captação de imagens que foram posteriormente incluídas no filme (“Jean-Jacques Annaud: Mountains, Mantras, and a Movie Star -,” 1997) que nos remente para o carácter manipulador da imagem filmada que vemos projectada “too often we accept a film as a window on reality without noticing that the window has been opened in a particular way, to exclude as well as include” (Braudy, 1977). Ou seja, as paisagens que vemos são apresentadas como uma realidade geográfica e paisagística percepcionada que se tornam híbridos ou pastiches dessa mesma “realidade”.

Por sua vez, o livro autobiográfico (1963) no qual se baseia o filme descreve da seguinte forma aquilo que fora visto em primeira mão mas já filtrado pelo tempo e experiências subsequentes de Harrer:

Foi uma caminhada inesquecível. Andávamos muito além do limite de altitude, por serras de declives suaves; apesar de tudo, não havia monotonia na paisagem. Em certos pontos, era o colorido que deleitava a vista; e raramente me sucedeu ver todos os tons da paleta, em sucessão tão harmoniosa. Ao pé das águas límpidas do Indo, espraiavam-se campos amarelados de bórax; além deles, brotavam os verdes tenros da primavera que nestas paragens só principia em junho. Os luminosos cumes nevados das montanhas formavam o segundo plano. Justamente por ocasião da nossa passagem, um temporal distante no Himalaia desdobrava o encanto indescritível dos seus jogos de matizes (p. 50).

Em ambos os casos a montanha é elemento de encontro do humano com a espiritualidade: os altos declives, o simbolismo da brancura, a provação das forças da natureza marcam a ascensão do humano numa jornada tanto física como interior para, posteriormente, regressar às tépidas planuras um novo homem. Este misticismo transversal a diversas culturas e patente em inúmeras obras de arte pode ser confrontado com duas formas culturais de apreensão e representação de uma mesma realidade, de uma mesma paisagem. Vejamos a representação da paisagem dos Himalaias sob a forma de pintura no olhar de duas culturas distintas: a representação num autor europeu e numa pintura oriental.

 

 

A pintura terá sido a primeira forma de expressão artística a captar e a cristalizar a paisagem, percecionando-a através de filtros de (pré)conceitos que advém do substrato cultural “may be valued differently by diferente cultures, which are themselves (…) in the process of change and development” (Andrews, 1999) e a disseminar ao olhar de quem se detém a fruir da manifestação artística.

“Everest” é uma pintura de 1928 do pintor russo-europeu Nicholas Roerich (1874-1947), produzida durante uma longa expedição pela Ásia. O deslumbramento pela paisagem, pela cultura, levaram-no a captar aquilo que vê e sente:

where can one have such joy as when the sun is upon the Himalayas; when the blue is more intense than sapphires; when from the far distance, the glaciers glitter as incomparable gems. All religions, all teachings, are synthesized in the Himalayas… (Roerich, 2003, p. 41).

A experiência do pintor naquele espaço físico e cultural contribui profundamente para alterar a sua visão de vida tendo sido reconhecido pela sua ação em prol daquelas comunidades. A sua heterógena obra conhece aqui uma metamorfose “the Himalayan period, we see this striving to express a spirituality in nature and to link that spirituality with man's own striving to perfect himself” (Edgar Lansbury, 1974, p. 5) são traços facilmente reconhecíveis num olhar cultural ocidental.

Na abordagem cultural oriental a representação da paisagem está imbuída de princípios filosóficos nomeadamente “the Taoist vision of nature (…) [that] derive from a number of cultural and religious sources, including Confucian, Buddhist, and even shamanistic traditions (…)” (Clarke, 2000, p. 4). O foco está no equilíbrio entre os elementos naturais: a natureza como elemento físico telúrico mas também a sua força vital invisível, e o humano como criatura humilde em harmonia com o espaço (Clarke, 2002) sendo mais do que uma forma de arte mas um prolongamento do espírito do equilíbrio interior de tal forma que mais do que elemento dominante a paisagem é o elemento determinante.

Na figura 4, os Himalaias, retratados em plano afastado no fresco baseado numa lenda que narra a existência de uma terra de bonança, são aqui símbolo de vida. Não dominam ao nível de imagética, antes o fazendo através do simbolismo; uma omnipresença distante. É a água proveniente da fusão dos seus glaciares que dá vida ao local idílico que permite o verde da vegetação e a abundância de alimento. O rio que liga o lugar às montanhas é o fluir da vida, a passagem de estado físico que permite a criação de um lugar harmonioso onde tudo está em equilíbrio.

 

 

A Paisagem de um lugar e suas representações

Desçamos de altitude e de latitude e vejamos outra abordagem num espaço geográfico diverso: as ilhas do Pacífico com as paisagens do Taiti utilizando como base de comparação a indústria do turismo como elemento de construção de “paisagem comércio” vs “paisagem arte”.

Os destinos turísticos têm a capacidade de se transformar e readaptar ao longo do tempo, oferecendo novas experiências numa dinâmica construída para atrair o turista. Neste contexto a valorização de uma “paisagem cenário” é essencial para suportar a actividade turística, pois “since early commercial tourism is the desire to experience beautiful landscapes (…) where consumers want maximum pleasure in minimum time” (Bell & Lyall, 2002, p. 3-4). Dessa forma, a paisagem é conformada àquilo que o turista deseja experienciar (ou pensa que deseja) devendo reunir um determinado número de características que a tornem suficientemente apelativa e desejável, recheada de elementos distintos do quotidiano normal de quem a frui mas, ainda assim, suficientemente reconhecível e familiar para não se estranhar. Ou seja, a experiência que se procura proporcionar ao turista passa por uma construção paisagística que leve a que o turista

go forth looking the unique, distinct, and unusual – somewhere exotic, maybe erotic – but certainly someplace that offers an atmosphere different from that to which they are accustomed. (…) The visual display of people, places and things makes them forms of ‘spectacle' and tourism involves the ‘spectaclization of place' (Bell & Lyall, 2012, p. 5).

E é aqui que entra a transformação de um lugar e de uma paisagem numa representação do paraíso, da “paisagem cenário” em “paisagem comércio”. O Taiti é comummente percecionado (e conscientemente vendido) como um lugar de fartas belezas ou, como se encontra descrito no site oficial do turismo no arquipélago: “Tahiti. The word evokes visions of an island paradise. With 118 islands boasting high, rugged mountain peaks, coral reefs, turquoise-blue lagoons, white sand, palm-fringed beaches, and luxuriously intimate resorts, each island paradise has something for everyone” (http://www.tahiti-tourisme.com/). No entanto, a realidade mostra ser um produto mitificado pelo marketing e pela poderosa imagética a ele associado.

 

 

A questão da construção do mito do “paraíso do Taiti” e a projeção no imaginário universal desse paraíso tem vindo a ser estudada por antropólogos, nomeadamente por Miriam Khan. A realidade é outra: as praias de fina areia branca são escassas estando remetidas a uns poucos atóis e mesmo essas não estão isentas de riscos para os banhistas pois o fundo marinho é coberto por cortantes pedaços de coral; as poucas lagoas de azul-turquesa não estão ao alcance da maior parte dos turistas; o clima perfeito é sazonal e os habitantes com os seus característicos trajes, perfis e tatuagens quase não existem pois também se adaptaram aos tempos, sendo escolhidos a dedo pelos hotéis para representar o papel junto aos turistas (Kahn, 2011).

Parte da imagem do paraíso e do bom selvagem a que culturalmente atribuímos ao Taiti provêm das obras de Gauguin (1848-1903), pintor expressionista francês que viveu e criou parte da sua obra naquele arquipélago onde captou a essência e as cores das vivências das gentes mais do que das paisagens, submergindo por completo na admiração daquela cultura como profusamente regista na sua correspondência para Paris. Mas Gauguin também se apropria da cultura polinésia travestindo-a de um carácter ocidentalizante patente, por exemplo, nos quadros representativos da Santíssima Trindade, incorporando neste e em diversas outras obras iconografia europeia (Walther, 2000) mas igualmente incorporando elementos pictóricos gregos, japoneses, egípcios e europeus (Kahn, 2011), produzindo uma síntese na representação daquela cultura que influenciaria a forma como olhamos para ela.

 

 

Diversa é a abordagem do espaço e das paisagens que o caracterizam assim como do artista que as pintou vistas pelos olhos de um outro artista e de uma outra expressão artística. Mário Vargas Llosa, escritor peruano, na sua obra “O Paraíso na Outra Esquina” (2003) retrata os últimos anos de Gauguin no Taiti. Nesta obra é parco na utilização do artifício de descrição da paisagem para a contextualização do espaço e acções/pulsões do protagonista, estando mais interessado nos demónios interiores e processos criativos do pintor. No entanto, encontramos algumas descrições que remetem para a paisagem como deslumbramento/paraíso reflectindo as primeiras sensações de Gauguin ao desembarcar no Taiti:

Assim que respirou o ar quente de Papeete e os seus olhos ficaram deslumbrados devido à vivíssima luz que caía do céu azulíssimo, e sentiu em redor a presença da natureza naquela erupção de árvores de fruto que irrompia por todo o lado e enchia de aromas as poeirentas ruelas da cidade – laranjeiras, macieiras, coqueiros, mangueiras, as exuberantes goiabeiras e as nutridas árvore-do-pão -, veio-lhe uma vontade de trabalhar que já não sentia há muito (p. 21).

Em contraponto com um primeiro deslumbramento encontramos um mergulho no negrume do desespero em paralelo com as provações de Gauguin, do paraíso transformado em temor/inferno.

Era aquilo o Paraíso, reinventado por um pintor selvagem instalado na ilha de Taiti? Essa tinha sido a tua vaga intenção inicial. Ou, melhor, pintar do inferno em que tinhas caído nestes últimos tempos de encarniçamento do infortúnio, um Jardim do Éden não abstracto, não europeu, não místico, mas maori. Um Éden material, encarnado aqui e agora (p. 203).

A ironia assenta em que tratamos da visão que um artista (Llosa) tem de outro artista (Gauguin) que atuam sobre um espaço. Gauguin viveu no Taiti, com tudo o que isso implica; Llosa visitou todos os lugares em que o pintor esteve numa busca da “fidelidade narrativa” da história a contar (Nunes, 2003), portanto na condição de viajante. A este último interessava a sua própria visão da arte, adequando os esquemas pictóricos de Gauguin aos seus esquemas mentais e artísticos (Kristal & King, 2012) “but on the creation of a new reality that erases the boundaries between the subjective and the objective” (p. 136).

Paisagem – uma síntese

A paisagem é eminentemente um conceito cultural. Cultural na sua mais ampla acepção; desde o povo ou gentes que imbuídas de uma forma de representação e organização da sociedade – e portanto das atividades económicas e, assim, do espaço – constrói a sua paisagem ao artista que, de acordo com o seu ofício, a representa ou traduz. É um lugar dinâmico e plástico que muda com o tempo, com o evoluir das comunidades que o habitam e com os indivíduos que constituem essa comunidade; muda com os reflexos políticos, sociais e económicos nas mais diversas escalas humanas. No limite reflete o estatuto conjuntural de uma “civilização” ou o olhar civilizacional de quem a representa.

Como tal, fruto das ambivalências provenientes da vivência ou do olhar, do uso ou do disfrute, a paisagem é uma entidade de análise complexa e variável que só é entendida e vivenciada plenamente através dos filtros que os cinco sentidos nos permitem, projectando desta forma afetos e preconceitos intrínsecos ao indivíduo independentemente do seu carácter de artista, cientista, viajante em fruição, actor territorial ou decisor político.

No limite, a questão que fica na observação de uma paisagem consiste em algo simples e subjectivo na percepção de cada qual: “Porque é que uma paisagem gera sensações diferentes em cada um de nós?”.

 

Referências

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[Submetido em 28 de julho de 2015 e aceite para publicação em 7 de setembro de 2015]

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