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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.29 no.3 Braga  2015

 

VÁRIA

Não entres tão depressa nessa noite escura de António Lobo Antunes: da escrita romanesca à partitura musical

António Lobo Antunes' não entres tão depressa nessa noite escura: from novel writing to musical score

 

Catarina Vaz Warrot*

*Pós-doutorada na Universidade do Porto - CLUP (Centro de Linguística da Universidade d oPorto), sob a direção da Profª Doutora Isabel Margarida Duarte. Bolseira da FCT (Fundação para a Ciência e Tecnologia), Portugal..

catarinavazw@yahoo.fr

 

RESUMO

A obra Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura (2000) de António Lobo Antunes, apresenta uma certa hibridez na sua composição: é classificada como sendo um poema apesar das suas densas 500 páginas e é construída através de uma multiplicidade de vozes narrativas, de perceções e de pensamentos que se entrelaçam, se repetem e se misturam. O autor reconhece ter tentado criar uma nova arquitetura do romance, utilizando outros meios para elaborar o texto. Decidimos explorar que outros meios poderiam entrar em jogo nesta tentativa de encontrar outra forma de escrita.

Palavras-chave: António Lobo Antunes, análise do discurso, música e literatura

 

ABSTRACT

The novel Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura (2000) written by António Lobo Antunes, shows a certain hybridity in its composition: it is classified as a poem despite its dense text of 500 pages being created by means of a multiplicity of narrative voices, perceptions and thoughts which intertwine, repeat and mix. The author explained that he had tried a new kind of novel architecture, using other means to create the text. Our aim is to explore what are these means that might have come into play in this attempt to find another way of writing.

Keywords: António Lobo Antunes, discourse analysis, music and literature

 

Na obra Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura (2000) de António Lobo Antunes, Maria Clara, personagem central do livro, escreve um diário misturando personagens e acontecimentos apresentados na ficção como sendo reais, com outros inventados ou provenientes dos seus sonhos. Este livro apresenta uma certa hibridez na sua composição: por um lado, logo no paratexto, o livro é classificado como sendo um poema apesar das mais de 500 páginas e de uma mancha gráfica que não se assemelha à do texto poético, mas onde se destaca a existência de uma grande preocupação com a organização tipográfica; por outro lado, é construído através de uma multiplicidade de vozes narrativas, de perceções e de pensamentos que se entrelaçam, se repetem e se misturam.

É conhecida a admiração de António Lobo Antunes pelos poetas e pelo trabalho que estes efetuam ao manusearem cada palavra. O autor afirma a este propósito:

Tenho aprendido mais a escrever com os poetas do que com os prosadores. Em poesia, pelo menos nos poetas que admiro, cada palavra tem um brilho próprio. Mas não gosto de dividir as coisas em romance, conto, novela, poema. (Lobo Antunes, 2004)

A separação em géneros literários é igualmente algo com o qual o autor não concorda:

Disse que era um poema [Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura] em homenagem a Gogol que chamou assim Almas Mortas, mas também porque tentei mostrar que é um abuso delimitar um poema de um romance. Os géneros literários não podem diferenciar-se. (Lobo Antunes, 2005)

O autor admite pretender criar uma nova arquitetura do romance em Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura, alterando a forma tradicional de escrever e utilizando outros meios para elaborar o texto (Lobo Antunes, 2002, pp. 131-132). Pretendemos, neste estudo, destacar outras formas que poderiam entrar em jogo nesta tentativa de encontrar outra maneira de escrever. Ora o autor afirmou, várias vezes, a importância que a música ocupou e ocupa na sua formação de escritor. A crónica intitulada “De Deus como apreciador de jazz” (Lobo Antunes, 2002) permite-nos entrever numerosas pistas relacionadas com esta procura:

Cresci com um enorme retrato de Charlie Parker no quarto. Julgo que para um miúdo que resumia toda a sua ambição em tornar-se escritor Charlie Parker era de facto a companhia ideal. Esse pobre, sublime, miserável, genial drogado que passou a vida a matar-se e morreu de juventude como outros de velhice continua a encarnar para mim aquela frase da Arte Poética de Horácio que resume o que deve ser qualquer livro ou pintura ou sinfonia ou o que seja: uma bela desordem precedida do furor poético

diz ele

é o fundamento da ode. Sempre que me falam de palavras e influências rio-me um pouco por dentro: quem ajudou de facto a amadurecer o meu trabalho foram os músicos. A minha estrada de Damasco ocorreu há cerca de dez anos, diante de um aparelho de televisão onde um ornitólogo inglês explicava o canto dos pássaros. Tornava-o não sei quantas vezes mais lento, decompunha-o e provava, comparando com as obras de Haendel e Mozart, a sua estrutura sinfónica. No fim do programa eu tinha compreendido o que devia fazer: utilizar as personagens como os diversos instrumentos de uma orquestra e transformar o romance numa partitura. Beethoven, Brahms e Mahler serviram-me de modelo para A Ordem Natural das Coisas, A Morte de Carlos Gardel e o Manual dos Inquisidores, até me achar capaz de compor por conta própria juntando o que aprendi com os saxofonistas de jazz, principalmente Charlie Parker, Lester Young e Ben Webster, o Ben Webster da fase final, de Atmosfera para Amantes e Ladrões, onde se entende mais sobre metáforas directas e retenção de informação do que em qualquer breviário de técnica literária. Lester Young, esse, ensinou-me a frasear.

Deste modo, partindo de algumas características gerais da obra em estudo – multiplicidade de vozes narrativas, trabalho tipográfico, entre outras – e das reflexões do autor, parece-nos podermos considerar esta obra como sendo representativa de uma nova forma de escrever romances que se pode aproximar da escrita musical. Propomo-nos, por conseguinte, num primeiro momento, refletir em paralelo sobre a evolução dos modelos sinfónicos e dos vários períodos do jazz e sobre a evolução da arte de escrever de António Lobo Antunes. Num segundo momento analisaremos de que modo a escrita romanesca de Não entres tão depressa nessa noite escura se pode aproximar de uma partitura musical.

Partindo da afirmação do autor sobre ter tentado escrever os livros A Ordem Natural das Coisas (1992), A Morte de Carlos Gardel (1994) e o Manual dos Inquisidores (1996), baseando-se nas estruturas das sinfonias de Beethoven, Brahms e Malher para depois passar a um sistema de escrita individual e singular, vejamos de que modo se deu a evolução da sinfonia após estes três compositores e de que modo a escrita de Lobo Antunes também terá evoluído a partir dos romances acima mencionados.

Com e depois de Beethoven (1770-1827), o sinfonista dispõe, a partir de uma base quádrupla clássica[1], de um certo número de variantes, muitas delas indicadas e experimentadas pelo próprio Beethoven, que tentou introduzi-las com maior ou menor sucesso. O modelo da sinfonia clássica começa então a esgotar-se e a usar-se. Michel Chion (1994, p. 68) afirma:

Cependant, il s'est produit forcément, entre le début du XIXe siècle et sa fin, une usure progressive du scénario tonal et modal classique, usure favorisé par le recours trop fréquent aux mêmes formes, par le goût croissant pour les modulations hardies, et par l'exacerbation même de la conscience tonale.

Em consequência, dá-se uma rutura com este modelo clássico trabalhado até aos seus limites. Surge então o nome de Schönberg (1874-1951) que evoca ao mesmo tempo a continuidade e a rutura com a tradição musical. Inventor de um novo sistema musical, o dodecafonismo ou música serial, este compositor rompeu com o sistema tonal tradicional, herdado de J.S. Bach. Suspendendo as funções tonais, chegou ao atonalismo. A etapa final, construtiva, é a música serial, em que a obra se elabora segundo uma série em que estão representados os doze sons da escala cromática. Foi uma evolução sistemática, que partiu do hipercromatismo de Wagner de Tristão e Isolda para chegar à dissolução tonal (atonalismo) e, depois, à construção do seu próprio sistema.

António Lobo Antunes, por seu lado, começa nos seus livros a trabalhar e a re- / des- organizar as formas canónicas do romance: o tempo e o espaço, as vozes que surgem no texto, a redução da ação a favor do aparecimento de pensamentos e memórias. Após ter usado e re-trabalhado as categorias tradicionais da construção romanesca, o escritor pretende ir mais além e construir um outro sistema de escrita. Deste modo, os livros do autor tornam-se cada vez mais complexos, perturbando o horizonte de expectativas do leitor, pois categorias como tempo e espaço cronólogicos são dinamitadas. A ação acaba por se apagar, dando lugar a uma série de pensamentos, de monólogos que se sobrepõem, de vozes e de silêncios que ocupam simultaneamente a página. Maria Alzira Seixo fala, a propósito de Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura, de “várias vozes discordantes”, de uma “espécie de desacerto instrumental”, de “escalas, ou, registos de expressão convocados”, ou ainda de “distonia” (Seixo, 2002, p. 419), concluindo que é bem provável que se trate de “uma nova forma de escrever romances similar à da ruptura com o universo tonal, em música, praticada pela Escola de Viena” (Seixo, 2002, p. 419).

Pensamos que este livro condensa uma série de procedimentos de escrita afinados e desenvolvidos nas obras posteriores que nos permitem falar de rutura. Rutura é igualmente o termo aplicado ao tipo de jazz praticado por Charlie Parker – o BeBop (1940-1948). O BeBop surge como um corte com o passado (Blues e Swing) e os jovens músicos desta geração pretendem explorar novas possibilidades rítmicas e harmónicas impossíveis de desenvolver no seio das grandes formações de jazz. Pela primeira vez na história do jazz, uma geração constituída por músicos como Charlie Parker e Charlie Christian, entre outros, tornou-se numa “avant-garde” (cf. Bergerot, 2001, pp. 106-124). Dizer as coisas de outra maneira, inscrever todos os possíveis na composição musical e fazer coexistir vários mundos numa mesma composição, eis algumas das caractéristicas do BeBop que de maneira global podemos associar à criação romanesca de António Lobo Antunes e a uma das suas afirmações: o desejo de colocar toda a vida entre as páginas de um livro (cf. Lobo Antunes, 2005).

Se a escrita romanesca de António Lobo Antunes reflete de maneira global alguns aspetos desenvolvidos e postos em questão pelos movimentos musicais ligados quer à sinfonia quer ao jazz – dois dos referentes musicais indicados pelo próprio autor – vejamos agora de que maneira podemos identificar algumas semelhanças entre a escrita romanesca de Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura e a escrita musical.

Este tipo de aproximação coloca inevitavelmente o problema da exatidão terminológica. A dificuldade levantada pela questão da influência formal da música na literatura relaciona-se com o carácter obrigatoriamente metafórico da aproximação entre termos musicais e termos linguísticos e literários. Por exemplo, a noção de “romance polifónico” que Bakhtine definiu em oposição à tradição monológica do romance, fazendo referência à igualdade das vozes, à pluralidade das visões, à multiplicidade dos centros de narração, intrínsecos, segundo ele, aos romances de Dostoievski (Bakhtine, 1978), deveria corresponder a uma obra na qual o autor conseguiria fazer ouvir simultaneamente as vozes das diferentes personagens. Contudo, a literatura, que é por natureza monódica e linear, pode dificilmente, e ao contrário da música, sobrepor vozes. Este tipo de exemplo leva-nos a avançar com prudência no terreno das analogias musico-literárias, daí que falemos em semelhanças e não numa coincidência ou identificação de termos.

Entre as semelhanças que podemos identificar entre a escrita romanesca a escrita musical destacamos, partindo do texto literário, os seguintes aspetos: a polifonia, a pontuação, o espaço-branco e a translineação abrupta.

“Polifonia” é um termo que provém da terminologia musical e que surge nos estudos linguísticos e literários a partir dos trabalhos do Círculo de Bakhtine. Apesar da problemática decorrente quer da tradução dos termos em russo quer das diferenças entre as noções de dialogismo e polifonia que não podemos desenvolver neste breve estudo (Nowakowska, 2005, pp. 19-32), o termo relaciona-se directamente com a ideia de um diálogo, de uma interação entre dois ou mais discursos ou entre várias vozes narrativas (Reis & Lopes, 2000, p. 332). Em Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura, assim como noutros livros do autor, podemos destacar vários tipos de enunciação que correspondem a formas gráficas por vezes diferentes. Ao representarmos um excerto da obra separando as várias fontes de enunciação, obtemos a seguinte representação:

 

Quadro 1

 

 

Quadro 2

 

 

Quadro 3

 

Aos vários tipos de enunciação / vozes atribuímos cores diferentes e colocámo-los em colunas de acordo com o seu aparecimento e transição no romance. Observamos, assim, a existência de níveis diferenciados – um narrador predominante (1); precisões dadas ao que é contado no nível anterior (2); frases em discurso directo (3); e frases entre parênteses (4) – que podem ser lidos de maneira separada ou alternada. Parece-nos que esta representação tem a vantagem de colocar cada voz textual num nível ou linha diferente à semelhança da escrita musical de uma sinfonia ou de uma composição polifónica (por exemplo o jazz), e de nos mostrar que, tal como o músico / intérprete, o leitor tem de conseguir ler, por um lado, cada voz em separado, mas deve, ao mesmo tempo, conseguir lê-las / ouvi-las juntas (no caso da música, em simultâneo). E aqui reside talvez uma das dificudades de leitura dos livros de António Lobo Antunes – trata-se de uma outra maneira de ler. O leitor torna-se no maestro que lendo cada voz / instrumento em separado consegue apreender a unidade que existe na fragmentação e na heterogeneidade e aceder a um sentido formado pela multiplicidade de sentidos.

A pontuação permite introduzir uma organização ritmica e visual no texto escrito. Na obra em estudo, a pontuação caracteriza-se pela existência de múltiplas suspensões e pausas. Trata-se de uma pontuação que se baseia em frases curtas nas quais o discurso directo ou as alteraçõesde voz obrigam à mudança de linha, marcando, deste modo, o ritmo do texto. Com efeito, a pontuação não se faz utilizando os tradicionais sinais ortográficos, visto não encontrarmos praticamente nenhum ponto final, mas ela é feita pela alternância da enunciação. A escrita suspende-se para deixar que outras vozes e pensamentos se introduzam no discurso. Citando Henri Meschonnic, observamos que “la ponctuaction est l'insertion même de l'oral dans le visuel” (1982, p. 300). São as várias vozes, que pela sua presença, ausência ou modulações, imprimem uma pontuação e um ritmo ao texto à semelhança dos instrumentos de uma composição musical. Vejamos o seguinte exemplo:

 

Quadro 4

 

 

Quadro 5

 

Trata-se de um ritmo rápido e sincopado que coloca em jogo quatro enunciações diferentes. A mudança de linha corresponde na maior parte dos casos à mudança de voz. O texto é pontuado por este jogo de vozes e não pelos sinais ortográficos. Neste sentido, parece-nos que o tipo de pontuação escolhido deixa em aberto a frase e apela a uma tentativa de reprodução da simultaneidade. As frases não são estanques, fechadas pelos pontos finais e pelas maiúsculas, mas abertas e arejadas. Ao nível tipográfico apercebemo-nos imediatamente das frases curtas e dos brancos que, tal como Anne Herschberg Pierrot (2005, p. 150) afirma criam um “efeito de voz”:

Les blancs ne sont pas simplement le fond indifférencié sur lequel se détache l'écriture, ils constituent une véritable ponctuation de texte et de page. Ils inscrivent une «diction graphique» qui crée un effet de voix.

Com efeito, os vazios gráficos introduzem um ritmo específico que nos conduz a considerar o tecido sonoro do texto. Os travessões introduzem o discurso directo, os parênteses assinalam interrupções, mudanças de voz e de pensamentos. Henri Meschonnic (1982, p. 299) pronunciou-se igualmente acerca da questão da audição do texto e parece-nos importante fazer referência às suas considerações:

Il n'y a pas d'un côté, l'audition, sens du temps, d'un autre, la vision, sens de l'espace. Le rythme met de la vision dans l'audition, continuant les catégories l'une dans l'autre dans son activité subjective, trans-subjective. Le visuel est inséparable de son conflit avec l'oral.

Esta ligação entre tecido sonoro e tecido visual coloca em evidência uma prosódia do texto que encontramos também na leitura de composições musicais e que é inseparável da leitura desta obra. Françoise Boch (1989, p. 96) a propósito da tomada de notas atribui à existência do branco gráfic o o termo de “marca semiográfica” e distingue três tipos:

(…) ce que nous appelons les «unités péricatenales» accompagnent le texte, «les unités intégrées» en modifient l'aspect; les «unités caténales» font partie du texte, en tant qu'elles apparaissent sur la chaîne graphique.

Esta distinção parece-nos útil, na medida em que nos permite distinguir este tipo de branco de página, consequência da presença de frases curtas e da introdução do discurso directo e o espaço-branco introduzido no interior da frase.

O espaço-branco enquanto unidade concatenal é um processo recorrente em Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura que não se pode separar do trabalho entre a linguagem e o seu sentido e a sua representação gráfica. Em música, as pausas, a duração dos sons (semibreve, mínima, semínima, colcheia...) são representadas graficamente. Na literatura, tal representação só muito recentemente começou a surgir. Neste livro de António Lobo Antunes destaca-se a presença de pausas e de espaços brancos representados graficamente no texto:

a Maria Clara é o da casa (Lobo Antunes, 2000, p. 37; p. 204; p. 205)

e o meu pai de dentes todos a argumentar com os jugoslavos numa língua confusa, quando éramos fadas no rebordo do lago víamo-lo discursar no escritório, persuasivo, tenaz, o menino a fixar a própria numa curiosidade de barro, as folhas que mesmo em agosto (...) (Lobo Antunes, 2000, p. 96)

o jardineiro abria a torneira e o menino de barro principiava a , levávamos o afilhado de volta ao internato (...) (Lobo Antunes, 2000, p. 103)

(...) ocupar-me de tarefas inúteis que enquanto durassem adiariam a , o lanche na bandeja, a maçã cozida (...) (Lobo Antunes, 2000, p. 205)

à entrada da garagem, à entrada da sala com uma chave de fendas e no cabo da chave de fendas um coágulo de óleo e não era óleo era , a fluidez do , aquele vermelho escuro e contudo nós não sentindo, não vendo (...) (Lobo Antunes, 2000, p. 271)

Os espaços-brancos são graficamente visíveis e tal como na escrita musical contemporânea podem surgir espaços brancos ou omissões. Eles representam o silêncio, o não-dito, a suspensão (Vaz Warrot, 2007) e obrigam o leitor a parar e a interrogar-se sobre o que poderia estar escrito. Tal como as notas musicais se declinam em semi-breves, colcheias, semi-colcheias, umas mais longas do que outras, também a palavra se torna passível de arranjos e cortes e de conjugações variáveis. O tratamento do significante enquanto objecto material leva-nos a pensar nas notas que se conjugam para formar um som e que podem suspender-se deixando que outros sons surjam e se misturem, sobrepondo-se. Atentemos nos seguintes exemplos da obra em análise:

os castanheiros afastaram-se de mim, quem me pegava ao colo afas

- Amanhã depois de amanhã quarta-feira sei lá

tou-se de mim e principiei

acho que não sentia nada, não sinto nada ao lembrar isto (...) (Lobo Antunes, 2000, p. 133)[2]

a Adelaide

a procurar qualquer coisa sob ela que eu não podia ver, qualquer coisa miúda que chor

não, qualquer coisa miúda e sem importância alguma que escondeu no vestido (Lobo Antunes, 2000, p. 166)[3]

(...) quero um lobo da Alsá

quero um setter no Natal, quero um colar de esmeraldas (...) (Lobo Antunes, 2000, p. 217)[4]

(...) a escrever o que não disse nunca

não diria nunca

que por exemplo em nossa casa cadáv

- Afirmou que o seu pai negociava em armas? (Lobo Antunes, 2000, p. 277)[5]

- detestava essa velha

e nem uma lágrima sequer, não consigo ter lágrimas

de gengiva com um único dente e o alicate ou o dente arrancando-me de mim até que qualquer coisa numa tijela de plástico, o neto se desinteressar regressando aos caixotes, a par

não pode ser, garanta-me que não pode ser, a minha filha não

teira triunfal

- Já está (Lobo Antunes, 2000, p. 431)[6]

As palavras são desmontadas e cortadas – por vezes nunca acedemos à sua totalidade, outras vezes é como se no seu interior fosse possível ouvir outras vozes. Nestes casos parece-nos que este pode ser um dos procedimentos para tentar reproduzir a simultaneidade de vozes e que é dificilmente realizável no texto literário. Mas apesar da barreira da linearidade da língua escrita, o autor tenta introduzir a simultaneidade cortando palavras, dividindo sílabas, prolongando sons, tal como um músico o faz quando escreve uma partitura.

Na literatura como na música o tentar ir além dos modelos canónicos, criando novos processos de criação, é algo que sempre acompanhou a criação artística. A influência da música na formação de António Lobo Antunes afigura-se-nos como uma das chaves para aceder a um projeto de escrita ambicioso e complexo, caracterizado pelo desejo de dizer e de contar de outra forma.

Pensamos que, tal como o autor o anuncia na dedicatória desta obra “Para a Zé que há-de encontrar maneira de ler este livro”, uma das maneiras possível será pensarmos numa escrita que, em certos aspetos, – a polifonia, o tipo de pontuação, o espaço-branco e a translineação abrupta, entre outros – , se aproxima da escrita musical.

 

Referências

Bakhtine, Mikhaïl (1978). Esthétique et théorie du roman. Paris: Gallimard. [1975]        [ Links ]

Bergerot, Franck (2001). Le jazz dans tous ses états – histoire, styles, foyers, grandes figures. Paris. Larousse.         [ Links ]

Boch, Françoise (1989). Études des marques sémiographiques dans l'écrit ordinaire: la prise de notes. In Pratiques langagières et didactiques de l'écrit (pp. 95-107). Grenoble: IVEL-LIDILEM, Univ. Stendhal Grenoble III.         [ Links ]

Chion, Michel (1994). La symphonie à l'époque romantique de Beethoven à Mahler. Paris: Fayard.         [ Links ]

Herschberg Pierrot, Anne (2005). Le style en mouvement – littérature et art. Paris: Belin.         [ Links ]

Lobo Antunes, António (2000). Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura. Lisboa: Dom Quixote.         [ Links ]

Lobo Antunes, António (2002). Segundo Livro de Crónicas. Lisboa. Dom Quixote.         [ Links ]

Lobo Antunes, António (2004, Novembro 9). “Saber ler é tão difícil como saber escrever” (entrevistado por Maria Augusta Silva). Diário de Notícias, 2-6.         [ Links ]

Lobo Antunes, António (2005). Passarás a vida toda procurando aprender a escrever. Entrevista com António Lobo Antunes. Actas do Colóquio António Lobo Antunes na Roménia (pp. 121-140). Bucareste.         [ Links ]

Lobo Antunes, António (2005, Décembre 2). Mettre toute la vie entre les pages d'un livre. Le Monde, 12.         [ Links ]

Meschonnic, Henri (1982). Critique du rythme, anthropologie historique du langage. Lagrasse: Éditions Verdier.         [ Links ]

Nowakowska, Aleksandra (2005). Dialogisme, Polyphonie: des textes russes de M. Bakhtine à la linguistique contemporaine. In Dialogisme et polyphonie. Actes du colloque de Cerisy (pp. 19-32). Bruxelles : De Boeck / Duculot.         [ Links ]

Reis, Carlos & Lopes, Ana Cristina M. (2000). Dicionário de Narratologia (7ª ed.). Coimbra: Almedina.         [ Links ]

Seixo, Maria Alzira (2002). Os romances de António Lobo Antunes. Lisboa: Dom Quixote.         [ Links ]

Vaz Warrot, Catarina (2007). A Poeticidade da Escrita em Suspenso em Boa Tarde Às Coisas Aqui Em Baixo de António Lobo Antunes. In Espelhos, Uma Fisga... E Poesia – Doutoramento Honoris Causa António Lobo Antunes. 6 de Julho de 2007 (pp. 319-333). Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro: Minerva Transmontana.         [ Links ]

 

[recebido em 2 de janeiro de 2015 e aceite para publicação em 15 de agosto de 2015]

 

Notas

[1] Um primeiro movimento rápido de forma sonata; um segundo movimento lento frequentemente em forma de lied; um minueto ou scherzo e um final de forma variável.

[2] (o negrito é nosso).

[3] (o itálico é do autor, o negrito é nosso).

[4] (o negrito é nosso).

[5] (o negrito é nosso).

[6] (o negrito é nosso).

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