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Revista Portuguesa de Saúde Pública

versión impresa ISSN 0870-9025

Rev. Port. Sau. Pub. vol.34 no.2 Lisboa jun. 2016

https://doi.org/10.1016/j.rpsp.2016.06.003 

EDITORIAL

 

No centenário do nascimento de um pioneiro e de um líder, a quem a nossa saúde pública muito deve: Coriolano Ferreira (1916‐1996)

Coriolano Ferreira (1916‐1996): The centenary of the birth of a public health pioneer and leader

 

Luís Graça

Departamento de Ciências Sociais em Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública, Universidade NOVA de Lisboa, Lisboa, Portugal E-mail: luis.graca@ensp.unl.pt

 

Não há homens providenciais, pelo menos para quem faz ciência. Pode havê‐los aos olhos de quem tem fé. Para o historiador, há apenas o homem certo no lugar certo ou no tempo certo. Nem sequer o homem justo, apenas o homem «just in time». Coriolano Ferreira pode ter sido, na história da saúde e da educação em saúde, em Portugal, um desses homens. O pioneiro e o líder, o que etimologicamente quer dizer o que vai à frente, mostrando o caminho. O país, o Serviço Nacional de Saúde, a Escola Nacional de Saúde Pública, a universidade, devem‐lhe muito. No mínimo, merece ser relembrado aqui, no primeiro centenário do seu nascimento.

O que é que ele fez de extraordinário para ser colocado num patamar acima dos seus pares, seus contemporâneos? Fundou, por exemplo, esta revista, a «Revista Portuguesa de Saúde Pública», em 1983. Como tinha fundado, dirigido e editado, praticamente sozinho, os «Hospitais Portugueses», no pós‐guerra, em 1948, uma revista de divulgação, ímpar no seu género, dedicada à atividade e à administração dos hospitais, numa época em que a simples ideia de formação específica e profissionalização desta função era completamente estranha à ideologia corporativo‐caritativa dominante na nossa incipiente rede de estabelecimentos de saúde.

Foi presidente da comissão instaladora e, depois, o primeiro diretor da Escola Nacional de Saúde Pública do pós‐25 de abril (1976‐1986), elevando‐a um alto patamar de qualidade e de prestígio, a nível nacional e internacional. Foi governante, em 3 governos constitucionais, entre 1978‐1980, na qualidade de secretário de estado da Segurança Social, um domínio aparentemente minor aos olhos daqueles que o admiram. Enfim, foi sobretudo o homem que ajudou a criar uma cultura de gestão no nosso sistema de saúde e que tinha a rara qualidade (nos líderes) de saber descobrir e saber desenvolver talentos. Para ele, a liderança nunca era um fim em si mesma; por outro lado, foi um notável exemplo de dedicação à «res publica», sabendo servir o país, independentemente das elites, dos regimes e dos governos.

Foi verdadeiramente o primeiro administrador hospitalar ou o primeiro titular de um cargo de administrador num hospital central (em 1950, nos Hospitais da Universidade de Coimbra), esteve cumulativamente na comissão instaladora do Hospital Escolar de São João (Porto) (nomeado em 1954, em representação do Ministério do Interior), foi o primeiro administrador do hospital escolar de Santa Maria (Lisboa) (1956‐1961), foi o primeiro diretor‐geral dos hospitais (em 1961), e nessa qualidade o primeiro presidente da comissão de construções hospitalares, da comissão de reapetrechamento dos hospitais, da comissão de recurso dos novos medicamentos (Conselho Superior de Higiene e Assistência Social), das comissões inter‐hospitalares de Lisboa e de Porto… Foi o primeiro secretário‐geral do Ministério da Saúde e Assistência (1972‐1982) … Last but not the least, foi a «alma mater» do curso de administração hospitalar, cuja primeira edição remonta a 1970, ao tempo da Escola Nacional de Saúde Pública e de Medicina Tropical (1967‐1972), e que ao fim de quase meio século já formou largas centenas de administradores hospitalares, uma profissão reconhecida desde 1968 e que tem uma associação, a Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares (APAH) e uma revista, «Gestão Hospitalar».

O pioneirismo do professor Coriolano Ferreira não se esgota nestas atividades curriculares, em que deu sobejas provas do seu génio organizativo, liderança e capacidade de trabalho em equipa: terá sido também o primeiro noutras áreas, como o direito da saúde, cujo gabinete criou e dirigiu ainda antes de se jubilar, como professor catedrático da Escola Nacional de Saúde Pública (em 1986).

Nada disto acontece por caso. Há um tempo e um espaço de maturação do pensamento e da ação dos homens e do desenvolvimento das organizações e instituições. Há facetas de Coriolano Ferreira que ainda são pouco conhecidas ou valorizadas, para além da de gestor e de professor. Por exemplo, o legislador, o descobridor e animador de talentos, o pedagogo, o divulgador, o gestor da informação e conhecimento, o hábil negociador, o construtor de consensos, etc. O estatuto hospitalar de 1968 e o regulamento geral dos hospitais são considerados, ainda hoje, marcos de referência da nossa legislação de saúde, para não falar também do trabalho seminal que realizou na segurança social, de que foi igualmente em Portugal um dos primeiros estudiosos e teorizadores.

Não lhe foi feita, em vida e na devida altura, a homenagem que merecia, com os testemunhos dos seus colaboradores, discípulos e amigos. A Revista Portuguesa de Saúde Pública dedicou‐lhe um número duplo (n.° 1 e 2, jan‐jun 1986, 176 pp.); mas é um número essencialmente antológico. Há muitas lacunas no conhecimento do homem, do português, do cidadão, do administrador hospitalar, do professor, do gestor académico, do jurista, do dirigente e membro sempre proactivo da Federação Internacional dos Hospitais e outras associações congéneres.

Coriolano Albino Ferreira nasceu há 100 anos, em 12 de maio de 1916, em Trás‐os‐Montes (no lugar de Valpereiro, concelho de Alfândega da Fé). Aos 17 anos conclui o liceu, secção de letras, em Bragança. Em 1939 é licenciado em Ciências Político‐Jurídicas pela Universidade de Coimbra e no ano seguinte conclui a licenciatura em Ciências Político‐Económicas. Desde cedo concilia o gosto pelo ensino, em colégios privados, com o exercício da advocacia. Mas descobriu a segurança social primeiro que a saúde, ou melhor, «esse mundo fascinante e absorvente» que eram, para ele, os hospitais, a paixão da sua vida. Contrariamente ao mito que se criou, de que a gestão vinha retirar protagonismo aos médicos e demais prestadores de cuidados de saúde diretos, Coriolano sempre soube qual era o seu papel e os seus aliados (a tutela, os profissionais, incluindo os enfermeiros, os doentes/utentes, a comunidade, o país).

Por último, é sabido, de poucos, o seu papel (histórico) na génese (e até no desenvolvimento) da Escola Nacional de Saúde Pública. Em 26 de janeiro de 1961, na véspera do início da guerra colonial que iria marcar profundamente a sociedade portuguesa dos anos 60/70, e ditar inexoravelmente o fim do Estado Novo, dá entrada na Câmara Corporativa, para apreciação, o projeto de proposta de lei n.° 517/VII, visando a criação da «Escola Nacional de Saúde Pública» (sic). O projeto de diploma é assinado pelo ministro de Saúde e Assistência, Henrique de Miranda Vasconcelos Martins de Carvalho (1919‐1994), com data de 26/12/1960. Coriolano Ferreira é um dos 4 nomes que integra a comissão técnico‐jurídica que redige o diploma. A proposta, arrojada para a época, seguindo o modelo defendido pela OMS, passa na Câmara Corporativa, com votos favoráveis dos procuradores. Entretanto, em 23/1/1963, 2 anos passados sobre a submissão do projeto de diploma, o presidente da Assembleia Nacional manda ler, antes da ordem do dia, um ofício do Presidente do Conselho, António de Oliveira Salazar, «em face do qual foi retirada a proposta de lei sobre a criação da Escola Nacional de Saúde Pública». Assim, sem mais explicações, a não ser a de que o Governo ia reconsiderar o «problema»… Já noutra legislatura (IX) (1965‐1969), o Governo acabou por optar por uma solução de recurso e que se irá revelar inconsistente: o «casamento de conveniência», efetivado em 1/1/1967, entre a saúde pública e a medicina tropical, com uma dupla tutela, a da Saúde e Assistência e a do Ultramar, que só a conjuntura política, interna e externa, a par da crónica falta de dinheiro, podia justificar.