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Arquivos de Medicina

versão On-line ISSN 2183-2447

Arq Med v.19 n.1-2 Porto jan. 2005

 

Poderá o Efeito Terapêutico da Oração ser Avaliado Científicamente?

 

Serafim Guimarães

 

Professor Catedrático Emérito da Faculdade de Medicina do Porto

 

Hoje avalia-se tudo, mede-se tudo. mas, às vezes, sem régua apropriada.

Em Biologia e em Medicina surge, frequentemente, a necessidade de quantificar efeitos, quase sempre com o fim de os comparar. Mas, para se poder comparar resultados é indispensável, primeiro, que eles tenham sido obtidos de forma correcta e, segundo, que sejam comparáveis!

A variabilidade das respostas biológicas, a irrepetibilidade das condições experimentais, a interferência de factores imprevisíveis, obrigam não só a um enorme rigor na execução das experiências, mas também à sua paciente repetição até que os resultados atinjam um significado que não deixe dúvidas. Não vai muito longe o tempo em que para tirar conclusões bastava uma experiência que convencesse quem a fizesse, em que as comparações eram feitas “a ôlho” e as “ impressões” funcionavam como o mais seguro dos métodos estatísticos. E até as boas revistas aceitavam estes trabalhos, desde que eles fossem assinados por autores com créditos firmados!

A maior atenção que a ciência tem vindo a merecer por parte dos diferentes públicos, a maior consciência da necessidade de ser rigoroso, a maior competição entre os cientistas pela obtenção de fundos elevou muito o nível de exigência que hoje se coloca a quem investiga e publica. Há quem pense, mesmo, que esse nível de exigência é, em alguns aspectos exagerado e poderá ser, em parte responsável por certos desvios de conduta, talvez mais frequentes hoje do que no passado. É certo que o número de investigadores cresceu exponencialmente nos últimos anos e que as notícias correm mundo com uma celeridade e uma difusibilidade quase inacreditáveis, levando a toda a parte e mais depessa a notícia desses desmandos de comportamento, mas também não é de excluir que, por força da necessidade de mostrar serviço, se tenha gerado uma certa quebra no grau de honestidade de quem investiga.

Por outro lado, quando está em jogo comparar duas grandezas ou dois efeitos, a comparação só poderá ser feita quando for idêntica a natureza daquilo que se compara e quando tiverem sido excluídos os factores exógenos que podem interferir na avaliação que se vai fazer.

Em suma, executar com rigor e avaliar com ética são exigências básicas para que um resultado possa ser validado e assim constituir um passo em frente no domínio do conhecimento ou fornecer uma conclusão segura que permita escolher entre alternativas.

Quando o que se pretende é determinar ou comparar a acção de agentes terapêuticos, os cuidados terão de ser redobrados, primeiro porque, qualquer incorrecção que se cometa pode ter consequências imprevisíveis sobre esse bem inestimável que é a saúde, segundo, porque está em jogo uma matéria propícia à intervenção de interesses poderosos que podem modificar a essência do estudo, quer aligeirando procedimentos, quer silenciando interferências que não convenham e possam perturbar conclusões pré-estabelecidas.

Há que ter consciência de que, neste tipo de pesquiza podem intervir factores controláveis uns, incontroláveis outros, capazes de distorcer os resultados, mesmo que não haja interesses em jogo da parte de quem patrocina, gere ou realiza a investigação: a fragilidade de quem depende, a expectativa de quem aguarda, a superstição de quem imagina criam uma pré-disposição psicológica que, favorecendo manipulações maldosas ou criando realidades falsas, podem contribuir para fazer vingar conclusões erradas.

É por isso que é necessário evitar, tanto quanto possível, esse fenómeno que tantas vezes dá cobertura ao embuste criado pela mente, a que se chama efeito placebo.

Há, assim, a necessidade de acompanhar , com o maior cuidado possível, a determinação do coeficiente eficácia/ risco dos medicamentos. Por extensão, tem-se feito ou desejado fazer idêntica verificação da eficácia de outros meios terapêuticos não medicamentosos tendo havido, até, quem tenha tentado avaliar o efeito da oração na evolução das doenças.

No universo das ciências, a Farmacologia surgiu no fim do século XIX, como uma extensão da Fisiologia e, por isso, os métodos de estudo que adoptou na sua marcha investigacional foram, durante muitos anos, os da ciência-mãe de que proveio. Só recentemente, com o alargamento das fronteiras do conhecimento próprio e por força da diversificação dos seus objectivos, foi necessário criar novas metodologias de estudo que, específicas a princípio foram, depois, partilhadas ou aproveitadas por outras ciências. A técnica de marcação de receptores com radioligandos e a técnica de validação do efeito terapêutico dos medicamentos são invenção e património da Farmacologia. Na breve reflexão que desejo fazer interessa considerar a segunda dessas técnicas de estudo, isto é, a técnica dos ensaios clínicos nas suas diferentes modalidades (ensaio simples, ensaio ocultado e ensaio duplamente ocultado) e estabelecer, para cada uma delas, os limites da sua aplicabilidade, tendo em mente que nem tudo que é possível é legítimo, nem tudo que é legítimo é lógico, nem tudo que é lógico é possível! Aplicado a um medicamento para lhe avaliar a eficácia, o ensaio simples, que consiste em verificar de forma aberta, portanto com conhecimento de todos os intervenientes do que se vai passar, serve para pouco e só tem sentido em situações raras e com um raríssimo número de medicamentos. O ensaio ocultado, que consiste em esconder a natureza do medicamento que se vai ministrar a quem o vai receber, sendo embora um método relativamente inseguro, porque não permite excluir a influência, ainda que não intencional, de quem o ministra pode, mais do que o anterior, servir de teste em determinadas circunstâncias; e o ensaio duplamente ocultado que, não garantindo uma segurança absoluta, uma eliminação total das influências estranhas potencialmente actuantes, é aquele que oferece maior grau de fiabilidade, porque permite esconder a natureza do medicamento a quem o recebe e a quem o ministra. Por tudo isto, é esta terceira modalidade aquela que o rigor científico exige e que, portanto, os cientistas elegeram para validar os resultados dos estudos que realizam. Contudo, apesar da blindagem que oferece quanto à interferência de factores exógenos potencialmente perturbadores da validade das conclusões, este método não permite testar a acção de todo e qualquer agente terapêutico. A sua aplicabilidade é necessariamnete condicionada pela natureza desse agente. Assim e tendo em mente o tipo de agente terapêutico a testar e a circunstância da sua utilização, podemos considerar três situações ou três graus de exequibilidade: 1) exequibilidade teórica e prática; 2) exequibilidade teórica e inexequibilidade prática, 3) inexequibilidade teórica e prática.

Quando está em jogo o estudo da acção terapêutica de um medicamento para lhe determinar o coeficiente eficácia/risco, esse é um objectivo que pode ser, deve ser, e é reconhecidamente atingível. E hoje ninguém admite que haja um medicamento que não tenha passado por essa pesagem cega, por esse crivo discriminador. Os raros produtos medicamentosos que por aí andam sem ter sido objecto desse julgamento imparcial têm os dias contados.

Noutros casos a utilização do método é teoricamente possível, mas praticamente irrealizável. Quem é que não gostaria de ver demonstrada, com a força da irrefutabilidade científica, a acção das águas mineromedicinais, nas diferentes patologias para que, há séculos, vêm sendo empiricamente recomendadas? Contudo, essa tarefa racionalmente coerente e baseada numa metodologia lógica na sua concepção é, praticamente, impossível. Às dificuldades que têm de ser ultrapassadas para levar a bom termo um estudo desta natureza, no caso de um medicamento, como coleccionar dois grupos de doentes numericamente representativos, com as mesmas patologias e com um grau semelhante de gravidade, do mesmo sexo, com pesos semelhantes, as mesmas idades, etc., seria necessário submeter esses doentes a um regime de internamento que desse a garantia de disciplina durante todo o decurso do estudo. Seria indispensável uma equipa de médicos, enfermeiros e outros auxiliares dos serviços de saúde capazes do desempenho requerido. Mas, mais do que isso, e dado que as águas minero-medicinais só são detentoras de todas as suas qualidades terapêuticas à saida da fonte o contacto com a atmosfera introduz-lhes alterações mais ou menos profundas consoante o seu tipo químico e, por isso, se diz que as águas minero-medicinais começem a morrer logo que brotam da fonte -, seria indispensável criar qualquer coisa como um hospital bem apetrechado na estância termal onde se desejasse fazer esse tipo de estudo. Contudo, no fim do ensaio e qualquer que fosse o resultado obtido, ele nunca seria generalizável a todas as águas minero-medicinais. Assim como é necessário fazer a demonstração de eficácia relativamente a cada medicamanto seria, também, necessário fazer essa demonstração para cada uma das diferentes águas minero-medicinais, porque cada uma delas só se representa a si própria - há águas mineromedicinais de um mesmo tipo químico, mas não há duas águas minero-medicinais iguais! Assim, este estudo quase impossível de ser posto em prática, só seria válido para uma única estância termal, aquela onde foi realizado! Seria, pois, necessário repetir tudo o que acima se disse relativamente à selecção dos doentes e, mais ainda, construir, em cada uma das estâncias, um hospital termal que reunisse todas as condições necessárias à validade do estudo, de modo a que todas as exigências metodológicas pudessem ser inequivocamente satisfeitas.

Teoricamente possível, praticamente irrealizável!

A trerceira situação é praticamente impossível porque é teoricamente absurda.

Tem havido algumas tentativas para estudar o efeito da oração na cura ou nas melhoras de quem sofre. Num excelente artigo publicado na revista Brotéria, o Prof. João Lobo Antunes refere várias tentativas de estudo sobre o efeito curativo da oração e nomeia dois deles em que os autores investigaram, de forma mais ou menos controlada, o efeito da oração na evolução de doenças chegando a conclusões antagónicas. Num deles demonstrou-se uma correlação positiva entre oração e uma evolução clínica favorável e no outro chegou-se à conclusão contrária: a evolução das doenças não foi significativamente diferente nos dois grupos.

Não sei se nesses estudos a técnica usada foi correcta. Não é difícil admitir que tenha sido e, aparentemente, do ponto de vista técnico não parece haver razões conceptuais que o entravem.

Aparentemente a técnica da ocultação poderia ser adoptada e os cuidados a ter seriam os exigidos para o estudo do efeito de qualquer medicamento. Doentes com patologias semelhantes e equiparados, também, nas outras condições, seriam divididos em dois grupos, tanto quanto possível, semelhantes. Metade desses doentes constituiria um grupo”protegido”, isto é um grupo por quem familiares, amigos e eles próprios fariam as suas preces e a outra metade seria constituida por doentes sem Fé e que, portanto, nem por si mesmos nem por qualquer interferência vinda de fora, iriam beneficiar de qualquer apoio sobrenatural.

Ora é aqui que surge o obstáculo intransponível. Primeiro, porque o valor desta ou daquela oração é indeterminável. Nunca ninguém saberá quanto vale esta ou aquela oração. É do Evangelho: “ Nem todo aquele que diz Senhor, Senhor, entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus” (Mt. 7, 21) É o mesmo que, de modo claríssimo, se repete na parábola do fariseu e do publicano (Luc, 18; 9) que é, dolorosamente explícita relativamente a este aspecto : “Subiram dois homens ao templo para orar: um era fariseu , o outro publicano; ambos foram fazer as suas preces, cada um à sua maneira. Contudo, o publicano saiu justificado e o fariseu não. Segundo, porque s e admitimos o valor da oração, como é que podemos excluir o “apoio” dado pelas incontáveis orações que a todo o momento são lançadas no incomensurável pool onde vão parar as preces de quem reza pelos mais abandonados, desse pool onde, provavelmente, vão cair as orações mais valiosas por serem esponâneas, anónimas, liberais, aquelas que, aos nossos olhos, parecem poder reflectir a mais pura, autêntica e heróica generosidade? Como controlar ou pesar essas influências?

Como é sabido em todas as igrejas de todas as religiões muitos crentes individualmente e muitas comunidades em conjunto oram pelos mais abandonados, por quem não têm quem interceda por eles. Ora este capital de oração que os milhões de crentes vão acrescentando em todas as horas de todos os dias, vai interferir de forma incontrolável nesse estudo comparativo, anulando qualquer veleidade de rigor e retirando todo o valor estatístico ao estudo por mais teoricamente independente e cientificamente organizado.

A oração de uma só pessoa que ore bem pode ser mais válida do que a de muitas que orem mal!

Além disso, estará alguém à espera de um resultado positivo num ensaio de dupla ocultação para alcançar a Fé? Quantos cientistas encontraram a Fé na senda das suas descobertas? O que é que um hipotético resultado estatisticamante significativo a favor de uma influência favorável acrescentaria a tantos e eloquentes testemunhos relatados nos Evangelhos e a tantos sinais que a vida todos os dias mostra a quem andar atento?

Em Julho de 1903, no mesmo comboio, rumo a Lourdes seguiam dois descrentes: Émile Zola, escritor e Alex Carrel, médico que acompanhava Marie Ferrand uma jovem francesa, minada por uma peritonite tuberculosa em estado terminal e que se dirigia àquele Santuário, agarrada à última esperança - a de um milagre! Ao inteirar-se da situação e vendo com os seus olhos de leigo o estado da doente, que a morte ameaçava vencer a qualquer momento, Zola exclamou para o seu amigo, com uma adesão aparentemente total e comprometida da inteligência -Se esta doente se curar, eu acreditarei. Em Lourdes, do banho onde entrou moribunda Marie Ferrand saiu curada. Nem Alex Carrel nem Émile Zola entenderam o fenómeno, mas enquanto que Carrel, que não tinha feito qualquer “jura” se converteu, Zola, que tinha “apostado”, permaneceu descrente.

A Fé não depende de modas, não provém de um capricho, nem sai na lotaria. A Fé tem pouco a ver com o saber, com a inteligência, com a cultura e também não se resolve com uma aposta! Tem a ver, sobretudo, com o propósito sincero de a alcançar e com o criar as condições para que ela surja e se conserve. Ser humilde é a porta de entrada, amar é a condição para que permaneça.

 

REFERÊNCIAS

Antunes JL. Ciência e fé. Brotéria 2001;152:331-48        [ Links ]

Carrel A. Milagres de Lourdes. Editora Educação Nacional, Porto;1958.

 

CORRESPONDÊNCIA:

Prof. Serafim Guimarães

Instituto de Farmacologia e Terapêutica

Faculdade de Medicina do Porto

4200-319 Porto

e-mail: sguimara@med.up.pt

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