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Análise Psicológica

versão impressa ISSN 0870-8231

Aná. Psicológica v.28 n.2 Lisboa abr. 2010

 

Ressonâncias do narcisismo na clínica psicanalítica contemporânea

 

Eliana Rigotto Lazzarini (*), Terezinha de Camargo Viana (**)

 

RESUMO

Tem sido corrente a afirmação de que vivemos, na cultura contemporânea, sob o signo do narcisismo; e no campo da psicanálise isso aparece freqüentemente através das referências ao crescimento das patologias chamadas narcísicas. Procuramos mostrar que as patologias narcísicas são pautadas pelo mecanismo da clivagem mais do que pela recalcamento. Entendemos que o conceito de narcisismo em psicanálise é essencial para a compreensão das formas de constituição das subjetividades contemporâneas.

Palavras-chave: Narcisismo, Psicanálise, Subjetividade contemporânea.

 

ABSTRACT

The statement that we live under the sign of narcissism in our contemporary culture has become common and, in the field of psychoanalysis, this reference has occurred frequently as a result of the increase of the so-called narcissistic pathologies. We have sought to demonstrate that the narcissistic pathologies are more often guided by the seizure (clivagem) mechanism than by the repression. We understand that the concept of narcissism in psychoanalysis theory is essential for the comprehension of the contemporary subjectivities constitution.

Key-words: Contemporary subjectivity, Narcissism, Psychoanalysis.

 

Temos observado uma crescente preocupação, por parte de psicólogos e psicanalistas contemporâneos, com a modificação do perfil da demanda clínica, dando conta da ocorrência de um progressivo deslocamento dos quadros neuróticos clássicos para as patologias do narcisismo. Diagnósticos cada vez mais freqüentes de depressão, drogadição, anorexia, bulimia e síndromes mais complexas constituem reflexos de uma cultura que passa por momentos de indefinição e mudança com relação a valores sociais rompendo com aspectos que eram considerados primordiais desde tempos anteriores. Desta feita, pensamos que uma revisão nos aspectos relacionados a essa nova demanda e a clínica da atualidade se faz pertinente.

As subjetividades contemporâneas refletem certo grau de fragmentação do sujeito e conseqüências desse processo sobressaem em seu sofrimento psíquico que ganha novos contornos. A fim de refletir sobre tais condições propomos neste artigo um breve retorno ao processo de constituição do sujeito psíquico e aos fundamentos básicos da psicanálise para que possamos delinear e compreender um pouco mais a respeito dos processos subjetivos contemporâneos e suas vicissitudes. Estamos cientes de que apesar de ser uma problemática da clínica não podemos abandonar a idéia de que esse processo se encontra mediado por algo também da cultura calcada na própria crise da subjetividade pós-moderna, portanto, ambas, cultura e clínica inter-relacionadas no estabelecimento do perfil atual da demanda clínica.

A maioria dos autores com os quais trabalhamos, e que são citados no corpo do presente artigo, admite que pode haver uma falha básica na constituição do eu narcísico ou mesmo nas instâncias ideais desses sujeitos, ou seja, uma falha no recalcamento primário atribuída a uma espécie de insuficiência (ou ineficiência) dos cuidados maternos na primeira infância. Como conseqüência, a escolha do objeto (o outro da relação) se daria com base na eleição narcisista na qual ocorre a identificação. Na impossibilidade de escolha do objeto externo elege-se o objeto a partir da imagem e semelhança do próprio eu transformado em seu próprio ideal que se converteu em substituto do investimento erótico. Supõe-se que é pela identificação narcisista com o objeto que o investimento libidinal retorna ao eu não se direcionando ao objeto externo como esperado ficando, portanto, estagnado. A impossibilidade do estabelecimento dos processos terciários (Green, 2001) não poderia se dar e conseqüentemente a saída da condição narcísica para a condição edípica, substrato da alteridade, também não se daria.

 

AS CONFIGURAÇÕES NARCÍSICAS ATUAIS: CIRCUNSCREVENDO O FENÔMENO

A grande parte das queixas que vemos aparecer na clínica nas últimas décadas diz de um mal estar difuso e invasor, um sentimento de vazio interior. Dito de outra forma, as configurações subjetivas contemporâneas tendem a apresentar um sujeito que trás um sofrimento psíquico que parece estar menos relacionado a conflitos neuróticos clássicos, regulados pela lógica da castração e do desejo. O que tende a aparecer na clínica é algo da ordem do desamparo primordial, como ressaltado por Freud. A maioria dos sintomas neuróticos clássicos que correspondem em grande parte a uma sociedade mais repressiva, tirânica, autoritária e puritana deram lugar às desordens narcisistas que são mais coerentes com uma sociedade permissiva e também mais eclética em suas manifestações, como a que vivemos na atualidade. Os pacientes não sofrem tanto de sintomas fixos e exuberantes na sua forma, mas, sim, de perturbações vagas, sentimentos de vazio e uma queixa freqüente que se reflete na incapacidade de sentir as coisas e as pessoas. Como observa Lipovetsky (2005): “A patologia mental obedece à lei da época (...): a crispação neurótica foi substituída pela flutuação narcísica” (p. 55).

No consultório clínico falamos daqueles pacientes cujas dinâmicas psíquicas se apresentam pautadas pelo mecanismo da clivagem, mais do que pelo recalcamento, e cuja característica é a de ser uma reação básica à atitude do outro da relação primordial (o objeto primitivo) que pode ser dupla: ou a falta de ligação ou um excesso de fusão. No mecanismo da clivagem, como salientado por Green (2001), o retorno dos elementos segregados se acompanha de grave ameaça de desamparo, o que é diferente do recalcamento, na qual o retorno do reprimido dá origem ao sinal de angústia.

Entendemos que determinados escritos de Freud sobre o narcisismo e a idealização são essenciais para a compreensão dessas formas de constituição das subjetividades contemporâneas. Em Freud evidenciamos algumas dessas questões já antecipadas no artigo de 1914, Á guisa de introdução ao narcisismo e no artigo de 1921, Psicologia de grupo e análise do ego. No texto de 1914, Freud levanta considerações a respeito dos mecanismos de idealização, sublimação e identificação que foram posteriormente repensadas em 1921.

Neste artigo Freud analisa o comportamento dos grupos como simples manifestações dos mesmos, mas podemos ver implícita no texto, como pano de fundo, a realidade social na qual Freud está inserido, qual seja, o final da primeira guerra mundial em 1918, a revolução soviética em 1917 e a ascensão do movimento nazista e fascista na Alemanha, na Áustria e em toda a Europa. Um momento histórico marcado por intenso stress psicológico caracterizado pelos traumas de guerra recentes, pelas questões segregacionistas que se engendram na sociedade e pela violência psicológica do cerceamento dos valores e ideais de cada um.

Nos dias de hoje, o que podemos dizer de uma sociedade como a nossa que se vê compelida por uma revolução calcada nos avanços científicos e tecnológicos, muitas vezes, em descompasso com a possibilidade de apreensão imediata pelo indivíduo; uma sociedade competitiva que pode gerar o empobrecimento da experiência coletiva e valorizar os interesses e as demandas íntimas? Que bases essa sociedade estaria oferecendo para a constituição da individuação/subjetivação? E mais, o que dizer dos sujeitos, estes não estariam sendo sobrecarregados e prejudicados pelos padrões de eficiência dessa sociedade altamente desenvolvida? E qual o destino desse sujeito?

Como aludido por Freud nos artigos supracitados, nos momentos de indefinições, de grandes e rápidas mudanças o sujeito esboça um movimento regressivo, um movimento narcísico direcionado a si próprio, ou seja, o eu deste sujeito se comporta como objeto de seu próprio investimento o qual se caracterizaria por uma idealização de si, uma forma de se sentir pleno. Pensamos que o destino do sujeito hoje, em nossa sociedade, seria uma volta a si marcada pelo retorno à constituição da perfeição narcísica e a proteção e satisfação da vivência simbiótica com o objeto primordial alojado dentro de si.

Se por um lado um modo narcísico de subjetivação na contemporaneidade está sinalizado pela descontração nos relacionamentos e nos ambientes, no culto ao natural, na rapidez das demandas, na mudança dos valores e numa ética mais tolerante e permissiva, também são sinais inerentes a essa subjetivação o stress e a depressão e uma inclinação à angústia e ansiedade mais profundas causadas pelo desapego da coisa externa. Nesta condição, o sujeito vê ameaçado seu projeto de vida pela impossibilidade de poder vivenciar plenamente suas experiências. A subjetivação na pós-modernidade poderia se definir por uma disjunção na qual entra em cena uma espécie de incapacidade de enfrentamento das instâncias públicas, fazendo com que o sujeito encontre mais espaço em seu mundo interiorizado. Nestes termos falamos de uma subjetividade mais narcísica.

O indivíduo na sociedade atual tem sido convocado para a busca do perfeito: corpo, status, trabalho, eficiência, estilo e modo de vida. Como escapar dessa solicitação? Podemos formular a resposta de que a forma mais comumente encontrada é a de tentar banir os afetos humanos básicos como a angústia e a tristeza do luto procurando dispositivos para sedá-los. As drogas, lícitas e ilícitas, ganham espaço e, não é sem razão, que a droga mais difundida na atualidade, para esse propósito, sejam os anti-depressivos. As pessoas procuram cada vez mais os consultórios médico-psiquiátricos na busca da solução rápida para aplacar sua dor. Solução indolor, artificial, paliativa.

De tal sorte que a clínica psicanalítica contemporânea se vê confrontada por configurações psicopatológicas diferenciadas, mas que encontra parâmetros de comparação nos escritos psicanalíticos freudianos e de seguidores da psicanálise, especialmente no período compreendido entre as duas grandes guerras mundiais, período esse contemporâneo aos escritos freudianos da segunda tópica. Daquela época específica temos registro de relatos de casos ditos “estados limites” (ou borderlines) que falam de estados diferenciados dos casos clássicos freudianos, estes pautados na neurose. Um dos seguidores de Freud e representante desse momento é Fairbairn (1980) que na década de 40 se interessava pelas configurações clínicas derivadas do processo regressivo constituído por fortes desestruturações egóicas, dependência absoluta do outro e impossibilidade de individuação, modos que marcavam os pacientes descritos pelo autor.

É uma das temáticas clínicas clássicas que sobrevêm no final da década de 30 e início de 40, possivelmente fundamentada numa situação social conturbada que ressurge nos dias de hoje, não referenciado a um conflito único e de grande porte como naquela época, mas de pequenas lutas cotidianas, geradoras de intenso stress, e de magnitude semelhante. De acordo com Amaral (2000) surge “como um efeito especular das tendências sócio-culturais à fragmentação e das angústias narcísicas” contemporâneas (p. 06).

O que tem predominado atualmente na cena psicanalítica clínica são as chamadas “neuroses mistas”, nas quais as manifestações do eu do indivíduo aparecem, freqüentemente, fragmentadas e descentradas. Trata-se de indivíduos praticamente impossibilitados de se individuarem e que se apresentam incapazes, muitas vezes, de enfrentar uma situação analítica clássica. Configuram sua subjetividade baseada numa falta de apoio interno necessária a uma vivência plena, característica de uma carência de natureza narcísica oriunda de falhas nas etapas de desenvolvimento mais precoce, portanto, anterior ao desenvolvimento do complexo edípico e a vivência da castração, no sentido freudiano.

Acrescido a isso esses indivíduos parecem não encontrar na cultura respaldo e amparo necessários para conseguir superar suas dificuldades internas. Como evidenciamos anteriormente e como coloca Safra (1999) “nossa cultura está tão impregnada pela idolatria da individualidade que perde de vista que o homem é um ser singular que abriga o coletivo” (p. 145).

Green (2001) tem trabalhado na clínica a respeito das formas narcísicas de constituição do sujeito contemporâneo desde a década de 60. Tais formas são configuradas por este autor no que denomina de configurações narcísicas ou casos limites (também chamado de estados limites ou borderlines) e tem sido um autor interessado nas questões sociais às quais procura dar ênfase por acreditar que estejam cada vez mais no centro das preocupações da clínica na atualidade. Green (2001) descreve os pacientes narcísicos como sendo pessoas cuja capacidade de fantasiar é muito mais utilizada como forma de preenchimento do vazio; são pessoas que possuem um retardo afetivo acentuado, isto é, têm horror aos apetites sexuais e orais e, neste caso, se encontra, por exemplo, a questão da anorexia. Para ele, esse paciente vai se constituindo como sendo aquele que está diante de uma enorme vergonha de ser um sujeito pulsional, libidinal, submetido ao desejo e a excitação do corpo. Segundo Green, nesses pacientes, a questão do corpo é complicada porque o corpo, na sua materialidade, é algo difícil de suportar. Aquilo que aponta para o fato de que este sujeito é mortal, que está submetido ao desejo, à lei, ao limite, à velhice, à feiúra, tudo isso, é insuportável, pois precisamente o que está em jogo é a purificação, a tentativa de atingir um limite do ascetismo, do puro, daquele que não necessita de nada, que não é contaminado.

Anzieu (2000) observa que a clínica psicanalítica se encontra confrontada nestas últimas décadas com a necessidade de delimitar os distúrbios narcísicos de personalidade (que são muitas vezes ligados às neuroses de caráter) e os estados limites. O autor complementa que em ambas as categorias, trata-se de pacientes com experiências ruins de individuação e separação. Segundo ele, certas características de funcionamento psíquico decorrem daí: são pessoas que não se sentem seguras; que vivem no aqui e agora; cujo modo de comunicação específico é a narração, contam o fato e não a emoção que sentiram; que tendem a não aprender pela experiência vivida pessoal; com dificuldade de se desprender intelectualmente de seu vivido; que na vida social permanecem grudadas (no sentido de fusão) aos outros ou, excessivamente afastadas e que temem a penetração seja ela do olhar ou sexual.

Pontalis (2005) considera uma conquista da psicanálise o fato de ter reconhecido a existência de um núcleo psicótico atuante no indivíduo dito neurótico e, inversamente, ter reconhecido a existência de uma parte neurótica no psicótico. O autor pondera que fatores culturais devem ser levados em consideração na elucidação desses pacientes limites cuja denominação nosológica de sua enfermidade pode receber o nome de: neuroses-mistas, casos-limites, neuroses de caráter, personalidades narcísicas, etc.

Figueiredo (2003) se refere a essa modalidade clínica como a clínica dos pacientes difíceis com uma fenomenologia psicopatológica e exigências técnicas específicas. Figueiredo articula o que ele considera ser a nova clínica, com os determinantes históricos e culturais dos processos de subjetivação contemporânea e com os mecanismos metapsicológicos predominantes. O autor justifica trazendo para o contexto a metapsicologia de Fairbairn, ou seja, a metapsicologia da esquizoidia fairbairniana que fala de uma experiência analítica situada histórica e culturalmente. O autor acrescenta ainda que essa posição metapsicológica de Fairbairn diz mais da experiência contemporânea do que diria a metapsicologia de Freud, pois essa experiência contemporânea, qual seja, uma subjetivação esquizóide e fragmentada, se daria exatamente pela característica histórico-cultural do ultra-individualismo contemporâneo, que promove mais o afastamento das pessoas do que sua ligação. Figueiredo vai falar de uma nova patologia denominada sociofobia sugerindo uma ressonância entre o que Fairbairn dizia a respeito do futuro em sua época e o que estaria acontecendo atualmente, ou seja, os fenômenos sociais experimentados no final do século XX e princípio do século XXI. Segundo Figueiredo na clínica contemporânea as melancolias clássicas baseadas na culpa, as auto recriminações severas e os ataques clássicos de angústia tendem ao desaparecimento e no seu lugar aparece uma espécie de desconforto consigo mesmo. Não se trata de uma fala vazia, segundo ele, mas de uma dor, de um grito que vem de dentro, que afeta o sujeito.

Fairbairn (1940/1980) faz uma diferenciação quando se refere à depressão como uma espécie de reação defensiva contra uma estrutura endopsíquica básica, contra a esquizoidia. Segundo ele, a esquizoidia provoca uma sensação de tédio e depressão porque supõe uma separação e distanciamento do sujeito com ele mesmo. O estado depressivo em Fairbairn difere da queixa melancólica grave, ou seja, a depressão em Fairbairn aparece como uma falta de interesse pelas coisas externas, de desligamento do mundo e de retorno a si.

O que caracteriza a psicopatologia de Fairbairn é o fato de estar calcada nos estados esquizóides e nos estados depressivos que se referem, respectivamente, à perda do eu e à perda do objeto. Em sua teoria os estados esquizóides se devem à psicogênese do eu e não são fatores que acontecem ocasionalmente. Para Fairbairn a base da psicogênese são as relações de objeto, pois as mesmas são fundamentais em função da dependência absoluta do ser humano ao nascer com relação às pessoas que dele cuidam. E essa dependência, segundo ele, se deve ao desamparo com o qual todos nós nos deparamos. A psicogênese do desenvolvimento da subjetividade, ou utilizando um termo mais próprio de Fairbairn, o desenvolvimento da personalidade, deve passar dessa dependência absoluta com respeito aos objetos e ir em direção a uma independência mais madura. Interessante observar, mais uma vez, que a teoria de Fairbairn foi escrita num tempo em que a necessidade e a sobrevivência física das pessoas estava em evidência e era herdeira desse estado de coisas.

Desta feita, a clínica contemporânea pode ser caracterizada, utilizando a expressão de Green (1988) como uma clínica do vazio relacionada aos estados limites cuja característica é a presença de configurações narcísicas. As questões do narcisismo estão em primeiro plano. Ou seja, pode-se perceber um desinvestimento muito forte do sujeito, ou melhor, um investimento no eu, mas que visa uma redução a um nível zero de tensão.

Na análise empreendida pelos autores acima citados, evidenciamos que tais patologias afetam o sentido e o valor do eu. Verifica-se nesses casos um tipo de escolha de objeto de tipo narcísico na qual as relações com o objeto apresentam uma característica peculiar: uma forma de funcionamento defensivo que privilegia os mecanismos de recusa, apresentando um processo limitado de elaboração psíquica mais próximo da condição neurótica, mas que ao se descompensar tende a funcionar de uma forma negativa (na acepção de Green) com produções de sintomas psicossomáticos, explosões no corpo, pânico e condutas aditivas de toda ordem; uma tendência a valorizar a incidência das características dos vínculos intersubjetivos e suas falhas, relativas à épocas bastante precoces de constituição do eu. Tais sujeitos funcionariam, em termos psíquicos, de acordo com uma organização mais primitiva ou mesmo mais fusional em relação ao outro complementar (o objeto psíquico).

Para tentarmos compreender um pouco a respeito desta dinâmica psíquica vamos seguir as etapas de constituição do eu procurando defini-las em termos da série de objetos parciais que vão se sucedendo.

 

A EXPERIÊNCIA TORNADA OBJETO

“A completude narcisista não é signo de saúde, mas miragem de morte, ninguém é sem objeto. Ninguém é o que é sem objeto”

André Green (1988, p. 211)

 

Em trabalho anterior (Lazzarini, 2006) fizemos referência ao conceito de eu e de corpo em psicanálise observando que a instância eu e a instância corpo, do ponto de vista psíquico, não é algo dado a priori e nem tampouco de forma completa e absoluta, mas que se constitui na experiência e nas vivências apreendidas com o outro (o objeto primordial). É o outro que concede e possibilita o nascimento do corpo do sujeito e, portanto, a constituição de seu eu. No entanto, se o outro/objeto não propicia suficientemente contato com o bebê, por uma ausência, por exemplo, via depressão (Aulagnier, 2002), o desinvestimento poderá provocar saídas que são expressas nas várias formas de dissociação, desde as mais amenas até as mais graves.

Teoricamente, o nascimento do bebê colocaria um fim à experiência de auto-suficiência e união narcísicas. As repetidas experiências, na relação mãe/bebê, de gratificação e a expectativa de seu retorno devem dar ao bebê a confiança íntima para tolerar a fome e o desconforto emocional. Ao mesmo tempo, essa série de experiências também deveria reforçar a sua consciência de separação, ou seja, tornar claro o que está fora, a fonte de gratificação e o que está dentro, a necessidade e seu desejo. O bebê deve passar, pouco a pouco, a compreender que as suas vontades não controlam o mundo. Em suma, a separação do nascimento naturalmente deve ser seguida por experiências adicionais de separação que vão constituindo o sujeito humano quanto a sua capacidade criativa que unicamente ele é capaz de suscitar.

Segundo Green (1988), o objeto materno transformado em estrutura é conseguido quando o amor do outro/objeto é considerado seguro para desempenhar esse papel: pode-se suportar a espera e mesmo a depressão temporária. A criança se sentindo segura mesmo que o objeto materno não esteja lá presente. Quando o espaço é assim enquadrado a garantia da presença da mãe, em sua ausência, pode ser preenchida por fantasias de todos os tipos, inclusive agressivas, que não colocarão em risco este continente. Green ressalta que esse espaço constitui o receptáculo do eu, circunscreve um campo vazio que servirá para ser ocupado pelos investimentos eróticos e agressivos sob a forma de representações de objeto: “desempenha então o papel de uma matriz primordial dos investimentos futuros” (1988, p. 265).

O outro/objeto, na acepção do bebê, nunca é total num primeiro momento. Os passos na constituição do sujeito psíquico são traçados em termos da série de objetos parciais que vão se sucedendo. O primeiro momento corresponde ao contexto da indiferenciação e da dependência total do bebê ao objeto/mãe que ainda não é percebido como tal. Pelo movimento de incorporação do leite e de contato com o seio o bebê tem a possibilidade de recriar o objeto em sua ausência pela imagem alucinada do seio.

Em um segundo momento, se daria a instauração do narcisismo primário e a incipiente constituição do eu, no qual o eu e o outro/objeto estão começando a se diferenciar. Nesse contexto a presença da mãe e, principalmente o olhar materno, tem um papel crucial de espelhamento da imagem do bebê – esse objeto narcísico que faz ser eu – quando as vicissitudes, as pulsões, a dor e o desamparo venham ameaçar a existência do pequeno ser.

O terceiro momento trata da constituição do não-eu quando a ausência da mãe já começa a se tornar tolerável. Em Freud (1920) o jogo da bobine, o jogo do Fort-da, é a condição elevada a paradigma dos jogos infantis constituintes. Sua operação é universal e marca a possibilidade de simbolizar o corpo da mãe em sua ausência. Winnicott (1951, 1975) com os conceitos de “fenômeno transicional” e de “objeto transicional” pontua igualmente a construção criativa da primeira possessão não-eu criando um espaço intermediário de experiência. Para Winnicott a mãe, na medida em que dá suporte às necessidades básicas de seu bebê, assegura a este a possibilidade de se relacionar com os objetos e, assim fazendo, possibilita ao bebê a ampliação de seu mundo real. Esse é um processo que marca o início da separação do eu e do não eu, onde o objeto vai constituir o símbolo da união bebê-mãe.

Nesse momento, o bebê passa a adquirir uma gestalt corporal e passa ao início do jogo lúdico com a própria imagem. No momento anterior, a criança necessitava da identidade com a mãe para suas vivências, mas como a mãe não estava disponível o tempo todo, isso propiciava à criança, fortuitamente, encontrar outros caminhos para integrar seus processos o que ocorre através do encontro da imagem especular. É no jogo do espelho, no qual a imagem é submissa às vontades do bebê, que a onipotência se revela. Ao iniciar-se o processo de identificação já começa a existir a possibilidade de experimentar os papéis sociais através do imaginário. O bebê passa a reincorporar as vontades anteriores, experimentando-as em contraposição às suas próprias. A condição de realidade impede, em função do grau de resistência, a fantasia onipotente do bebê. O objeto caracteriza a zona de ligação através da qual se faz a comunicação entre interno e externo: uma zona de não repetição, de imaginação e criação que significa a possibilidade de aprendizagem.

De acordo com Winnicott (1975) a tarefa de aceitação da realidade nunca é completada. Para o autor, nenhum ser humano está livre da tensão de relacionar a realidade interna e externa. Para ele, o alívio dessa tensão é proporcionado por uma área intermediária de experiência que não é contestada (artes, religião). Esta área intermediária, diz Winnicott, está em continuidade direta com a área do brincar que é necessária para o início de um relacionamento entre o bebê e o mundo. O adulto conservaria esta zona intermediária que no bebê constitui a maior parte de experimentação, através da vivência intensa que diz respeito à religião, ao viver imaginativo e ao trabalho científico. A manipulação do objeto, assim como a imagem do espelho funcionam, neste caso, como substitutos da mãe ausente que a criança domina e faz aparecer e desaparecer. Isso pode ser considerado a reprise, a repetição e tem como função exteriorizar as vivências subjetivas de perda e levar a criança a se reconhecer como representação de si própria que lhe vem de fora e que reforça a imagem subjetiva dentro de si.

O quarto momento corresponde à instauração da castração que vai ressignificar retroativamente as sucessivas perdas e separações e o reconhecimento das diferenças sexuais. Segundo Green (2000) “A perda do objeto e a sua elaboração chegarão à separação mãe-criança e à tomada de consciência da existência efetiva do pai como outro objeto. É (...) uma condição indispensável se se quiser falar de Édipo precoce. O pai aparece posteriormente, como o separador, mas também como outro objeto a se amar. Donde um período de vaivém, por parte da criança, entre a mãe e o pai”(pp. 142-143). Esse corte dará a criança a possibilidade de outros destinos pulsionais que não o incestuoso, instaurando a condição do desejo. Para esses desdobramentos o sistema narcisista do eu é insuficiente. Será pela operação de incorporação do supereu, constituído pela interdição ao incesto, pela instauração da censura e do limite, que essa descontinuidade vai se dar. A intervenção do pai, como representante da cultura, possibilitará à criança o amparo para que ela possa suportar o vazio e, ao mesmo tempo, preenchê-lo com sua própria história.

É justamente o segundo momento que nos interessa para entendermos as condições de estabelecimento dos distúrbios narcísicos e a precária estruturação egóica dos sujeitos. Os distúrbios narcísicos de personalidade terão como ponto de partida justamente as falhas do adulto em responder às necessidades de reconhecimento e espelhamento assim como a distância e/ou ausência de figuras idealizadas que possam ser objeto de identificação. A ilusão de totalidade do eu especular, quando compartilhada pelos pais e pela criança, mantém uma ilusão de continuidade e de reciprocidade dos desejos. Neste momento, é essa ilusão que deverá ser mantida igual, cotidianamente, pela criança, pois a instabilidade introduzida pela ausência da mãe torna a criança carente dessa presença. Para crianças muito pequenas, a separação da presença encarnada da mãe muito prolongada pelo tempo, torna-se insuportável e pode ser considerada por ela como um desaparecimento definitivo que é, muitas vezes, sentido como um abandono. O retorno posterior da mãe pode provocar uma reação de estranhamento, com reações agressivas, indiferença ou não reconhecimento. A criança pensará a mãe como “morta”, o que nesse momento se traduz como “nunca ter existido”. Nesse caso, a criança se esforça por manter cativa a imagem da mãe, lutando contra seu desaparecimento “vendo reavivarem-se alternadamente as marcas mnêmicas do amor perdido com nostalgia e as da experiência da perda, que se traduz pela impressão de uma dolorosa vacuidade” (Green, 1988, p. 266).

Anterior à instalação do que chamamos acima o terceiro momento da constituição do sujeito, portanto entre o segundo e o terceiro momento, podemos examinar a questão da realidade do borderline. Green (2001) observa que com respeito ao princípio da realidade, o aparato psíquico tem que decidir se o objeto está ou não está presente: sim ou não. A contribuição que Green traz quanto a essa questão, diz respeito a uma posição que seria prerrogativa do borderline, ou seja, esse paciente diante da questão da ausência ou presença do objeto responderia nem sim, nem não. Essa alternativa, segundo Green, seria uma recusa em decidir o destino do outro/objeto. Pensamos que esta ambigüidade seria tanto uma salvaguardada para lidar com uma intrusão excessiva pela presença maciça do objeto, quanto estaria também possibilitando uma proteção da ausência total do objeto, que é sentida como uma perda para sempre. Para este sujeito faz falta diferenciar presença, ausência e perda.

 

ASPECTOS METAPSICOLÓGICOS E CLÍNICOS DOS FENÔMENOS NARCÍSICOS

Para a construção de uma compreensão metapsicológica dos fenômenos narcísicos, subjacente à constituição do sujeito borderline, podemos refletir sobre três aspectos: a constituição do eu corporal, as condições de instalação do auto-erotismo e a relação pré-edipiana mãe/bebê.

Como vimos acima, o que vai construindo para o sujeito a imagem de seu corpo e, conseqüentemente, sua identidade é o investimento materno pela escuta e interpretação das suas sensações corporais. O bebê está impossibilitado de suprir suas necessidades mais básicas de sobrevivência e, sendo assim, sua dependência a esse outro se instala. A função alimentar tem aí um destaque primordial na constituição do corpo erógeno, cujo funcionamento é fruto das primeiras relações mãe/bebê. Uma falha na possibilidade de constituição desse corpo e no estabelecimento de fronteiras protetoras podem estabelecer fissuras no eu que tenderão a impedir o estabelecimento da “metaforização do amor materno” (Amaral, 2000, p. 7) fundamental para a constituição do eu do sujeito.

De acordo com Green (1988), caso essa função protetora não ocorra o corpo, como aparência, fonte de prazer, sedução e de conquista do outro, é banido. O corpo próprio, segundo ele, nesses casos, é o outro que ressurge, ou seja, o eu/corpo se faz presente como parte do corpo materno. Portanto, o sujeito narcisista estará impregnado deste outro em seu próprio eu, vivenciando o fato como uma ameaça de anulação de si. Como conseqüência, o processo de constituição do mundo simbólico se vê fragmentado induzindo o sujeito para uma existência falsa.

Podemos pensar que nesses sujeitos a capacidade de investimento libidinal não vai se exercer, ou vai se exercer de maneira muito precária, pois o objeto deve a todo custo ser desinvestido pela própria condição de superinvestimento. O sujeito desinveste seu corpo passando a ser seu ideal um corpo purificado, sem marcas de sexualidade afastando a possibilidade de ser um sujeito dotado de vida pulsional. O ideal buscado de corpo puro seria o ideal de libertação da marca do outro. Isto constitui uma conduta ascética.

Na condição do sujeito narcísico o eu parece não encontrar condições de se enriquecer na relação de objeto e por isto faz um retorno a si tornando-se um eu cujo autocentramento impede a permanência do outro. Dessa forma corre o risco de perder o vínculo com a realidade. O sujeito narcisista encontra satisfação no seu empobrecimento interior, pois entende que dessa forma ele é melhor, em função de ter conseguido, através de seu ascetismo, eliminar a dependência do objeto. O ideal do eu desses sujeitos está impregnado por um desejo de renascimento, individualização, diferenciação. Green (1988) ressalta que ao se colocarem longe dos apetites humanos, orais e sexuais, não pela sublimação, que implicaria sua aceitação, mas pela recusa, estão convencidos de sua superioridade sobre todos os mortais.

Essa dependência do corpo encontrada no narcisismo tem suas raízes, como vimos, na relação com a mãe. Freud (1926[1925]) observa que a ausência da mãe constitui uma situação traumática, dessa forma tornando-se possível demonstrar que sem uma função materna de pára-excitação o incipiente aparelho psíquico do bebê ficaria a mercê das forças pulsionais. Freud, em Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental (1911), ressalta que se as necessidades internas do bebê quando não satisfeitas a tempo ou, quando não satisfeitas da forma habitual ou enfim satisfeitas de forma alterada por razões diversas, geram uma espécie de desapontamento no bebê que é por este vivido muito intensamente. O psiquismo do bebê tende então a um re-direcionamento. E este re-direcionamento torna-se estruturante na medida em que o bebê deverá se adaptar as exigências da realidade além das suas próprias.

Os sujeitos narcísicos são sujeitos que tem na figura do objeto/mãe uma grande identificação e idealização e tanto a cumplicidade quanto a sedução são atribuídas à ela. Há uma forte relação de dependência com a mãe, dependência ambivalente, que são deslocados para todos os outros objetos. O recuo para o mundo interno pode ser uma das tentativas de lidar com essa dependência, ou seja, o afastamento pode ser uma função reguladora que serviria como salvaguarda da identidade: uma forma de proteção contra uma ameaça de invasão do eu e a subseqüente ameaça de desintegração. A conseqüência dessa impossibilidade de obter uma experiência satisfatória precoce na relação sujeito/objeto pode levar o sujeito ao fracasso rumo ao Édipo genitalizado.

Na “patologia narcísica” haveria uma impossibilidade de elaboração satisfatória da etapa do narcisismo que ocupa lugar essencial no processo de separação/individuação da criança pequena em relação ao adulto. Isso é importante no sentido de pensarmos que se nesse confronto com a figura do objeto/mãe totalizante a possibilidade das etapas do auto erotismo e do narcisismo não puderem se instalar, o bebê estaria desamparado para lidar também com sua ausência. E, se tal ausência não puder ser atenuada pelo recurso à satisfação auto erótica, ela será dificilmente suportada. O auto erotismo, conforme salienta Freud, vem em resposta à perda do objeto que antes dava garantias à satisfação, ou seja, é a partir dessa condição que a ausência toma toda a sua dimensão traumática pela impossibilidade do bebê de lidar com as vicissitudes das pulsões, e sua conseqüente fusão.

Portanto, a função materna é a de proteger, mediar, mas também libidinizar o bebê. E se isso falhar o mecanismo de introjeção não poderá se dar ficando o sujeito restrito às condições do processo de incorporação que é mais primário. A introjeção, como mecanismo secundário, facilitaria para o bebê, posteriormente, o enfrentamento de suas necessidades e o exercício de sua autonomia.

Em suma, todas essas questões relacionadas a um investimento materno precário e a conseqüente dificuldade de introjeção da função de pára excitação por parte do bebê, ou por outro lado um investimento materno demasiadamente intrusivo (a mãe dos dois extremos) vai perturbar a constituição da identidade do bebê e todas as vivências a ela relacionadas: percepção, representação e sentimento de corpo próprio. O bebê passa a viver a situação como uma situação de perigo, como colocado por Freud (1926[1925]), perigo de perda do objeto, perigo da castração, perigo da morte. São vivências muito extremas que levam o sujeito a se defender contra elas numa tentativa de se salvaguardar e se diferenciar.

A saída para o impasse da diferenciação se daria na medida em que se instala para o bebê a possibilidade de um olhar para uma outra cena (o quarto momento aludido acima). Freud (1925) observa que na medida em que a libido é deslocada do objeto primordial para outros objetos instala-se um campo de identificação com o objeto original marcado pela ambivalência que é instaurada. O destino do Édipo se dará, segundo ele, conforme o desenlace da relação primeira com a mãe e a entrada do pai configurando a identificação sexual para além da determinação biológica do corpo sexuado. A possibilidade de vivência do Édipo e sua finalização instaurariam novas identificações que iriam orientar a catexia do sujeito para um tipo particular de objeto posteriormente. Mas a duplicidade narcísica pode criar um obstáculo no acesso ao objeto ficando, dessa forma, a catexia inibida no sujeito.

Com o narcisismo a estrutura se desdobra em uma dupla exigência de direções opostas: por um lado, a exigência de ser um, exclusivo, perfeito, mas por outro, trata-se de ser único para um outro, para o objeto, ocupado pela função materna. Ocorre que esse objeto/mãe se divide entre o olhar que dirige para o filho e o olhar que dirige para a cena ocupada pelo pai (ou quem estiver exercendo sua função). O sujeito deseja se reverter a esta cena, deseja estar lá e, ao mesmo tempo, em seu lugar. Esse é um conflito que deverá ser superado pela ascendência ao Édipo. Podemos dizer que a identificação narcísica seria a tentativa de ser um em dois lugares e ao mesmo tempo (o que seria impossível!), enquanto que a identificação edípica seria uma defesa contra esta dublagem.

A função paterna é um operador estruturante essencial para qualquer sujeito. No Édipo a possibilidade de reorientação da libido para catexizar novos objetos se daria na medida da frustração no confronto com o objeto primordial, ou seja, a escolha segundo um modelo paterno seria uma escolha objetal e segundo um modelo narcísico uma escolha narcísica, como espécie de identificação regressiva. A escolha objetal teria como função orientar o desejo no sentido de buscar no objeto/pai o que falta no objeto/mãe e conseqüentemente em si mesmo.

A separação mãe/criança depende de um duplo consentimento, um contrato de duas partes que relaciona o objeto/mãe e a criança com referência a um terceiro em potencial – o objeto/pai – que deve estar presente desde o início na psique da mãe. Esse processo é gradual e se acompanha de fases periódicas de reunião com o objeto e de fases nas quais a criança trata de restabelecer a fusão com o objeto materno. Estabelece-se, assim, em função das frustrações inevitáveis do processo de crescimento, que a criança tolere sentimentos de bem estar ao lado de sentimentos de ira que estão fixados de forma arcaica. Só dessa forma é que ambos, mãe e criança serão separadas gradualmente.

No caso dos estados limites a tentativa de separar falha e, em lugar de se promover a separação entre o eu e o objeto, vai se dar uma clivagem, que no caso resulta em uma exclusão radical. A clivagem nestes casos ressalta Green (2001), produz uma amputação no eu, pois ela não consegue segregar somente as representações pulsionais destrutivas, segrega também partes importantes do eu. No caso da recalcamento, mais característico da neurose, a energia psíquica continua ligada e os nexos permanecem intactos e se recombinam com outras representações ou afetos derivados dele.

 

A CONDIÇÃO PRIMORDIAL DO DESAMPARO E O MECANISMO DA CLIVAGEM NOS CASOS LIMITES

Essa distinção é importante, pois na medida em que avançamos na compreensão dos estados limites nos acercamos ao conceito de desamparo freudiano (Freud, 1926[1925]) relacionados aos primeiros momentos de vida. Pensamos que a condição subjetiva destes sujeitos o aproxima da vivência do desamparo uma vez que a busca de um semelhante está mais motivada pela necessidade de um encontro com um objeto que venha suprir as necessidades mais básicas e prioritárias, do que pela busca de um encontro com o objeto do desejo sexual. Como expressa Mc Dougall (1983) Narciso vai desempenhar um papel mais importante que o Édipo; a sobrevivência ocuparia um lugar mais fundamental no inconsciente que o conflito edípico.

A noção de desamparo em Freud aponta para uma condição que é inerente ao ser humano. Inicialmente Freud configura o desamparo como predominantemente relacionado à fragilidade física e psíquica própria do início da vida. Em 1926 [1925] Freud situa o desamparo em relação à separação do objeto como constituinte da situação de perigo geradora de ansiedade. Ele observa que o registro mnêmico das experiências de insatisfação deixa marcas no sujeito e inaugura o sistema de angústia no aparelho psíquico. Os estados de ansiedade, segundo Freud, são considerados como uma reprodução da condição de separação do nascimento e surgem, originalmente, como uma reação a um estado de perigo e é reproduzida sempre que o estado de perigo tornar a ocorrer.

Freud considera a situação do nascimento como a primeira situação de perigo pela qual o indivíduo passa, mas o perigo mais propício a gerar ansiedade, posteriormente, é o da castração. A situação de perigo que Freud supõe iniciar-se no nascimento reaparece frente a situações nas quais a criança sente que perdeu algo: quando é deixada sozinha pela mãe ou quando sente a dor da fome, sentimentos que são experimentados como uma ameaça à própria existência.

Freud supõe que a experiência de desamparo, oriunda da separação, tende a ser dolorosa porque é precedida da satisfação oceânica do útero materno e está atrelada a incapacidade do indivíduo se prover, de modo autônomo, dos meios para sua sobrevivência, física e mental. Mas o mais importante talvez seja considerar que é a condição de situação de perigo o que constitui a ameaça de separação do objeto e é o que vai lançar o sujeito na situação de desamparo ao longo da vida. Green (1991) ressalta que nos estados em que o sinal de angústia é ultrapassado por uma sobrecarga do psiquismo, ele perde sua função semântica e dispara tarde demais. Não se trata, neste caso, segundo Green, de antecipar o perigo, mas de vivenciar os danos de um cataclisma. O autor observa que diante desse quadro “as transformações do aparelho psíquico dão à angústia de castração a aparência de angústia social que não é mais nada do que angústia frente ao superego” (p. 58).

A noção do estado de desamparo articula-se com a não dimensão do estabelecimento da alteridade e a conseqüência psíquica resultante. A questão do estabelecimento da alteridade, ou seja, o reconhecimento do outro, carrega em si um duplo aspecto: esse outro é o que protege o indivíduo contra o desamparo, mas é igualmente invasor, em função da situação de passividade da criança. Ou seja, o indivíduo estaria à mercê desse outro e, conseqüentemente, diante da constatação de sua fragilidade, vai se posicionar diante de um paradoxo: necessita do outro para sua proteção e, portanto dele não pode se separar, mas, ao mesmo tempo esse outro que o protege pode também ameaçá-lo com sua intrusão. O indivíduo diante disso, poderá vir a fazer uso de mecanismos defensivos arcaicos, principalmente a clivagem, para fazer frente a essa situação.

 

CONCLUSÃO

À guisa de uma conclusão sucinta podemos fazer alusão à algumas reflexões a respeito do tratamento. Acreditamos que no tratamento desses sujeitos nós devemos ter em mente que os sintomas característicos dessas patologias foram gerados anterior à fase edípica e que, desta forma o analista deveria assumir a função de objeto transicional (no sentido winnicottiano) um objeto que sirva para possibilitar relações objetais.

Podemos pensar com Winnicott que se tivermos a oportunidade de oferecer um setting terapêutico que permita estabelecer um ambiente suficientemente bom, sustentador e específico para cada paciente, estaremos criando a possibilidade de emergir um vínculo de presença e de disponibilidade necessários e, conseqüentemente de esperança. A técnica winnicottiana que se constitui em outorgar lugar ao enquadre, recomenda a aceitação de estados informais e a atitude não intrusiva, procurando suprir verbalmente as carências dos cuidados maternos para assistir a emergência de uma relação com o eu e com o objeto até o momento em que o analista possa converter-se em objeto transicional e o espaço em espaço potencial de área de jogo e área de ilusão. De acordo com Winnicott a análise talvez não seja outra coisa que a capacidade do paciente de estar só, mas na solidão povoada pelo jogo1.

Green (2001) atesta ainda que no caso desses pacientes é cada vez maior o número de analistas que tendem a reintroduzir a presença potencial do objeto/pai, não por referência explícita a ele, senão pela simples introdução de um elemento terceiro nesta dualidade comunicativa que se constitui a experiência analítica.

No caso do paciente borderline pensamos que se acrescenta algo ao processo analítico ao se sugerir o estabelecimento de um espaço entre analista e analisando que sirva à criação; um espaço de reserva potencial que talvez seja um algo a mais na condução da análise de tais pacientes, pois criaria a condição para o surgimento das condições básicas de manutenção do processo analítico. Desta forma podemos pensar que todas as variáveis do setting analítico serão consideradas a favor da análise se estiverem comprometidas com a criação e a conservação destas reservas.

Refletindo sobre essa questão pensamos que no sujeito borderline o que seria vital no caminho em direção a independência (no sentido da não dependência) não seria uma continuação da experiência de onipotência, mas o restabelecimento da capacidade criativa, pois acreditamos como Winnicott que, em contraste com o reconhecimento de um mundo que é percebido apenas como algo que exige adaptação, deveríamos definir a experiência criativa como uma sensação de que “a vida é digna de ser vivida” (1975, p. 95).

 

REFERÊNCIAS

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Winnicott, D. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda.

 

NOTAS

(*)  Doutora, Pesquisadora Associada da Universidade de Brasília, SHIS QL 08, conjunto 09, casa 13, Brasília DF, Brasil; Tel.: 55615773272/ 99895103; E-mail: elianarl@terra.com.br

(**) Doutora, Professora Associada do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília, Pesquisadora bolsista do CNPq, SQN 208, Bloco B, apto. 603, 70853-020 Brasília DF, Brasil; Tel.: 55613475484/ 556181984205; E-mail: tcviana@unb.br.

1 No artigo A capacidade de estar só (1958) Winnicott observa que “Embora muitos tipos de experiência levem à formação da capacidade de ficar só, há um que é básico, e sem o qual a capacidade de ficar só não surge; essa é a experiência de ficar só como lactente ou criança pequena na presença da mãe. Portanto é um paradoxo: capacidade de ficar só na presença de alguém. [...] ficar só nesses termos é quase sinônimo de maturidade emocional. [...] estar só na presença de alguém pode ocorrer num estágio bem precoce, quando a imaturidade do ego é naturalmente compensada pelo apoio do ego da mãe. À medida que o tempo passa o indivíduo introjeta o eu auxiliar da mãe e dessa maneira se torna capaz de ficar só sem apoio freqüente da mãe ou de um símbolo da mãe. ‘Estar só’ é uma decorrência do ‘eu sou’, dependente da percepção da criança da existência contínua de uma mãe disponível cuja consistência torna possível para a criança estar só e ter prazer em estar só, por períodos limitados” (1958, pp. 33-34). Em Winnicott, O ambiente e os processos de maturação, 1983.

 

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