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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.30 no.1 Braga  2016

 

A pesquisa em inteligibilidade de fala e sua relevância para o ensino de pronúncia do inglês

Research on speech intelligibility and its relevance for teaching english pronunciation

 

Anna Júlia Karini Martins*; Letícia Stander Farias**

*Universidade Federal de Pelotas, Brasil, annajuliakarini@gmail.com.
**Universidade Federal de Pelotas, Brasil, leticiastander@gmail.com.

 

RESUMO

Com base nas necessidades e objetivos dos aprendizes de inglês como língua estrangeira e em estudos anteriores acerca do tema, este estudo visa a relacionar resultados de pesquisa em inteligibilidade com o ensino de pronúncia. Por meio de gravações de quatro rodas de conversa entre falantes brasileiros e ouvintes nativos de língua inglesa, com e sem familiaridade com a língua portuguesa, e da análise de questionários respondidos pelos ouvintes, investigou-se e confirmou-se a relevância da familiaridade do ouvinte com a língua materna do seu interlocutor. Além disso, verificou-se que a exposição a diferentes sotaques do inglês é uma variável que, de acordo com a percepção dos ouvintes, facilita a interação.

Palavras-chave: inglês; inteligibilidade; pronúncia; familiaridade; ensino.

 

ABSTRACT

Based on the EFL learners' needs and objectives and on previous studies regarding the theme, this study aims at relating research findings on intelligibility and pronunciation teaching. The data involves free conversations between Brazilian English learners and American listeners, both familiar and not familiar with Brazilian Portuguese, and the analysis of questionnaires answered by the listeners. The results confirm that the listeners' familiarity with the speakers' mother tongue is a relevant variable. Furthermore, it was verified that the exposure to different English accents is a variable which, according to the listeners' perception, facilitates interaction.

Keywords: English; intelligibility; pronunciation; familiarity; teaching.

 

0. Introdução

Com o crescimento do uso da língua inglesa para comunicação internacional, as necessidades e objetivos dos aprendizes, no que diz respeito à pronúncia, deixaram de estar relacionados à aquisição de um falar próximo ao de um nativo. Hoje, busca-se a capacidade de se comunicar com uma pronúncia clara e compreensível, tanto em interações com falantes nativos do idioma, quanto em interações com outros falantes estrangeiros.

Essas questões parecem simples, mas envolvem aspectos complexos como, por exemplo, o conceito de inteligibilidade de fala, que é cercado de diversas variáveis. No presente artigo busca-se: (1) investigar o papel da variável da familiaridade do ouvinte com a língua materna de seu interlocutor (2) retomar brevemente os estudos que vêm sendo feitos acerca da inteligibilidade de pronúncia de falantes brasileiros de inglês e (3) apontar a importância de relacionar a pesquisa em inteligibilidade de fala com o ensino de pronúncia do inglês.

1. Necessidades e objetivos dos aprendizes de língua inglesa

Ao considerarmos o ensino e aprendizagem de línguas estrangeiras, partindo de um panorama histórico, é possível apontar uma relação direta entre os objetivos dos aprendizes de língua em determinado contexto e os métodos de ensino que surgem e/ou que são mais utilizados nesse contexto.

Cabe, então, o seguinte questionamento: quais são as necessidades e objetivos de um aprendiz de inglês no contexto atual? Não é difícil de se constatar que a língua inglesa está sendo utilizada para fins de comunicação internacional, seja por motivos de turismo, acadêmicos ou de negócios. Durante essas interações, a língua é utilizada tanto para comunicação entre um falante não-nativo e um falante nativo quanto para comunicação entre falantes não-nativos e de línguas maternas distintas (um japonês e um brasileiro, por exemplo).

Hoje, a língua inglesa caracteriza-se, portanto, como uma língua internacional e, nesse caso, os falantes não necessariamente precisarão e/ou buscarão um falar próximo de um nativo, mas sim um falar que sejade fácil entendimento.Uma pronúncia "confortavelmente inteligível"[1] já foi sugerida como objetivo do ensino de pronúncia por Abercrombie (1956) e é uma questão que vem sendo abordada por livros de pronúncia como Kenworthy (1987), Brazil (1996), Jenkins (2000), Lieff, Pow e Nunes (2011) e também em conferências que tratam sobre o ensino de pronúncia de língua estrangeira. Resta-nos compreender o significado dos termos inteligibilidade e compreensibilidade e suas relações com o status da língua inglesa como língua internacional.

2. Inteligibilidade, compreensibilidade e Inglês como Língua Internacional

Várias definições têm sido sugeridas para os termos inteligibilidade, compreensibilidade e inglês como língua internacional. As definições aqui adotadas foram escolhidas de acordo com a metodologia utilizada para a análise dos dados.

Para o termo inteligibilidade, adotamos a definição de Derwing e Munro (1995, p.291), que a caracterizam como "o quanto uma produção é efetivamente entendida"[2]. Dessa forma, inteligibilidade diz respeito ao fato de uma produção oral ser ou não entendida corretamente (conforme a intenção do falante) pelo ouvinte (falante nativo ou não nativo da língua em questão).

Derwing, Munro e Thomson (2007, p.360) definem compreensibilidade como "a facilidade ou dificuldade com que um ouvinte compreende uma fala com sotaque estrangeiro"[3]. Ou seja, enquanto ao falarmos de inteligibilidade lidamos com algo mensurável, a compreensibilidade relaciona-se com o julgamento do ouvinte acerca da dificuldade de compreender certas produções. Com isso, entendemos que certos desvios de pronúncia podem ser inteligíveis e, ao mesmo tempo, fácil ou dificilmente compreensíveis.

No que tange ao termo "inglês como língua internacional", pesquisadores da área o definem sob diferentes visões. Alguns entendem que a língua inglesa caracteriza-se como língua internacional quando a interação acontece apenas entre falantes não-nativos da língua. Neste estudo, o uso do termo refere-se não só a essas interações entre falantes não-nativos de inglês, mas também a interações entre falantes nativos e não-nativos.

Delimitados os conceitos de inteligibilidade, de compreensibilidade e de inglês como língua internacional, passamos a revisar brevemente as principais pesquisas em inteligibilidade de fala no Brasil que serviram de aporte teórico para o estudo aqui apresentado.

3. Pesquisa em inteligibilidade de fala no contexto brasileiro

Diversos estudos em inteligibilidade de fala têm sido realizados ao longo dos anos, envolvendo diferentes grupos de falantes e ouvintes. No Brasil, uma das principais pesquisadoras a esse respeito é Cruz (2003, 2006a, 2006b, 2007, 2008, 2014), cujos estudos discutem em que medida os desvios de pronúncia de aprendizes brasileiros podem dificultar a compreensão de suas produções orais por diferentes grupos de ouvintes (falantes nativos e não-nativos de inglês).

Cruz (2014) aponta e tenta responder duas questões essenciais acerca de inteligibilidade de fala como objetivo do ensino de pronúncia: (1) Que aspectos de pronúncia são mais importantes para se atingir uma pronúncia inteligível? (2) Como deve ser esse objetivo em nossa prática de sala de aula?

A primeira pergunta que Cruz (2014) tenciona responder relaciona-se à complexidade e dificuldade em se medir a inteligibilidade que, segundo Field (2003), deve-se à diversidade de variáveis, referentes tanto aos falantes quanto aos ouvintes, que facilitam ou impedem a inteligibilidade. Cruz destaca as seguintes variáveis, referentes aos falantes e aos ouvintes, respectivamente: (1) a influência da língua materna e (2) a familiaridade com o sotaque estrangeiro do falante. Assim, com a intenção de solucionar a primeira questão e de evitar estudos que resultem em generalizações questionáveis, Cruz alega:

As variáveis relacionadas aos falantes e aos ouvintes apontam para a necessidade de estudos em inteligibilidade de pronúncia que focalizem aprendizes ou falantes de uma língua estrangeira em particular para grupos de ouvintes que tenham diferentes graus de familiaridade com o sotaque estrangeiro desse aprendiz ou falante. (CRUZ, 2014, p. 240)

Como sugestão de solução para a segunda pergunta, Cruz (2014) indica que estudos devem ser realizados e seus resultados devem ser aplicados em sala de aula, sempre com a consciência de que os resultados de cada estudo dirão respeito ao que é inteligível para determinado grupo de ouvintes.

Com base nessas indicações e nos principais resultados dos estudos de Cruz e colaboradores, nosso objetivo é investigar se os desvios de pronúncia de um determinado grupo de aprendizes brasileiros de inglês afetam a inteligibilidade de interlocutores nativos com ou sem familiaridade com a língua portuguesa. O que trazemos de novo no presente estudo é que não trabalhamos com a familiaridade com o sotaque estrangeiro, mas com a familiaridade com a língua materna do falante.

3.1. Metodologia

3.1.1. Participantes

Podemos dividir os participantes da pesquisa em três grupos: (1) falantes brasileiros de inglês; (2) ouvintes norte-americanos não-familiarizados com o português brasileiro e (3) ouvintes norte-americanos familiarizados com o português brasileiro.

O grupo 1, falantes brasileiros de inglês, foi composto por dez alunos do curso de Licenciatura em Letras Português/Inglês e Respectivas Literaturas da Universidade Federal de Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil. Todos possuem entre 20-25 anos de idade, nível B1 e B2 de acordo com o Quadro Comum Europeu de Referência (atestado pelo teste de nivelamento TOEFL-ITP) e nunca tiveram experiência em países que têm inglês como língua materna.

O grupo 2, ouvintes norte-americanos não-familiarizados com o português brasileiro, foi composto por quatro norte-americanos naturais de Ohio, Texas, Minnesota e Idaho. Todos com faixa-etária de 20-25 anos e chegados ao Brasil há menos de um mês.

O grupo 3, ouvintes norte-americanos familiarizados com o português brasileiro também foi composto por quatro norte-americanos com faixa-etária de 20-25 anos. Todos residentes no Brasil e estudantes de português há, pelo menos, oito meses.

3.1.2. Coleta de dados

A coleta de dados foi realizada em duas etapas e consistiu em gravações com duração entre 20 e 30 minutos de pequenas rodas de conversa entre alunos do curso de Letras Português/Inglês e Respectivas Literaturas da Universidade Federal de Pelotas e falantes nativos de inglês americano, todos conscientes de que estavam sendo gravados, tendo assinado o Termo de Consentimento Livre e Informado.

Para instigar a conversa foram indicados os seguintes tópicos aos participantes: (1) Talk about your plans for next weekend (2) Talk about your favorite singer/band (3) Talk about a movie you watched or a book you read[4], mas foi deixado claro que poderiam falar sobre qualquer assunto que desejassem e que não precisavam preocupar-se caso a conversa tomasse outro rumo a partir dos tópicos indicados. Os tópicos foram escolhidos de tal forma que os falantes tivessem que falar de eventos em diferentes tempos verbais, visando a obter uma variedade maior dentro do nosso universo de dados coletados.

Três pesquisadores estavam presentes durante todas as gravações, atentando para reações e expressões faciais dos ouvintes que pudessem indicar qualquer interferência na interação. Foram registradas questões como: pedidos de repetição e/ou esclarecimento e indicações faciais de que algo não havia sido entendido. Assim, durante a análise dos dados gravados procuramos pontualmente os momentos registrados, a fim de identificar os segmentos que afetaram a inteligibilidade.

A primeira coleta contou com a participação dos grupos 1 e 2. Durante essa etapa foram realizadas gravações de duas rodas de conversa, cada uma delas formada por cinco brasileiros e dois americanos. Na segunda coleta, participaram os grupos 1 e 3. Da mesma forma que na etapa anterior, foram realizadas gravações de duas rodas de conversa, cada uma delas formada por cinco brasileiros e dois americanos.

Vale ressaltar que, neste estudo, entendemos como inteligível tudo aquilo que os falantes nativos de inglês foram capazes de compreender naturalmente ao conversar com interlocutores brasileiros. Se por algum motivo, em meio à interação, os ouvintes solicitassem que seus interlocutores repetissem ou explicassem o que disseram, a inteligibilidade foi considerada afetada.
Para a análise dos aspectos que afetaram a compreensibilidade, solicitamos aos ouvintes que respondessem ao questionário abaixo, citando exemplos e compartilhando suas percepções acerca da dificuldade de compreender determinados segmentos.

 

1. Check the items that you believe affected your comprehension during the conversation:

( ) pauses

( ) hesitations

( ) rhythm

( ) intonation

( ) stress

( ) consonant sounds

( ) vowel sounds

( ) voice quality

( ) self corrections

( ) others ____________________

2. Has your background experience helped you understand the speakers in any particular moment? What was it?

3. Was there anything (a word, an idea, etc.) you could not understand? Can you explain what it was?[5]

 

Muito embora sigamos as diretrizes traçadas por Cruz (2003, 2006a, 2006b, 2007, 2008, 2014) e nossos objetos de estudo assemelhem-se aos de pesquisas já realizadas por ela, optamos por coletar os dados de uma maneira distinta. Cruz coletou os seus dados, por exemplo, das seguintes formas: em um primeiro estudo, um falante nativo de inglês entrevistava dez aprendizes da língua e essas entrevistas eram gravadas. Em um segundo estudo, tópicos eram sugeridos ao aprendiz, que deveria expor suas ideias enquanto era gravado. Em ambos os estudos o processo posterior às gravações era o mesmo: amostras com desvios de pronúncia eram selecionadas com base em estudos que indicam os fonemas de difícil produção por brasileiros. As amostras eram, então, apresentadas aos ouvintes, que deveriam transcrever o que ouviram e julgar o grau de dificuldade para compreender a passagem.

Os resultados de Cruz (2003, 2006a, 2006b, 2007, 2008, 2014) são muito relevantes para a pesquisa em inteligibilidade de fala e para os professores de língua inglesa no Brasil, pois apontam quais dos desvios comuns na fala do aprendiz brasileiro de inglês são ou não inteligíveis para diferentes grupos de ouvintes. Observamos, no entanto, que o processo de seleção de amostras poderia inibir o surgimento de resultados importantes, já que desvios não-inteligíveis, diferentes daqueles indicados pelo pesquisador, poderiam passar despercebidos. Além disso, a comunicação presencial entre falantes e ouvintes possibilita a negociação de significado, permitindo, muitas vezes, que algo não-inteligível passe a ser compreendido sem maiores dificuldades. Essas observações justificam a forma como foram coletados os dados no presente estudo.

3.2. Análise dos dados

Os dados foram analisados da seguinte forma: três pesquisadores estavam presentes durante as gravações anotando os momentos em que os ouvintes expressavam que a inteligibilidade foi afetada (através de questionamentos, pedidos de repetição, etc.). Em seguida, as gravações foram ouvidas, individualmente e mais de uma vez, por dois dos pesquisadores, atentando aos momentos de falhas na comunicação. Não houve discordância nas avaliações dos áudios e, por essa razão, o terceiro pesquisador, que julgaria tais casos, não foi consultado.

A seguir, os questionários respondidos pelos ouvintes foram analisados. A questão número um objetivava identificar a percepção dos ouvintes em relação aos aspectos que teriam afetado a compreensão da conversa em geral (caso não tivessem conhecimento linguístico necessário sobre esses aspectos, foi deixado claro que poderiam perguntar aos pesquisadores). Já a questão número dois buscava verificar se os ouvintes do grupo 3 indicariam seu conhecimento da língua portuguesa como agente facilitador da compreensão. No caso dos ouvintes do grupo 2, as respostas para essa questão indicariam quais outros fatores poderiam atuar como agentes facilitadores. A última questão buscava exemplos e explicações acerca de segmentos que ambos os grupos julgaram difíceis de compreender.

Os exemplos listados na questão de número 3 foram tratados da seguinte forma: os pesquisadores identificavam a palavra sinalizada pelos ouvintes no áudio e verificavam se o exemplo dado havia, de fato, afetado a inteligibilidade, impedindo a comunicação, ou se havia, simplesmente, sido um exemplo de difícil compreensão.

Na primeira etapa, com os quatro norte-americanos não-familiarizados com a língua portuguesa, houve momentos em que a inteligibilidade foi totalmente bloqueada, seja por substituições consonantais, assimilações vocálicas ou simplificações silábicas. Houve, também, momentos em que a compreensibilidade foi baixa, mas não o suficiente para impedir o entendimento entre os interlocutores. Todos os casos identificados estão registrados nas tabelas 1 e 2, seguidos de um exemplo.

 

 

 

 

Observando os dados é possível identificar claramente as influências do português brasileiro na fala dos aprendizes. Na tabela 2, por exemplo, a expressão "Rock and roll" produzida como fricativa velar não-vozeada /x/ pode, de acordo com Zimmer (2004), ser explicada pela transferência grafo-fônico-fonológica português-inglês, visto que não há na região sul do Brasil a produção da variante retroflexa, seja em onset ou coda silábicas. Para o par de vogais frontais altas /i I/, aprendizes brasileiros tendem a neutralizar o contraste [+tenso] e [-tenso]: quando não conseguem produzir a vogal /I/ utilizam a correspondente do português brasileiro /i/, por ser o fonema com características fonético-articulatórias mais próximas ao fonema desejado. Vale ressaltar, no entanto, que os exemplos acima não bloquearam a comunicação, apenas a dificultaram, configurando baixa compreensibilidade de fala.

Na Tabela 1, por outro lado, são apresentados os desvios de pronúncia que impediram a inteligibilidade de fala: as fricativas dentais /ϴ/ e /D/, por exemplo, não ocorrem no inventário fonológico do português, o que torna a produção de tais fonemas bastante difícil para o aprendiz brasileiro. De acordo com Zimmer e Alves (2006), os brasileiros tendem a substituir essas fricativas por segmentos como /ϴ/, /d/, /s/ ou /f/, exatamente como observado em [>tri.lɘr] para o alvo /ϴrIlɘr/. Cruz (2014) identificou a consoante fricativa dental /ϴ/ sendo pronunciada como a fricativa labiodental desvozeada /f/. A substituição da vogal em [is.>tu.di] para o alvo /stΛdi/ se dá, de acordo com Zimmer, Silveira e Alves (2009), por um processo de supergeralização, visto que a letra "u" pode representar mais de um som na língua inglesa, como /Λ/ em "cut" e /℧/ em "put". Segundo os autores, para que esse tipo de processo seja superado é preciso que o professor alerte seus alunos para as produções inadequadas e pratique as formas alvo de maneira comunicativa, especialmente porque a simplificação de encontros consonantais também parece afetar a inteligibilidade da produção oral na língua-alvo. Nos dados, a sequência /kl/, embora licenciada no padrão silábico da língua materna do falante, foi desmanchada, impedindo a compreensão do ouvinte.

Analisando as respostas dos questionários respondidos pelos ouvintes do grupo 2, quando indagados sobre como suas experiências prévias poderiam ter ajudado na compreensão do inglês falado por brasileiros, pudemos observar respostas como:

(1) I guess because my parents are not native English speakers I have developed an understanding and a certain patience towards who have learned English.[6]

(2) I think I am pretty accustomed to speaking to non-native speakers of English so their small errors may not impact my comprehension as much.[7]

A análise dessas respostas permite a identificação de mais uma variável que atua sobre a inteligibilidade: a exposição a sotaques de falantes não-nativos de inglês em geral. Cruz (2014), em um estudo com uma ouvinte camaronesa, obteve um resultado semelhante: a exposição a diferentes sotaques estrangeiros do inglês fez com que a fala dos aprendizes brasileiros se tornasse mais inteligível para ela.

Na segunda etapa, com os quatro falantes nativos de inglês americano familiarizados com o português brasileiro, não houve momentos em que a inteligibilidade foi impedida, nem mesmo em que a compreensibilidade foi afetada. Nos questionários, nenhum dos ouvintes declarou ter tido dificuldades de compreensão. Além disso, dois deles elogiaram o inglês falado pelos brasileiros. A partir desses resultados, pudemos confirmar de maneira clara que a familiaridade com a língua materna do falante é uma variável que exerce uma influência muito grande no que se refere à inteligibilidade de fala.

O papel da familiaridade com o sotaque estrangeiro do falante pode ser entendido nos termos de Field (2003, p. 36). De acordo com o autor, a falta de uma representação fonológica "ideal" permite que o ouvinte armazene múltiplas representações de fonemas. Assim, mesmo que ao ser exposto a um determinado sotaque pela primeira vez o ouvinte tenha dificuldades em compreendê-lo, passará, com o tempo, a acumular traços do sistema sonoro daquele sotaque, o que facilitará sua compreensão. Para Bent e Bradlow (2003), o efeito da familiaridade com a representação fonológica[8] da língua do falante é fruto do "benefício da interlíngua na inteligibilidade de fala[9]". O benefício da interlíngua apontado por Bent e Bradlow apenas é possível por conta da falta de uma representação fonológica "ideal" indicada por Field. Desta forma, o ouvinte, tendo em mente a representação fonológica do português, a representação fonológica do inglês e estando familiarizado com o sotaque brasileiro, armazena múltiplas representações de fonemas. Os norte-americanos do grupo 3 (familiarizados com o português brasileiro) possuem, por exemplo, pelo menos três representações distintas para o fonema /ϴ/, que poderiam ser: /ϴ f t/.

Esses resultados apontam para a necessidade de se refletir sobre o ensino da pronúncia na sala de aula de língua estrangeira, enfocando os segmentos que mais afetam a inteligibilidade de fala dos aprendizes e atribuindo menos ênfase àqueles que não impedem a comunicação. Para tanto, faz-se necessário que os professores de inglês como língua internacional tenham amplo acesso à pesquisa e possam, dessa forma, avaliar criticamente suas práticas e os materiais didáticos disponíveis no mercado. Essas questões são abordadas na seção que segue.

4. A pesquisa em inteligibilidade de fala e o ensino de pronúncia

Como já indicado, trazer o resultado de estudos em inteligibilidade para a prática docente e ter uma fala inteligível como meta para o ensino de pronúncia são aspectos perfeitamente coerentes com as necessidades e os objetivos dos aprendizes de inglês como língua internacional e com os princípios do método comunicativo de ensino de línguas.

Embora a inteligibilidade como objetivo do ensino de pronúncia seja uma questão já abordada por diversos pesquisadores (Cruz, 2003, 2006a, 2006b, 2007, 2008, 2014; Cruz e Blanche, 2014), na prática, o resultado desses estudos não é observado em sala de aula. Diversos materiais didáticos, por exemplo, apresentam um tema gerador capaz de integrar as quatro habilidades comunicativas (compreensão e produção orais e escritas) de maneira satisfatória, mas não integram ao tema questões relacionadas à prática da pronúncia. Não é difícil imaginar que, além de estarem descontextualizados, os sons abordados não foram escolhidos de acordo com estudos em inteligibilidade de fala, visto que, por serem, em sua maioria, publicações internacionais, desconsideram a nacionalidade e a regionalidade dos aprendizes. Por esse motivo, é preciso pensarmos em possíveis soluções para integrar pesquisa e ensino: se os materiais didáticos disponíveis no mercado não consideram os resultados de estudos em inteligibilidade de fala, materiais nacionais e regionais podem fazê-lo, assim como os professores, de maneira autônoma. Pesquisadores como Zimmer, Silveira e Alves (2009), por exemplo, comprometidos também com o ensino, apresentam uma série de atividades comunicativas com foco nas principais dificuldades de pronúncia apresentadas por aprendizes brasileiros durante o processo de aprendizagem do inglês.

Então, por que ainda há um distanciamento entre ensino e pesquisa? Nossas principais suposições são: (1) ainda não há quantidade suficiente de materiais didáticos comunicativos que se baseiem em resultados de pesquisa e, (2) o tema não é abordado nas salas de aula dos cursos de Licenciatura em Letras e, portanto, não está inserido no processo de formação dos professores.

Para que o falar confortavelmente inteligível sugerido por Abercrombie (1956) torne-se um objetivo levado em consideração pela maioria dos professores brasileiros de inglês e para que a pesquisa em inteligibilidade possa contribuir para o ensino de pronúncia é necessário que haja maior número de estudos na área. Como consequência, maior número de livros de pronúncia, além de atividades e outras sugestões de aplicabilidade em sala de aula, discutidos desde os anos iniciais da formação docente.

5. Conclusão

Partindo das diretrizes de Cruz (2003, 2006a, 2006b, 2007, 2008, 2014), mas buscando complementar seus estudos e acrescentar novas questões, verificou-se através da coleta de dados deste estudo que (1) a familiaridade do ouvinte não só com o sotaque do falante brasileiro ao falar inglês, mas com o português brasileiro, é uma variável que resultou em uma conversa completamente inteligível, sem danos à inteligibilidade ou momentos de baixa compreensibilidade e (2) a familiaridade com sotaques estrangeiros de inglês em geral também é uma variável que facilita a inteligibilidade de fala entre falantes nativos e não-nativos de inglês.

Para além das confirmações sobre a variável da familiaridade, também foi possível identificar sons não-inteligíveis e de difícil compreensão para falantes nativos de inglês não-familiarizados com o português brasileiro ou com o sotaque brasileiro ao falar inglês. Esses resultados são úteis no trabalho de pronúncia em sala de aula, servindo de base para a elaboração de atividades de ensino.

É importante reconhecermos que nosso estudo possui fragilidades: é preciso coletar um maior número de dados, para que tenhamos uma noção mais realista dos sons que impedem a inteligibilidade para diferentes grupos de ouvintes falantes nativos de inglês, assim como é necessário que coletemos dados com a participação de ouvintes que sejam falantes não-nativos da língua, familiarizados e não-familiarizados com o português.

Os resultados desses estudos devem direcionar a elaboração de materiais didáticos para falantes específicos, bem como a prática pedagógica do professor de forma que o ensino de pronúncia seja significativo e reflita as necessidades comunicativas do aprendiz.

 

Referências

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[Recebido em 15 de fevereiro de 2016 e aceite para publicação em 20 de abril de 2016]

 

Notas

1Termo utilizado por Abercrombie (1956), que define "confortavelmente inteligível" como uma pronúncia possível de ser entendida sem muito esforço.

2"the extent to which an utterance is actually understood".

3"the ease or difficulty with which a listener understands L2 accented speech".

4(1) Fale sobre os seus planos para o próximo final de semana (2) Fale sobre seu cantor/banda preferido(a) (3) Fale sobre um filme que você assistiu ou um livro que você leu.

1. 5Marque os itens que você acredita que afetaram sua compreensão durante a conversa:
( ) pausas
( ) hesitações
( ) ritmo
( ) entonação
( ) tonicidade
( ) sons consonantais
( ) sons vocálicos
( ) qualidade de voz
( ) auto-correções

( ) outros _________

2. A sua experiência prévia ajudou você a compreender os falantes em algum momento em particular? Qual?

3. Houve algo (uma palavra, uma ideia, etc.) que você não conseguiu compreender? Você pode explicar o que foi?

6"Acho que porque meus pais não são falantes nativos de inglês eu desenvolvi um entendimento e uma certa paciência em relação a quem prendeu inglês."

7"Acho que estou bem acostumada a falar com falantes não-nativos de inglês, então os seus pequenos erros não afetam tanto a minha compreensão."

8Field (2003, p. 36) define representação fonológica como "a maneira pela qual os sons da língua são armazenados na mente do usuário dessa língua".

9 "The interlanguage speech intelligibility benefit".

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