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Revista Portuguesa de Saúde Pública

versão impressa ISSN 0870-9025

Rev. Port. Sau. Pub. vol.30 no.2 Lisboa jul. 2012

 

EDITORIAL

A(s) crise(s) e a(s) resposta(s) da saúde pública

Crisis (s) and answer (s) of public health

 

Maria Isabel Loureiroa,b, Luís Graçaa,*

aGrupo de Disciplinas de Ciências Sociais em Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, Portugal

bGrupo de Disciplinas de Estratégias de Ação em Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, Portugal

 

«O que podem os cientistas fazer para ajudar a proteger a saúde pública em tempos de crise económica?» — perguntavam, em maio de 2010, três reputados homens das ciências da saúde, David Stuckler, Sanjay e Martin McKee. A resposta só podia ser esta: «They should promote an evidence-based approach to economic and public health recovery, analysing past successes and failures. This will lead to a better understanding of why some people, households, communities and societies are resilient to external shocks» (Nature, 465, 20 May 2010, p. 289).

Sim, podemos (e devemos) aprender com os erros e os sucessos do passado. Todavia, há que ter em conta que os contextos da(s) crise(s) são muito diversos, das pandemias de gripe (1918/19, 1957/58, etc.) às crises económicas. Um dos aspetos mais dramáticos que está a assumir a atual crise (e as atuais políticas económicas baseadas na austeridade fiscal e nos cortes orçamentais) é o desemprego, o desemprego de longa duração, o desemprego dos jovens, o empobrecimento. Os mais cínicos (ou realistas) dirão que a crise – e a violência, com toda a carga material, simbólica e cultural que ela contém –, é o «parteiro da história». Que são as crises, os conflitos, que geram «inovação e mudança». Que as sociedades (e não apenas o mercado) têm mecanismos de autorregulação. Vistas da perspetiva da saúde pública, as crises são também verdadeiras «caixas de Pandora», metaforicamente falando. E, claro, podemos responder a elas com «inteligência social» ou podemos deixar que a «natureza siga o seu curso», esperando, no caso da economia, o regresso ao business as usual.

O desemprego, dizem-nos, está inscrito na matriz original do sistema económico (cujo pensamento dominante pressupõe, de resto, o consumo infinito de recursos finitos, a começar pelos produtores). As estatísticas deveriam falar por si só, mas a verdade é que escondem o drama, as vivências e a angústia de milhares e milhares de indivíduos, famílias e comunidades. Em termos de saúde individual (e familiar), as implicações do desemprego serão mais sérias no caso dos trabalhadores idosos, dos jovens trabalhadores precários, dos trabalhadores pouco ou nada qualificados, que foram, logo nos anos 80/90, as primeiras vítimas do downsizing e da reengenharia, dois eufemismos para designar os processos de reestruturação do tecido produtivo, numa altura em que se falava já das maravilhas e das perplexidades do «novo mundo», aberto pela «terceira vaga», a sociedade pós-industrial, pós-moderna, etc.

Seria, contudo, abusivo falarmos em termos de generalidade: a experiência do desemprego – um exemplo entre outros das consequências da crise –, não é vivida da mesma maneira por todos os indivíduos. Há uma multiplicidade de fatores (individuais, organizacionais e societais) a ter em conta, incluindo as redes de suporte social. E é aqui que entra o papel do Estado, em assegurar o acesso de todos à educação e à saúde, à proteção social, em criar incentivos e apoio ao empreendedorismo, etc., papel esse que não pode ser posto em causa pela crise económica e financeira, com o risco do agravamento das condições sociais, numa espiral descendente, com desrespeito pelos direitos humanos e pelo investimento que os cidadãos fazem na «res publica», o Estado que é pressuposto estar ao serviço de todos nós.

E o que pode, afinal, a saúde pública fazer hoje, aqui e agora? Um dos desafios que nós temos, face às profundas mudanças que se estão operar, nas nossas sociedades, a todos os níveis (sociodemográficas, económicas, organizacionais, tecnológicas, culturais, etc.), tem a ver com a valorização estratégica dos nossos recursos humanos, valorização essa que não passa só pela fileira da educação, formação e qualificação, mas também pela proteção e promoção da saúde.

A saúde pública pode e deve: (I) defender e melhorar o Serviço Nacional de Saúde; (II) defender uma abordagem de «saúde em todas as políticas»; (III) pôr na agenda o tema da cidadania em saúde; (IV) investir em literacia em saúde; (V) valorizar e incentivar a participação dos cidadãos nas políticas e serviços de saúde; (VI) identificar e divulgar exemplos de boas práticas de resposta (social e inteligente) aos riscos para a saúde em tempo(s) de crise(s); (VII) promover as sinergias que resultam de diferentes parcerias; (VIII) reforçar o trabalho em rede; (IX) valorizar e incrementar a articulação entre o poder local, a ação social, a saúde, a educação e a sociedade civil; (X) contribuir para a definição de critérios válidos e fiáveis para a avaliação do desempenho do sistema de saúde; (XI) pensar globalmente e saber (re)agir localmente e, sobretudo, pensar bem e (re)agir melhor; (XII) monitorizar o impacto da(s) crise(s) nos grupos mais vulneráveis da população e levar a cabo ações para proteger e promover a sua saúde; (XIII) alertar os diferentes «stakeholders» para a necessidade de reforçar e dar prioridade à segurança alimentar, numa luta contra a fome e a malnutrição, incluindo a obesidade; (XIV) reforçar a capacidade das equipas e dos profissionais de saúde para ajudar a lidar com a perda, o luto, a dor, o sofrimento psíquico; (XV) detetar precocemente sinais de alteração da saúde das pessoas e, em particular, da saúde mental, e ter programas ativos e eficazes de prevenção neste domínio; e, (XVI) nunca esquecer que a saúde é determinada, e em muito, fora dos serviços de saúde, e que, por fim, e não menos importante, (XVII) proteger e promover a saúde requer investimentos no e do complexo sistema socioecológico onde os seres humanos nascem, respiram, vivem, pensam, crescem, se formam, se divertem, estudam, trabalham, produzem, consomem, adoecem, envelhecem e morrem.

À saúde pública cabe, em última análise, a tarefa nobre, mas extremamente complexa e exigente, de manter em bom nível de articulação e coerência o binómio saúde-esperança. Porque, e parafraseando um provérbio árabe, «quem tem saúde tem esperança; e quem tem esperança, tem tudo».

 

*Autor para Correspondência: luis.graca@ensp.unl.pt