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Revista Portuguesa de Clínica Geral

Print version ISSN 0870-7103

Rev Port Clin Geral vol.27 no.5 Lisboa Sept. 2011

 

CLUBE DE LEITURA

Medicina centrada no paciente: melhor qualidade com menores custos

Patient-centered medicine: better quality and less cost

Paulo Pires*

*Interno Formação Específica de Medicina Geral e Familiar, USF Lagoa - ULS Matosinhos


Bertakis KD, Azari R. Patient-centered care is associated with decreased health care utilization. J Am Board Fam Med 2011 May-Jun; 24 (3): 229-39.

Introdução

Ao longo dos anos um extenso corpo de literatura tem descrito e defendido uma abordagem centrada no paciente para os cuidados médicos. Apesar de não existir uma definição uniforme de comunicação centrada no paciente, foram desenvolvidas diversas escalas para a medir. Estes instrumentos, em geral, medem as seguintes competências da comunicação: colaborar na compreensão e validar a perspectiva do paciente; compreender o paciente dentro do seu contexto psicossocial; permitir que este conheça a sua doença e o respectivo tratamento; e criar uma parceria com ele partilhando a decisão, poder e responsabilidade.

As organizações de saúde procuram fornecer cuidados médicos de qualidade, com os menores custos possíveis. Neste contexto, a medicina centrada no paciente é cada vez mais considerada como paradigma para cuidados de alta qualidade interpessoal. Existe crescente evidência que este tipo de comunicação está associada a uma redução da utilização de recursos de saúde. Uma possível explicação para este facto poderá ser a redução da ansiedade dos pacientes e o aumento da sua confiança no médico, quando participam activamente nos seus próprios cuidados e sentem que o seu médico compreende os seus sintomas. Por outro lado, o médico pode aumentar o seu conhecimento acerca das preocupações do paciente quando tem este tipo de prática.

Este estudo teve como objectivo determinar se a medicina centrada no paciente fornecida aos utentes a nível dos cuidados de saúde primários (CSP), está associada à utilização de serviços médicos, divididos em 5 categorias: (1) consultas nos CSP; (2) consultas por especialidades hospitalares; (3) recorrências ao serviço de urgência; (4) hospitalizações; e (5) exames complementares de diagnóstico. Atendendo ao conhecido impacto significativo do estado de saúde do paciente, comportamentos de risco, características sociodemográficas e género no recurso a cuidados de saúde, estes factores foram controlados.

Métodos

Englobaram o estudo indivíduos adultos (excluindo grávidas) sem preferência por um médico ou especialidade específicas que tinham pedido uma primeira consulta no centro médico universitário. De um total de 956 indivíduos, 821 (85%) aceitaram participar. Posteriormente estes pacientes foram divididos aleatoriamente para atendimento por médicos de medicina familiar e medicina interna. Esta divisão deve-se ao facto de haver claras diferenças na prática clínica diária entre estas duas especialidades. Foram excluídos 312 (38%) pacientes, restando 509. Os cuidados foram fornecidos por médicos internos do 2.o e 3.o anos das especialidades de Medicina Familiar (26) e Medicina Interna (79). Cada médico observou em média 4.8 pacientes.

Antes da primeira consulta os pacientes foram entrevistados fornecendo os seguintes dados: informações sociodemográficas; auto-percepção do estado de saúde, utilizando o Medical Outcomes Study Short Form-36; rastreio de alcoolismo, utilizando o Michigan Alcohol Screening Test (MAST); e história de tabagismo. O peso e a altura do paciente também foram avaliados para determinar o índice de massa corporal. Os médicos não tiveram conhecimento destes dados. Todas as consultas foram filmadas durante o período de estudo de 1 ano.

A prática de medicina centrada no paciente foi determinada utilizando uma versão modificada do Davis Observation Code (DOC). Trata-se de um método fiável e válido para determinar o tipo de prática do médico. Os observadores registavam a ocorrência de cada um dos 20 comportamentos clinicamente significativos durante a visualização de intervalos de 15 segundos da consulta médica. Para cada código, era registado o número de intervalos durante o qual o comportamento associado era observado. Assim, este poderá ser expresso como uma percentagem do total de todos os comportamentos do DOC observados e interpretado como a ênfase relativa destes durante o curso da consulta. Entre os 20 comportamentos do DOC, foram identificados 6 que medem a medicina centrada no paciente. Com base na literatura da medicina centrada no paciente os autores desenvolveram uma versão modificada do DOC que se foca em aspectos chave da relação médico-paciente: compreender a doença do paciente no seu contexto biopsicossocial; apreciar a experiencia do paciente na doença; promover uma relação igualitária; criar uma aliança terapêutica; e reconhecer o impacto das qualidades pessoais dos participantes na consulta. Estas dimensões chave da medicina centrada no paciente foram identificadas em diferentes itens do DOC e incluídas no instrumento de medição. Para cada um destes itens, o número de intervalos durante o qual o comportamento se observou foi expresso através da percentagem do número total de comportamentos DOC. Para avaliar a presença de um viés de observador, aproximadamente 20% dos vídeos foram codificados por um segundo observador, com um coeficiente de concordância de 91.6%.

Durante o período de um ano foram calculados para cada paciente o número de consultas nos CSP, consultas hospitalares, recorrências aos serviços de urgência, hospitalizações e uso de meios auxiliares de diagnóstico através da revisão exaustiva dos processos clínicos.

A análise estatística utilizou modelos de regressão linear, sendo que os dados sóciodemográficos foram utilizados para controlar as variáveis.

Resultados

Durante o período de estudo a percentagem média de cuidados centrados no paciente nos CSP foi de 14.9%. Assim, a amostra do estudo foi dividida em 2 grupos: (1) aqueles que receberam cuidados centrados no paciente abaixo da média anual (n=254); e (2) aqueles que receberam cuidados centrados no paciente acima da média anual (n=255).

O total de gastos anuais de saúde por paciente para aqueles que receberam menos cuidados centrados no paciente foi de $1435.00 em comparação com $948.00 para aqueles que receberam mais cuidados centrados no paciente (p=0.058). A associação entre os cuidados centrados no paciente e a utilização de serviços médicos em cada uma das 5 categorias avaliadas durante o período de estudo foi investigada, controlando para outras variáveis que previamente se provou terem impacto na utilização de serviços de saúde. Os pacientes que receberam uma percentagem superior de cuidados centrados no paciente estão associados de forma significativa a menos consultas hospitalares (p=0.0209), menos hospitalizações (p=0.0033) e menos exames complementares de diagnóstico (p=0.0027). Os resultados mostraram que com o aumento dos  cuidados centrados no paciente diminui a probabilidade de utilizar especialidades hospitalares (p=0.0417). Quando controlado para todas as outras variáveis, se os cuidados centrados no paciente aumentarem 1%, a probabilidade de recorrer a uma especialidade hospitalar reduz-se cerca de 3%. A prática de cuidados centrados no paciente mostrou-se associada a uma redução do total de gastos em saúde de forma estatisticamente significativa (p=0.0002). Tal como esperado, o sexo feminino, idade avançada e pior estado de saúde estiveram associados ao aumento do total de gastos em saúde.

Discussão

Este estudo demonstrou que a prática de uma medicina centrada no paciente está associada a redução da utilização de recursos de saúde (consultas nos CSP; consultas por especialidades hospitalares; recorrências ao serviço de urgência; hospitalizações; e exames complementares de diagnóstico). Além disso, provou uma associação estatisticamente significativa entre a medicina centrada no paciente e os encargos totais com a utilização dos serviços de saúde durante o período de 1 ano.

Num estudo prévio, Stewart et al utilizou a medida da comunicação centrada no paciente (MCCP), bem como a percepção do paciente sobre esta prática, tendo-se verificado que, embora a pontuação da MCCP não se tenha mostrado associada de forma estatisticamente significativa com a utilização de cuidados de saúde, os pacientes que perceberam que na sua consulta foi praticada uma medicina centrada no paciente, necessitaram de menos exames complementares de diagnóstico e foram menos referenciados a consultas hospitalares durante um período de 2 meses. Epstein et al demonstrou resultados semelhantes. Este estudo confirmou estes dados, com a redução dos encargos de saúde nos pacientes que receberam mais cuidados centrados no paciente.

A forma através da qual a medicina centrada no paciente poderá levar à diminuição da utilização de recursos de saúde ainda não está completamente esclarecida. Tem sido demonstrado que uma abordagem centrada no paciente, que inclui o aumento da sua participação na consulta, reduz a sua ansiedade, bem como a sua necessidade de novas investigações e referenciações. Além disso, quando os pacientes sentem que o seu médico tem uma compreensão clara da sua doença e de como ela afecta a sua vida, aumentam a sua confiança no médico, o que permite uma redução dos exames complementares de diagnóstico pedidos e referenciações. Por outro lado, através da comunicação centrada no paciente, da troca de informações e da gestão da incerteza, o médico poderá aumentar o seu conhecimento sobre o paciente, o que levará a uma menor incerteza no diagnóstico e menor necessidade de requisitar exames complementares de diagnóstico adicionais. No caso oposto, se um paciente sentir que não está a ser compreendido, pode expressar o seu descontentamento (através da comunicação verbal e não verbal), aumentando potencialmente a ansiedade e incerteza do médico e levando à realização de novos exames e referenciações.

Existem várias limitações que poderão afectar a generalização dos resultados deste estudo. Por um lado temos o facto de o estudo original ter sido realizado na década de 1990, e os padrões da prática clínica poderem ter mudado desde então. Por outro, temos o facto de os médicos participantes no estudo serem internos do 2º e 3º anos e, embora os padrões de prática profissional se desenvolverem ao longo do internato, a prática clínica habitual dos médicos especialistas poderá ser diferente. Além disso, os pacientes do estudo podem representar uma população diferente daquela de outros locais.

Este estudo, no entanto, contribui fortemente para a literatura sobre comunicação centrada no paciente e utilização dos cuidados de saúde, tendo utilizado uma metodologia com vários pontos fortes tais como: medidas baseadas num contínuo de cuidados ao longo de um ano; resultados baseados na observação directa de consultas; e controlo de variáveis importantes como a escolha do médico, tipo de consulta, estado de saúde, comportamentos de risco e características sociodemográficas.

Conclusão

A medicina centrada no paciente pode resultar num melhor conhecimento deste, uma maior confiança e uma menor necessidade de referenciações, exames complementares de diagnóstico e utilização de cuidados hospitalares.

Contudo, novos estudos serão necessários para comparar este instrumento com outras medidas de cuidados centrados no paciente (tais como a MCCP) e verificar se essas podem replicar estes resultados noutros ambientes.

Apesar de tudo, este estudo fornece uma base consistente para a prática de uma medicina centrada no paciente, com implicações claras num sistema de saúde que visa fornecer cuidados de saúde personalizados e de forma custo-efectiva.

Comentário

Stewart e colaboradores, na década de 1990, definiram medicina centrada no paciente tentando incorporar as necessidades e desejos do paciente e não se restringindo à doença. Segundo estes autores, a medicina centrada no paciente tem os seus princípios na antiga escola de medicina grega de Cos, que considerava as particularidades de cada paciente na abordagem da doença, ao contrário da escola de Cnidians, cuja preocupação era classificar as doenças de acordo com sua taxonomia e independentemente do doente.1,2,3 Ainda de acordo com estes autores, desde então, a dicotomia entre tratar o doente ou a doença vem acompanhando a medicina ao longo dos séculos, com alternância da preponderância de uma abordagem ou de outra.

Em meados do século 20, os trabalhos de Balint,4 com a valorização da escuta para perceber o paciente e responder às suas necessidades e com a valorização do papel do médico como agente terapêutico, questionaram o diagnóstico apenas físico do modelo biomédico. Mais tarde, Engel,5 a partir do pressuposto de que os modelos dominantes de organização do conhecimento e da experiência são importantes na maneira do médico abordar o paciente, propôs o modelo biopsicossocial. Neste modelo, o nível do sistema de onde se deve partir é sempre a pessoa, ao contrário do modelo biomédico, em que o ponto de partida é o corpo e a doença, com negligência da pessoa.

É a partir desses e de outros trabalhos que Stewart et al2 propõem, em 1995, a medicina centrada no paciente como uma transformação do método clínico. Definem os principais componentes da medicina centrada no paciente como: (1) exploração e interpretação, pelo médico, da doença e da experiência de adoecer do paciente, tendo esta quatro dimensões (sentimento de estar doente; ideia a respeito do que está errado; impacto do problema na vida diária; e as expectativas sobre o que deveria ser feito); (2) entendimento global da pessoa; (3) procura de objectivos comuns, entre o médico e o paciente, a respeito do problema ou dos problemas e sua orientação; (4) incorporação de medidas de prevenção e promoção de saúde; (5) melhoria ou intensificação da relação médico-paciente; (6) e a sua viabilidade em termos de custos e tempo.

Resumidamente, pode-se dizer que são dois os componentes principais da medicina centrada no paciente: um deles refere-se ao cuidado da pessoa, com a identificação das suas ideias e emoções a respeito da doença; e o segundo refere-se à identificação de objectivos comuns entre médicos e pacientes sobre a doença e a sua abordagem, com a partilha de decisões e responsabilidades. Levar em consideração o desejo do paciente de obter informações e de partilhar responsabilidades e responder apropriadamente a esse desejo também fazem parte da prática médica centrada no paciente.3

Atendendo à crescente preocupação na criação de um sistema de saúde que vise fornecer cuidados de saúde personalizados e de forma custo-efectiva, este estudo fornece uma base consistente para a prática de uma medicina centrada no paciente. Esta estará associada a uma redução dos custos em saúde e ao aumento da qualidade dos cuidados. Contudo, este tipo de prática exige o tempo necessário à criação de uma relação empática e estabelecimento de confiança entre o médico e o paciente, o que nem sempre é viável na prática clínica diária. Caberá pois aos profissionais de saúde e nomeadamente aos médicos, como parte integrante do sistema de saúde, alertar as autoridades para estes dados, no sentido de permitir um aumento do tempo de cada consulta, nomeadamente através da redução do número de consultas, bem como, no caso específico da especialidade de medicina geral e familiar, do tamanho das listas de utentes por médico. Estas medidas poderão ter um forte impacto na prática de uma medicina centrada no paciente, com a redução dos custos em saúde, tão procurada nos últimos tempos. Pelo facto de estarmos numa época em que se procura medir e quantificar tudo, mesmo depois de sabermos que uma medicina centrada no paciente reduzirá os custos em saúde, a sua prática corrente não será facilmente mensurável de uma forma massiva tal como são outros indicadores que tão bem se conhece, o que poderá ser um entrave à sua promoção.

Contudo, serão necessários novos estudos que confirmem os resultados obtidos neste trabalho, bem como a sua aplicabilidade a diferentes populações. Além disso, seria importante integrar e generalizar o ensino da medicina centrada no paciente na formação médica pré e pós-graduada, no sentido de uniformizar os comportamentos e finalmente melhorar os cuidados prestados aos pacientes. Outro dos aspectos que necessita ser bem esclarecido será se o facto da prática da medicina centrada no paciente com redução dos gastos em saúde está realmente associada a uma utilização mais racional dos serviços de saúde, melhoria na qualidade de vida dos pacientes, e eventualmente redução da morbilidade e mortalidade.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. McWhinney IR. Clinical Method. In: McWhinney IR. A Textbook of Family Medicine. New York: Oxford; 1997. p. 129-78.         [ Links ]

2. Stewart M, Brown JB, Donner A, McWhinney IR, Oates J, Weston WW, et al. The impact of patient-centered care on outcomes. J Fam Pract 2000 Sep; 49 (9): 796-804.         [ Links ]

3. Stewart M. Towards a global definition of patient centred care: the patient should be a judge of patient centred care. BMJ 2001 Feb 24; 322 (7284): 444-5.         [ Links ]

4. Balint M. O médico, seu paciente e a doença. Rio de Janeiro: Atheneu; 1984.         [ Links ]

5. Engel GL. The clinical application of the biopsychosocial model. Am J Psychiatry 1980 May; 137 (5): 535-44.         [ Links ]