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Análise Psicológica

versão impressa ISSN 0870-8231

Aná. Psicológica v.26 n.4 Lisboa out. 2008

 

Individualismo-colectivismo: Dos aspectos conceptuais às questões de avaliação

 

Laura Ciochinã (*)

Luísa Faria (**)

 

RESUMO

O presente estudo, com 200 sujeitos, desenvolve o estado da arte, teórico e metodológico, da debatida dimensão cultural e intercultural de individualismo-colectivismo (IND/COL). Este objectivo foi operacionalizado à luz do processo de validação de um questionário de avaliação do IND/COL para o contexto português, nomeadamente o Questionário de Individualismo-Colectivismo de Shulruf, Hattie, e Dixon (2003, Anonymous Questionnaire of Self-Attitudes – AQSA), construído no contexto neozelandês e constituído por 26 itens, 15 ilustrativos da dimensão de individualismo (IND) e 11 da dimensão de colectivismo (COL). Os resultados das análises factoriais confirmatórias (AFC) realizadas acerca do AQSA apontaram para uma nova estrutura factorial deste instrumento, a ser verificada em estudos futuros de AFC de segunda ordem, bem como para a necessidade de se clarificar o universo teórico e a operacionalização dos constructos de IND/COL.

Palavras-chave: Cultura, Individualismo-colectivismo.

 

ABSTRACT

The present study, with 200 subjects, highlights the theoretical and methodological state of art of the debated cultural and intercultural dimension of individualism-collectivism (IND/COL). This aim was approached considering the validation process of an evaluation questionnaire of IND/COL in the Portuguese cultural context, namely the Questionnaire of Individualism-Collectivism (IND/COL) of Shulruf, Hattie, and Dixon (2003, Anonymous Questionnaire of Self-Attitudes – AQSA), constructed in New Zealand and composed by 26 items (15 evaluating the individualism dimension and 11 the collectivism one). The results of the confirmatory factor analysis (CFA) used with AQSA suggested a new factorial structure of this instrument, to be tested in future studies of second order CFA, and also the necessity to clarify the theoretical universe and the operacionalization of the IND/COL constructs.

Key words: Culture, Individualism-collectivism.

 

INDIVIDUALISMO-COLECTIVISMO –ASPECTOS CONCEPTUAIS

A dimensão cultural de individualismo-colectivismo (IND/COL) representa um dos mais teorizados e avaliados pilares que sustentam os estudos de comparação cultural no âmbito da Psicologia, nomeadamente porque esta dimensão faz claramente referência à posição do indivíduo face à sociedade, em geral, e ao grupo de pertença, em particular. Deste modo, não é de estranhar que este “síndrome cultural de individualismo-colectivismo” (Triandis, 2001, p. 907) pareça representar a diferença mais significativa que existe entre culturas, logo, parece valer a pena apresentar mais detalhadamente estes dois constructos.

Triandis (1995) salienta que os termos individualismo e colectivismo começaram por ser utilizados por filósofos políticos ingleses dos séculos XVIII e XIX. Na visão ideológica daquele tempo, o individualismo era sinónimo de liberalismo, propagando ideais como a liberdade máxima do indivíduo, a possibilidade de pertencer a vários grupos e de os deixar quando quisesse e a participação igual dos indivíduos nas actividades de grupo; no pólo oposto, encontrava-se o autoritarismo, que anulava a liberdade do indivíduo, tendo este que se subordinar a uma autoridade superior, neste caso, o rei. Mais ainda, as teses individualistas veiculadas pela Revolução Americana, ou seja, o facto dos homens serem iguais e de terem todos o direito de procurar alcançar a felicidade, a par dos ideais em que se baseou a Revolução Francesa, nomeadamente a liberdade e a igualdade, conduziram ao surgimento de reacções e de ideais colectivistas, que se opunham à influência nociva dos direitos individuais no bem-estar da comunidade e da sua estrutura social.

Ora, na área da Sociologia e da Psicologia Social, a terminologia utilizada em torno da distinção entre os enfoques individualista e colectivista é desconcertante, nomeadamente pela sua variedade. A título de exemplo, refira-se que Durkheim (1887/1933, in Oyserman, Coon, & Kemmelmeier, 2002), sociólogo, distingue a solidariedade orgânica – ilustrativa do pólo individualista e dependente de relações temporárias, constituídas no seio de sociedades complexas entre indivíduos diferentes uns dos outros – da solidariedade mecânica – ilustrativa do pólo colectivista e dependente de relações permanentes, constituídas nas sociedades tradicionais entre indivíduos semelhantes.

Por sua vez, Margaret Mead (1967, in Triandis, Bontempo, Villareal, Asai, & Lucca, 1988), antropóloga, considera que as culturas se diferenciam em função do grau de cooperação ou de competição entre os seus indivíduos, sendo a dimensão cultural resultante a de cooperação-individualismo, cujo corolário a nível individual é o alocentrismo-idiocentrismo (Triandis, McCusker, & Hui, 1990).

Prosseguindo com a diversidade de terminologia utilizada em torno dos dois pólos do constructo individualismo-colectivismo, é de salientar que outros autores adoptaram constructos diferentes, veiculando, contudo, o mesmo universo de significação: o self independente vs. o self interdependente (Markus & Kitayama, 1991), o self privado vs. o self colectivo (Trafimow, Triandis, & Goto, 1991), o valor de mercado vs. a partilha comunitária (Fiske, 2002) ou a comunidade (Gemeinschaft) vs. a sociedade (Gesellschaft) (Tönnies, 1887/1957, in Oyserman et al., 2002).

Assim, este quadro de pesquisa tem gerado vários modelos conceptuais e sistemas teóricos acerca do constructo de IND/COL, que apontam para o seu estatuto de dimensão essencial de variação cultural: de facto, como salientam Freeman e Bordia (2001), o constructo de individualismo-colectivismo tem desempenhado um papel central nos estudos de Psicologia Intercultural, sendo estes estimulados, particularmente, pelo trabalho pioneiro de Hofstede (1980), que vamos analisar de seguida.

 

IND/COL NA PERSPECTIVA DE HOFSTEDE

Hofstede (1980), na sua qualidade de sociólogo organizacional e investigador da IBM, analisou acerca de 117.000 protocolos recolhidos a partir de amostras estratificadas e equivalentes de trabalhadores da IBM, em mais de 40 países (dos iniciais 66 previstos para a realização do estudo), protocolos estes referentes a valores ligados ao trabalho. O questionário utilizado tinha 32 itens, considerados por Hofstede como representativos de tais valores. A análise factorial, baseada nas correlações entre as respostas às questões do questionário nos países envolvidos na investigação, revelou a existência de quatro factores ou dimensões culturais: individualismo-colectivismo, distância hierárquica, masculinidade-feminilidade e controlo da incerteza. A partir dos resultados obtidos para estas dimensões nos diferentes países, Hofstede lançou as bases de uma tipologia para 40 nações do mundo, partindo da sua posição nestas quatro dimensões culturais.

Na visão de Bond (2002), esta tipologia representou e ainda representa um importante ponto de partida nas investigações realizadas pelos psicólogos interculturais, especialmente para os que evocam a dimensão de individualismo-colectivismo, considerando as amostras dos estudos referidos como sendo representativas das nações investigadas. De referir, ainda, o facto do mesmo autor salientar que a dimensão mais tomada em consideração em tais estudos ter sido a de IND/COL, uma vez que estes dois constructos se relacionam com preocupações nucleares nas ciências sociais.

Na verdade, Hofstede concede um espaço de investigação considerável a esta dimensão cultural, ao evidenciar que um atributo fundamental das sociedades humanas, que explica, em grande medida, as diferenças existentes entre as mesmas, reside no enfoque colocado quer no papel do indivíduo, quer no papel do grupo, pois esta dicotomia funcional, de natureza sócio-antropológica, está indubitavelmente na base do desenvolvimento diferencial das sociedades humanas.

Assim, integrando vários dos contributos por nós apresentados, e numa perspectiva mais geral, podemos afirmar que quando o indivíduo representa a unidade de análise e percepção social, bem como uma instância de acção – material-concreta e afectiva – independente dos outros, falamos de sociedades individualistas, enquanto que por sociedades colectivistas se entendem as sociedades em que o grupo de pertença opera como uma instância de avaliação e de controlo sobre as acções e as interacções dos seus membros, organizando-se a dinâmica das relações interpessoais em torno dos grupos a que os indivíduos pertencem.

Mais concretamente, Hofstede (1980, p. 69) define a dimensão cultural de IND/COL da seguinte forma: “O individualismo caracteriza as sociedades nas quais os laços entre os indivíduos são pouco firmes; cada um deve ocupar-se de si mesmo e da sua família mais próxima. O colectivismo, pelo contrário, caracteriza as sociedades nas quais as pessoas são integradas, desde o nascimento, em grupos fortes e coesos, que as protegem para toda a vida em troca de uma lealdade inquestionável”.

Ou seja, verifica-se que Hofstede utilizou as designações de IND/COL particularmente para descrever as relações de dependência vs. independência do indivíduo face ao grupo de pertença. Contudo, tal como salientam Smith, Dugan, Peterson, e Leung (1998), a dimensão cultural de individualismo-colectivismo está relacionada com toda uma variedade de comportamentos sociais e não apenas com a especificidade das relações interpessoais desenvolvidas pelos indivíduos na sociedade. De facto, Hofstede também evidenciou, a partir da administração do questionário anteriormente referido, que a dimensão de individualismo se apresentou mais fortemente associada à importância relativa atribuída pelos sujeitos a valores como o tempo pessoal, a liberdade e o desafio, enquanto que valores como a formação, as condições de trabalho e a utilização de competências estavam mais associados ao colectivismo.

Ora, Bond (2002) considera que os três primeiros valores estão obviamente relacionados com o individualismo, encarado nas ciências sociais como um constructo multifacetado, enquanto que os últimos três valores descrevem de um modo mais equívoco o colectivismo. Assim, surgiu a necessidade de esclarecer e alargar o âmbito conceptual dos dois constructos (IND/COL), tendo vários investigadores continuado os trabalhos de Hofstede, contribuindo, deste modo, para o estabelecimento de novas definições operacionais que possibilitam a sua mais adequada avaliação no domínio da Psicologia Cultural e Intercultural (Ciochină& Faria, 2007).

 

IND/COL – ATRIBUTOS CARACTERÍSTICOS

Individualismo

Na senda da investigação de Hofstede, o atributo central do individualismo é constituído pelo facto dos indivíduos serem independentes uns dos outros. Na descrição conceptual desta dimensão cultural, Hofstede enfatiza a prevalência dos direitos sobre as obrigações, a preocupação com a própria pessoa e a família imediata, a autonomia pessoal e a auto-realização. Por conseguinte, a construção da identidade pessoal tem como ponto de partida os méritos, os atributos e as realizações pessoais.

Triandis e colaboradores (1988) completam este quadro descritivo, enfatizando o tipo de relação do indivíduo com o in-grupo, salientando que nas culturas individualistas existem vários in-grupos – como, por exemplo, a família, o grupo de trabalho e os clubes, definidos pelos autores como conjuntos de pessoas com quem se partilha um determinado atributo –, que fornecem uma identidade social positiva, sendo o comportamento do indivíduo moldado pelos objectivos de cada um destes grupos. Contudo, não se pode deixar de salientar o facto das relações do indivíduo com um determinado in-grupo não serem estáveis (ao contrário do que acontece nas culturas colectivistas), nomeadamente porque o indivíduo pode deixar um determinado in-grupo, caso este já não sirva os seus interesses pessoais.

No mesmo sentido, Triandis (2001) salienta que nas sociedades individualistas os objectivos pessoais são privilegiados em detrimento dos do grupo de pertença, tendo os comportamentos dos indivíduos como factores causais as atitudes pessoais e não as normas instauradas no in-grupo. A este respeito, Smith e colaboradores (1998), quando descrevem a dimensão de individualismo, falam na tendência dos indivíduos para se preocuparem com as consequências dos seus comportamentos sobre as suas próprias necessidades e os seus interesses e objectivos pessoais.

De referir, também, que em situações conflituais os individualistas procuram fazer justiça às partes envolvidas no respectivo conflito, manifestando uma preferência por modos de comunicação aberta, precisa e assertiva (Gudykunst, 1997). Mais ainda, Schwartz (1992) considera que as sociedades individualistas são sociedades contratuais, consistindo em grupos primários, de dimensões reduzidas, grupos estes que comportam um tipo de relações sociais em que, através de negociações, as pessoas abordam as suas obrigações de tal modo que possam, com vantagem, modificar ou obter um determinado estatuto social.

Colectivismo

O núcleo central do colectivismo é representado pela relação de dependência do indivíduo face ao grupo de pertença, sendo de salientar (Triandis, 1994; Triandis et al., 1988) que se trata de uma relação estável, na qual os interesses e os objectivos dos indivíduos se subordinam aos do grupo. De referir, ainda, que o indivíduo não pode abandonar ou muito dificilmente abandona o in-grupo, mesmo que os custos que decorrem desta pertença sejam maiores do que os benefícios.

Por sua vez, Smith e colaboradores (1998) consideram que o colectivismo se refere à tendência dos indivíduos de se preocuparem mais com as consequências dos seus comportamentos sobre os membros do grupo de pertença e de estarem mais disponíveis para sacrificar os seus interesses pessoais em benefício dos interesses colectivos.

Quanto aos modos de resolução de conflitos no contexto colectivista, Gudykunst (1997) fala na preocupação dos indivíduos com a manutenção da harmonia dentro do grupo de pertença, comunicando de uma maneira equívoca e defensiva, pois, segundo Schwartz (1990, in Oyserman et al., 2002), as sociedades colectivistas são caracterizadas por obrigações mútuas e difusas, tendo os indivíduos estatutos pré-estabelecidos que não podem modificar: assim, pode-se falar da existência de um género de vida comunitária, com valores comuns e modelos de acção e interacção imutáveis. Ora, tal como evidenciam Ciochinăe Faria (2006a, p. 177), “esta coesão realiza-se através da cooperação entre os indivíduos, das relações de interdependência e de encorajamento colectivo”.

Em suma, e à luz deste modo de relacionamento interpessoal, o sucesso não é considerado como dependente de atributos individuais – como acontece nas sociedades individualistas –, mas sim como sendo garantido pela pertença a determinados grupos ou instituições sociais (Triandis, McCusker, & Hui, 1990).

 

AVALIAÇÃO DA DIMENSÃO DE IND/COL

Na perspectiva de Barrett, Wosinka, Butner, Petrova, Gornik-Durose, e Cialdini (2004), apesar de existirem dificuldades conceptuais e metodológicas relacionadas com a natureza e o conteúdo multifacetado da dimensão cultural de individualismo-colectivismo, bem como de alguns constructos relacionados com esta, nomeadamente a prioridade do individual vs. a do colectivo (Chen, Brockner, & Katz, 1998) ou o self independente vs. o self interdependente (Singelis, 1994), este eixo de análise cultural (IND/COL) tem sido e continua a ser frequentemente utilizado para compreender toda uma variedade de diferenças interculturais acerca de modelos atitudinais (Bellah, Madsen, Sullivan, Swidler, & Tipton, 1987), acerca da auto-estima e de outros processos de avaliação pessoal (Heine & Lehman, 1995; Heine, Kitayama, & Lehman, 2001; Kitayama, Markus, Matsumoto, & Norasakkunit, 1997) e acerca do estilo atribucional (Choi & Nisbett, 1998) ou do estilo comunicacional (Kapoor, Hughes, Baldwin, & Blue, 2003).

É de salientar que muitos destes estudos são correlacionais, isto é, não avaliam, mas apenas invocam o IND/COL. Contudo, tal como evidenciam Ciochinăe Faria (2006b), vários investigadores, na área da Psicologia Cultural e Intercultural, conceberam diferentes técnicas para avaliar esta dimensão cultural e, consequentemente, para indagar o seu impacto sobre vários processos psicossociais.

Neste quadro, no âmbito de uma meta-análise recente, realizada por Oyserman e colaboradores (2002), acerca da literatura produzida nos últimos 20 anos em mais de 80 estudos sobre IND/COL, estes autores apontaram para a existência de três instrumentos de medida mais utilizados – a Escala Independente-Interdependente (Singelis, 1994), a Escala de Individualismo-Colectivismo Horizontal-Vertical (Singelis, Triandis, Bhawuk, & Gelfand, 1995, in Shulruf, Hattie, & Dixon, 2003) e a Escala de Colectivismo-Individualismo de Hui (1988, in Shulruf et al., 2003).

Ao analisarem estas escalas, Oyserman e colaboradores (2002) identificaram sete domínios principais ligados ao individualismo (independência, prioridade dos objectivos pessoais, competição, unicidade, privacidade, conhecimento de si mesmo e comunicação directa) e oito ligados ao colectivismo (relações com os outros, sentido de pertença, obrigações face ao grupo de pertença, harmonia, procura dos conselhos dos outros, dependência do contexto, hierarquia e trabalho em grupo).

Embora as escalas construídas até ao presente se caracterizem por um consenso científico significativo, no que se refere às operacionalizações produzidas pelos investigadores acerca dos dois constructos (IND/COL), o problema que se coloca diz respeito à validade das escalas destinadas à avaliação destes conceitos e aos seus limites de investigação.

Kitayama (2002), por exemplo, considera que “já não é possível assumir que os valores culturais possam ser avaliados com questionários atitudinais” (p. 89), uma vez que os auto-relatos reflexivos geralmente não conseguem captar as respostas mentais cognitivas e afectivo-motivacionais que surgem espontaneamente em vários contextos de acção e interacção. A este respeito, Fiske (2002) salienta que um dos principais limites das escalas e dos questionários utilizados para avaliar a dimensão cultural de IND/COL está relacionado com um problema de cariz epistemológico, pois estes instrumentos implicam conteúdos verbais, orais ou escritos, de tal modo que as escalas de avaliação e, até, os questionários de resposta livre e as entrevistas, através dos dados que recolhem, sugerem que a cultura representa um conjunto de conhecimentos “declarativos”, “semânticos” ou “episódicos” (Fiske, 2002, p. 81).

Apesar de tais críticas, que remetem para o facto dos instrumentos utilizados para avaliar o individualismo-colectivismo revelarem mais características individuais do que culturais, não podendo, deste modo, os valores obtidos para uma característica ser atribuídos à especificidade de uma cultura, a não ser que aquela característica seja considerada culturalmente construída e transmitida, tais instrumentos podem ser utilizados com resultados satisfatórios se forem cuidadosamente construídos e administrados em conjunto com outros de cariz complementar.

Esta questão de métodos alternativos já foi tomada em consideração pelos investigadores no domínio, tendo-se chegado à realização de, por exemplo, análises de conteúdo de autobiografias (Morsbach, 1980, in Triandis, 1995) ou cenários (Triandis, 1985, in Neto, 1995) que solicitam aos sujeitos que terminem ou interpretem certas situações ilustrativas de comportamentos e atitudes individualistas ou colectivistas: de facto, estimulando a projecção psicológica dos sujeitos, tais cenários podem contribuir para esclarecer aspectos culturais importantes, presentes a nível subconsciente nos indivíduos.

Por fim, quanto à necessidade de investir na construção cuidadosa de questionários que avaliem a dimensão cultural de individualismo-colectivismo, uma das mais pertinentes e recentes tentativas nesse sentido é representada pelo Anonymous Questionnaire of Self-Attitudes – AQSA –, construído no contexto neozelandês por Shulruf, Hattie, e Dixon (2003). O facto deste questionário representar um dos mais recentes instrumentos construídos no domínio da avaliação dos constructos de IND/COL, trazendo aspectos inovadores a nível metodológico e conceptual – aspectos estes que detalharemos mais à frente –, levou-nos a proceder à sua adaptação preliminar para o contexto português, que apresentaremos a seguir, dado que Portugal já foi incluído em estudos interculturais que avaliaram a dimensão de individualismo-colectivismo (Neto, 1995) e esta dimensão foi invocada na explicação de resultados obtidos a partir de estudos interculturais das concepções pessoais de inteligência (Ciochină& Faria, 2006a; Faria, Pepi, & Alesi, 2004; Pepi, Faria, & Alesi, 2006).

 

MÉTODO

Participantes

A amostra compreende 200 alunos, sendo constituída em função do ano de escolaridade (10º e 12º), do sexo (feminino vs. masculino), do agrupamento de estudos (científico-natural, humanidades e económico-social) e do nível facto dos indivíduos privilegiarem os interesses sócio-económico – NSE – (alto, médio e baixo). A média de idade dos sujeitos é de 17,6 (DP=1,86).

 

QUADRO 1

Caracterização da amostra em função do ano de escolaridade, do sexo, do agrupamento de estudos e do nível sócio-económico

 
Ano escolar
Sexo
Agrupamento de estudos
NSE
 
10º
12º
Total
Fem.
Masc.
Total
C.N
H.
E.S
Total
Alto
Médio
Baixo
Total
N
100
100
200
69
131
200
70
77
53
200
49
77
73
199
%
50.0
50.0
100
34,5
65,5
100
35,0
38,5
26,5
100
24,6
38,7
36,7
100

Legenda: C.N. – científico-natural; H – humanidades; E.S. – económico-social; NSE – Nível sócio-económico.

Nota: Houve uma omissão nas respostas à variável NSE.

 

Instrumento

Na construção do AQSA, Shulruf, Hattie, e Dixon (2003, 2007) partiram da necessidade de ultrapassar uma série de limitações dos instrumentos já construídos para a avaliação do constructo de individualismo-colectivismo. Os autores salientam o facto de tais instrumentos solicitarem aos sujeitos que produzam auto-relatos acerca de atitudes, valores, crenças e modelos comportamentais que fazem parte da sua vida diária. Ora, Schwarz (1999) considera que os indivíduos não podem responder de uma maneira geral (tal como é exigido pelo grau de generalidade presente no modo como as perguntas são formuladas), uma vez que tais respostas podem ser sensíveis a diferenças específicas entre vários contextos. Mais concretamente, tal como evidenciam os referidos autores, o IND e o COL podem ter expressões diversificadas em contextos e sociedades distintas.

Shulruf e colaboradores (2003) consideram que para captar comportamentos e atitudes ligados ao IND/COL, que variam em diferentes contextos, seria mais adequado utilizar escalas de frequência e não de concordância, isto é, deve-se solicitar aos sujeitos que respondam acerca da frequência e não da intensidade de tais valores, crenças e atitudes.

Por conseguinte, o AQSA de Shulruf e colaboradores utiliza uma escala de Likert de frequência. Além deste aspecto de novidade, os autores procuraram evitar neste questionário a dimensão de relação com a família (familialism, em inglês), que se refere, particularmente, ao facto dos indivíduos privilegiarem os interesses da sua própria família e valorizarem o espírito de entreajuda e o apoio recíproco dentro do núcleo familiar.

De facto, existem autores, entre os quais Hofstede (1980), que salientam que os colectivistas atribuem um grande valor ao sentido de pertença à sua família. No entanto, Fischer (2000, in Shulruf et al., 2003) verificou que os norte-americanos, frequentemente considerados como modelo de uma sociedade individualista, privilegiam os interesses familiares em detrimento dos pessoais. Tais resultados, que parecem ser contraditórios, conduziram autores como Oyserman e colaboradores (2002) a considerarem a relação com a família como um domínio distinto, não relacionado com a dimensão bipolar de IND/COL.

Assim, na construção do AQSA, Shulruf e colaboradores (2003, 2007) procuraram evitar tal tema, chegando à conclusão de que é possível que as relações com a família alargada sejam ilustrativas do colectivismo, enquanto que as relações com os membros da família próxima sejam similares em ambos os tipos de culturas.

A construção do AQSA tomou como ponto de partida a meta-análise de Oyserman e colaboradores (2002), referida anteriormente, acerca das principais escalas utilizadas para avaliar os constructos de IND/COL. Na verdade, os objectivos de Shulruf e colaboradores (2003) foram os de seleccionar os itens mais ilustrativos das dimensões estabelecidas por Oyserman e colaboradores (2002), de tal modo que o instrumento espelha sete dessas dimensões (independência, prioridade dos objectivos pessoais, competição, unicidade, privacidade, conhecimento de si mesmo e comunicação directa) para o constructo de IND e oito dessas dimensões (relações com os outros, sentido de pertença, obrigações face ao grupo de pertença, harmonia, procura dos conselhos dos outros, dependência do contexto, hierarquia e trabalho em grupo) para o constructo de COL.

Mais concretamente, Shulruf e colaboradores (2003) estabeleceram uma lista inicial de 353 itens, incluindo itens das escalas de IND/COL já existentes e itens construídos pelos próprios autores. Após a exclusão dos itens que se revelaram similares, ficaram 113 na lista, que foram posteriormente submetidos a uma análise de conteúdo realizada por três peritos, familiarizados com a literatura acerca da dimensão cultural de IND/COL. A partir das definições fornecidas por Oyserman e colaboradores (2002), os três peritos tiveram que classificar cada item em um dos quinze domínios ilustrativos dos dois pólos – individualismo e colectivismo. Para que um item ficasse na lista era necessário que fosse colocado no mesmo domínio por, pelo menos, dois dos três peritos. Assim, em consequência desta análise, a lista ficou reduzida a 79 itens.

Em seguida, os autores do instrumento excluíram quatro domínios, nomeadamente a dependência do contexto, a prioridade dos objectivos pessoais, as relações com os outros e o trabalho em grupo, considerando que os itens destes domínios se sobrepunham aos de outros domínios. Por exemplo, os itens da dimensão objectivos pessoais, definida por Oyserman e colaboradores (2002) como a realização de esforços para alcançar objectivos pessoais, revelaram uma grande similaridade com os itens da dimensão competição, definida como a ambição e sucesso pessoal, enquanto que os itens da dimensão dependência do contexto, definida pelos referidos autores como as modificações do self dependentes do contexto ou da situação exterior, mostraram-se semelhantes aos itens das dimensões hierarquia, obrigações e harmonia.

Por fim, a exclusão dos referidos domínios reduziu a lista a 66 itens que, após a realização de análises factoriais e após a exclusão de itens que não saturaram nenhum factor, nomeadamente sobre a unicidade, a competição e a responsabilidade – ilustrativos do IND –, e a harmonia e o conselho – ilustrativos do COL – (Shulruf, Hattie, & Dixon, 2007), levou a que o AQSA ficasse reduzido a 26 itens, 15 ilustrativos da escala de individualismo e 11 da escala de colectivismo.

Ora, o AQSA, por nós adaptado e designado como Questionário de Individualismo-Colecti-vismo (QIC), tem duas escalas, a escala de individualismo (EI) e a escala de colectivismo (EC). A EI abarca três subescalas – a unicidade (itens 2, 12, 22 e 26), a competição (itens 1, 6, 7, 14, 21, 23 e 25) e a responsabilidade (itens 5, 11, 17 e 19) –, enquanto que a EC compreende duas subescalas – a harmonia (itens 4, 9, 16 e 20) e o conselho (itens 3, 8, 10, 13, 15, 18 e 24).

Concretizando, na EI os itens da subescala unicidade referem-se à definição da própria identidade como diferente e independente dos outros, os itens que constituem a subescala competição tentam captar atitudes e comportamentos que implicam a definição da identidade em termos de comparação social e de competição com os outros e os itens da subescala responsabilidade fazem referência a acções realizadas independentemente dos outros, de um modo responsável, e a modelos comunicacionais que implicam clareza, logo, responsabilidade pelo que é dito. Já para a EC, os itens da subescala harmonia espelham comportamentos que procuram manter a harmonia dentro do grupo de pertença (através do evitamento de discussões e do uso de modos de comunicação indirecta), bem como comportamentos e atitudes que privilegiam os interesses do grupo de pertença em detrimento dos pessoais e, por sua vez, os itens da subescala conselho fazem referência ao pedido de conselho aos pais, aos colegas e aos amigos próximos acerca da tomada de decisões importantes, bem como acerca da realização de determinadas acções.

Finalmente, refira-se que os itens do QIC são cotados numa escala de Likert de frequência, com seis pontos, variando entre nunca e sempre a frequência de atitudes e comportamentos de tipo individualista e de tipo colectivista.

Procedimento

A versão inglesa do AQSA foi traduzida para português pela primeira autora do presente estudo, tradução esta que foi revista pela segunda autora. Nesta primeira fase, a tradução para português conduziu-nos à decisão de substituir determinados termos por outros, mais adequados à amostra utilizada na nossa investigação, isto é, a alunos de 10º e de 12º anos. Mais concretamente, no que se refere ao item n.º 5 da versão original (“I consult with superiors on work related matters.”) substituímos “superiores” por “os mais velhos” e mantivemos o contexto de trabalho, considerando o caso dos estudantes que trabalham, mas adicionámos também o contexto escolar (“Consulto os mais velhos acerca de assuntos ligados à escola e ao trabalho.”), e no que se refere ao item n.º 18 da versão original (“I discuss job or study-related problems with my parents/partner.”) foi omitido o termo “parceiro” (“partner”).

A seguir recorremos à retroversão, realizada por uma autora portuguesa com formação superior na área de Línguas e Literaturas Estrangeiras (Variante Português e Inglês). A retroversão sugeriu-nos a hipótese de substituir o termo “pares” do item n.º 21 (“Tento obter melhores notas do que os meus pares.”) por “colegas” (“colleagues” na retroversão). Esta hipótese foi confirmada pelo estudo de reflexão falada dos itens traduzidos para português, estudo este que foi realizado com 16 alunos, de ambos os sexos, tendo a maioria dos sujeitos considerado o termo “colegas” mais adequado e mais claro do que o termo “pares”. O referido estudo de reflexão falada não apontou para a necessidade de introduzir outro tipo de mudanças na preparação do QIC.

O mesmo procedimento foi utilizado com o questionário sócio-demográfico, que foi administrado conjuntamente com o QIC.

O objectivo de tal procedimento, no que respeita às traduções sucessivas da versão inglesa do questionário e ao estudo de reflexão falada, foi o de obter um equivalente linguístico e cultural fiel ao instrumento original (Van de Vjver & Hambleton, 1996).

Por fim, refira-se que a administração do QIC foi realizada colectivamente, a turmas inteiras, em horários lectivos, apelando-se à participação voluntária, bem como à opinião sincera dos participantes, aos quais foram garantidos o anonimato e a confidencialidade das respostas.

 

APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS DA ANÁLISE FACTORIAL CONFIRMATÓRIA

A análise factorial confirmatória (AFC) foi realizada utilizando o programa EQS, versão 6.1. Este tipo de análise factorial caracteriza-se pela definição a priori de um modelo teórico, a fim de se analisar a forma como os dados se lhe ajustam (Byrne, 1994). Como método de estimação, recorremos ao procedimento usual de máxima verosimilhança, sendo todas as análises realizadas a partir de matrizes de covariância.

Na avaliação do ajustamento dos modelos que testámos, tomámos em consideração múltiplos índices de ajustamento. O primeiro foi o χ2. Este índice analisa a discrepância entre o modelo teórico e o modelo observado: se um determinado modelo apresenta um χ2 estatisticamente significativo, isto revela que os dados se afastam do modelo teórico testado. Mais ainda, pelo facto do valor de χ2 ser sensível à dimensão da amostra (Schumacker & Lomax, 1996, in Santos & Maia, 2003), recorremos igualmente a outros dois índices, com o fim de obtermos uma análise mais exaustiva da qualidade do ajustamento.

Deste modo, também considerámos o CFI (comparative fit index), que oscila entre 0 e 1. Os valores que ultrapassam 0,90 e 0,95 são considerados como indicadores de um ajustamento respectivamente aceitável e bom. O CFI representa um índice de ajustamento que compara os resultados do modelo proposto com os de um modelo nulo (isto é, um modelo em que não são feitas quaisquer estimativas).

Por fim, um último índice de ajustamento observado foi o RMSEA (root mean-square error of approximation), que analisa a aproximação do ajustamento do modelo ao modelo populacional. Consequentemente, este índice apresenta um p com um valor crítico de 0,05. Por norma, devem ser rejeitados modelos que produzem valores de RMSEA superiores a 0,1 e mantidos modelos cujo valor oscila entre 0,08 e 0,05 ou cujo valor seja inferior a 0,05.

Teste ao modelo teórico do QIC

Chamámos modelo teórico ao modelo constituído pelas cinco subescalas ou factores referidos anteriormente, com uma configuração tal como se apresenta na Figura 1. A hipótese é que os itens dos cinco factores (unicidade, competição e responsabilidade – ilustrativos do IND – e harmonia e conselho – ilustrativos do COL) saturam apenas estas variáveis latentes.

 

FIGURA 1

Modelo teórico do QIC

 

Os resultados obtidos não indicam um bom ajustamento dos dados ao modelo teórico, apresentando os seguintes valores dos índices de ajustamento: χ2(292)=720,33, p=0,000; CFI=0,70; RMSEA=0,09, p(0,08-0,09).

Teste ao modelo reconfigurado do QIC

O facto dos índices de ajustamento dos dados ao modelo teórico não serem satisfatórios, conduziu-nos à decisão de eliminar dos factores do QIC os itens que apresentavam saturações baixas, ou seja, inferiores a 0,40. Por consequência, eliminámos dois itens da subescala responsabilidade (item nº 5 e item nº 11), dois itens da subescala harmonia (item nº 9 e item nº 16) e dois itens da subescala conselho (item nº 18 e item nº 24). A configuração do novo modelo encontra-se apresentada na Figura 2.

 

FIGURA 2

Modelo reconfigurado do QIC

 

O modelo reconfigurado produziu índices de ajustamento satisfatórios. Os resultados obtidos indicam: χ2(157)=319,21, p=0,000; CFI=0,85; RMSEA=0,07, p (0,06-0,08).

No Quadro 2 apresenta-se uma síntese dos índices de ajustamento para cada um dos dois modelos testados.

 

QUADRO 2

Índices de ajustamento do modelo teórico e do modelo reconfigurado

QIC χ2 gl CFI RMSEA
Modelo teórico 720,33 292 0,70 0,09
Modelo reconfigurado 319,21 157 0,85 0,07

Legenda: CFI – Comparative fit index; RMSEA – Root mean-square error of approximation.

 

DISCUSSÃO E CONCLUSÕES

O presente estudo propôs-se discutir aspectos teóricos e metodológicos em torno dos quais gravitam os constructos de individualismo-colectivismo, objectivo este que foi complementado pela realização de um estudo de validação preliminar de um questionário de avaliação do IND/COL para o contexto cultural português.

Assim, embora os dois constructos (IND/COL) reúnam consenso científico quanto à sua teorização e operacionalização, o mesmo não acontece com os instrumentos de avaliação destes conceitos. Deste modo, é de salientar que os estudos de validação de tais instrumentos em outros contextos culturais, podem não só conduzir à reconsideração do processo de construção destes instrumentos d e medida, mas também pôr em questão a exactidão e a pertinência de operacionalizações, aparentemente consensuais, acerca dos constructos de IND/COL.

O presente estudo recorreu à análise factorial confirmatória, com o objectivo de testar no contexto português a plausibilidade do modelo factorial teórico do QIC – com cinco factores, três ilustrativos da dimensão de individualismo (unicidade, competição e competição) e dois ilustrativos da dimensão de colectivismo (harmonia e conselho), tudo isto na tentativa de clarificar o enquadramento conceptual e a operacionalização da dimensão cultural de individualismo-colectivismo e de matizar o mesmo em função da especificidade da amostra utilizada nesta investigação. É de referir que a pertinência deste objectivo é sustentada pelo facto do instrumento por nós utilizado ter sido construído a partir de uma meta-análise recente de Oyserman e colaboradores (2002), como já referido, meta-análise esta que foi realizada considerando as principais escalas utilizadas para avaliar os constructos de IND/COL.

Ora, já que o modelo teórico do QIC apresentou maus índices de ajustamento, decidimos testar um modelo reconfigurado, através da eliminação dos itens que evidenciaram saturações baixas (inferiores a 0,40) nas respectivas variáveis latentes de origem.

Mais especificamente, eliminámos o item nº 5 (“Consulto os mais velhos acerca de assuntos ligados à escola e ao trabalho.”), da subescala responsabilidade, item este que teve uma saturação muito baixa no seu factor de origem e que parece mais ilustrativo da subescala conselho. O carácter problemático deste item pode estar relacionado com a sua tradução, dado que, como já referimos anteriormente, substituímos o termo “superiores” por “os mais velhos”, com o objectivo de não induzir nos sujeitos respostas hipotéticas, uma vez que, tratando-se de alunos de 10º e 12º anos, o conceito de “superiores” não faz referência a um contexto real de acção, como o do trabalho. Assim, é possível que, dada a sua tradução para português, o item nº 5 tenha perdido a intenção que os autores da escala lhe tinham atribuído, isto é, captar comportamentos de responsabilidade no contexto hierarquizado do trabalho. Simultaneamente, o termo “consultar” não exclui o pedido de conselho, pelo que o item nº 5 pode ilustrar também a subescala de conselho.

Da mesma subescala de responsabilidade foi também eliminado o item nº 11 (“Gosto de ser claro e preciso quando comunico com os outros.”), que parece ilustrar de forma equívoca a subescala referida. Mais concretamente, embora exprimir de uma maneira clara o que se pensa possa implicar ser responsável pelo que se pensa, esta atitude pode também representar um factor de harmonia numa cultura mais individualista, uma vez que em tal contexto cultural a falta de precisão no modo de comunicar e a concentração no contexto exterior ao acto comunicacional, e não no conteúdo verbal transmitido, podem conduzir a desentendimentos. Acresce que esta atitude comunicacional pode representar um factor de desentendimentos e de falta de harmonia numa cultura mais colectivista, pelo que é possível que o item nº 11 ilustre a subescala de harmonia, devendo deste modo ser reclassificado. Concomitantemente, sendo a amostra deste estudo constituída por adolescentes, grupo não-hierarquizado em que a personalidade de cada um se exprime através de diálogos directos, assertivos e menos formais, é possível que o item nº 11 não tenha sido sensível à especificidade do contexto (individualista vs. colectivista).

Outro item eliminado foi o nº 9 (“Sacrifico os meus interesses pessoais em benefício do meu grupo”), que teve uma saturação baixa na subescala de harmonia. Para este resultado invocamos de novo a especificidade da amostra, ou seja, os adolescentes encontram-se numa fase em que a auto-realização é muito importante, sendo esta exigida pelo contexto social, pelo que os próprios objectivos de realização pessoal e os interesses tendem a ser privilegiados. Assim, mesmo num contexto caracterizado por uma mentalidade colectivista, quando se trata de adolescentes, é possível que a formulação em termos de “sacrifício” conduza a respostas menos categóricas.

A eliminação do item nº 16 (“Prefiro usar uma linguagem indirecta em vez de dizer directamente coisas que é possível que os meus amigos não gostem de ouvir.”), também da subescala harmonia, pode ser explicada de modo análogo ao que já foi referido quanto ao item nº 11, isto é, para adolescentes, é possível que a falta de clareza na comunicação com os outros seja mais um factor de desentendimento do que de harmonia.

Por fim, foram eliminados dois itens da subescala conselho (item nº 18 – “Falo com os meus pais sobre assuntos ligados ao estudo ou ao trabalho.” – e item nº 24 – “Consulto a minha família antes de tomar decisões importantes.”). De referir que, dos sete itens estabelecidos pelos autores do questionário como ilustrando esta subescala, apenas os itens eliminados (nº 18 e nº 24) estão relacionados com o pedido de conselho aos pais e à família, pois os restantes cinco itens ligam o pedido de conselho aos amigos. Ora, as respostas aos dois itens eliminados não se correlacionaram com as respostas aos outros cinco itens da subescala conselho, o que aponta para o facto das opiniões dos amigos serem valorizadas de forma distinta das opiniões da família e dos pais. É ainda de referir que, quanto ao item nº 18 da subescala de conselho, a sua formulação comporta uma certa ambiguidade, uma vez que falar com os pais sobre “assuntos ligados ao estudo ou ao trabalho” não implica necessariamente o pedido de conselho.

Assim, a partir destas pistas preliminares de interpretação dos resultados obtidos na presente investigação, devemos salientar o facto dos estudos de AFC terem apontado para uma estrutura factorial do QIC parcialmente diferente da estabelecida pelos seus autores. É possível que esta diferença se tenha devido, por um lado, à especificidade da amostra desta investigação – composta por adolescentes – que, como já referimos anteriormente, pode ter desviado o sentido inicial de alguns dos itens do QIC e, por outro lado, ao modo como são encarados e operacionalizados os conceitos relacionados com o IND/COL, à formulação dos itens e à sua distribuição na estrutura factorial do QIC.

Deste modo, considerando os resultados obtidos nesta investigação, é de salientar que, para o futuro, parece importante (i) reconsiderar o estatuto dos itens eliminados, (ii) realizar uma análise factorial confirmatória considerando os factores IND/COL como factores de segunda ordem e (iii) replicar o estudo com uma amostra mais alargada para consolidar a clarificação conceptual da dimensão cultural de individualismo-colectivismo, e a adequação da respectiva avaliação, clarificação e avaliação estas para as quais procurámos um contributo inicial com a presente investigação.

 

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(*) Doutoranda em Psicologia, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto (FPCEUP); bolseira de doutoramento pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT – Refª SFRH/BD/21768/2005).

(**) Professora Associada com Agregação, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto (FPCEUP).

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