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Arquivos de Medicina

versão On-line ISSN 2183-2447

Arq Med v.19 n.4 Porto jul. 2005

 

Centros Universitários de Saúde

Manuel Cardoso de Oliveira

Faculdade de Medicina da Universidade do Porto; Serviço de Cirurgia B, Hospital de São João, Porto

Em 1989, a propósito da reestruturação do Serviço de Urgência do Hospital S. João, de que fui encarregado, eu escrevia que repensar o Serviço de Urgência significava mexer em toda a vida do Hospital, sendo este uma estrutura em permanente evolução. Referi-me também a outros conceitos: revisão do funcionamento global do Hospital, articulação com os Cuidados Primários e outros Hospitais, insuficiência de instalações, necessidade de obras, carências de equipamento, quadro próprio para o serviço de Urgência, menos e melhores camas, e expansão do intensivismo. De então para cá nunca deixei de intervir publica e institucionalmente sobre os mais diversos aspectos da vida do Hospital S. João e da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Foi, pois, com uma grande satisfação que verifiquei que algumas das minhas “velhas” preocupações eram também das actuais autoridades hospitalares do Hospital S. João.

Na Grã-Bretanha, Dainton, em 1981, definiu a interface entre o Sistema de Saúde e as Universidades como “o lugar onde o presente encontra o futuro nos cuidados de saúde”. Actualmente poucas Universidades apostam na investigação clínica, e os Hospitais Universitários são cada vez mais hospitais assistenciais, com regras rígidas e pressões de natureza economicista, prejudicando as ideias e a investigação. No entanto, para preparar líderes, transferir conhecimentos, fomentar a investigação fundamental, melhorar a qualidade da assistência, preparar profissionais (médicos, especialistas, enfermeiros e técnicos auxiliares) para o sistema nacional de saúde e a reflexão interdisciplinar fundamental, é indispensável uma profunda interligação entre a clínica e a investigação. As autoridades envolvidas parecem, por vezes, querer resolver com palavras aquilo que é uma questão cultural de imensas implicações e susceptibilidades. Uma premissa fundamental deste problema é afirmar que se quisermos ser inteligentes, não há qualquer antagonismo entre a Educação e a Saúde, bem pelo contrário. Aceite esta premissa, o que vier a seguir tem de a respeitar totalmente. Junta-se, assim, a um problema cultural, um problema de inteligência. Com raras excepções, o desrespeito por estes pontos de vista tem acontecido por todo o mundo, pelo que o problema não é exclusivamente nacional. No entanto os portugueses parecem chegar sempre tarde às questões estruturantes, pelo que a nossa linha de base não está acautelada.

Perante o volume e a complexidade desta matéria, julgo pertinentes algumas questões. Torna-se indispensável saber o que é hoje um Hospital Universitário, aquilo que lhe confere características distintas, sendo também necessário reconhecer o que se espera de um Hospital Universitário a curto e a médio prazo. Estas questões já afloraram à mente de muitos responsáveis e as respostas não têm sido fáceis nem lineares. Significa isto que não façamos qualquer esforço no sentido de nos comprometermos com uma alteração substancial à situação que vivemos? Claro que não. Deve ser criada uma dinâmica funcionante entre assistência, investigação e ensino. Mais do que definições institucionais necessitamos de propósitos, iniciativas e exemplos. Temos de criar um ambiente institucional e político que dê garantias para que possamos evoluir definitivamente para um rumo certo. E temos de ser avaliados. Não podemos mais andar a fazer de conta, de costas viradas uns para os outros. Este ênfase na colaboração e o combate à política de fragmentação que nos atormenta exige líderes esclarecidos, exemplares e respeitados, sem os quais as diversas tensões culturais não serão resolvidas. É ingénuo acreditar que uma solução abrangente e satisfatória possa ser conseguida com a manutenção da actual estruturação das nossas instituições, não podendo nós continuar a gerir contradições. Não há soluções mágicas, mas há soluções. Assim o país prefira uma política de verdade e haja autoridade e transparência suficientes para a implementar. Se assim não for, continuaremos a iludir o sistema até que, quando não houver mais por onde fugir, outros farão, tarde, aquilo que nós não fomos capazes de fazer em melhor altura. À boa maneira portuguesa.

A fragmentação das nossas actividades tem de ser combatida, com a certeza de que se formos capazes de caminhar no sentido certo, ficaremos mais fortes e os doentes serão mais bem tratados, os alunos mais bem formados e as instituições mais prestigiadas. Não há visão central de uma missão integrada e, por isso, os diversos poderes políticos nunca puderam nem poderão resolver esta questão se não se alterar completamente o que vem sendo praticado. Nós não podemos andar nos bastidores das nossas instituições pensando ingenuamente que finalmente os Ministérios envolvidos encontraram a política certa. Podem as autoridades de Saúde mostrar a melhor das boas vontades no sentido de respeitar o tal estatuto especial para os Hospitais Universitários, mas enquanto as regras de jogo não forem outras, nenhum passo significativo será dado. Quanto às autoridades da Educação, eu fico pasmado com a bonomia com que vão permitindo que as coisas se desenrolem e com a inacreditável política de admitir mais alunos nas actuais Faculdades de Medicina. É preciso dizer que as condições pedagógicas mínimas para ensinar alunos no ciclo clínico foram já largamente ultrapassadas, e há vários anos. É necessário proceder atempada e seguramente à afiliação de hospitais e centros de saúde que possam colaborar no ensino médico com garantias pedagógicas adequadas. Somos assim conduzidos à necessidade da criação de Centros Universitários de Saúde, concepção entre nós razoavelmente nova, mas já testada noutras paragens. Estas interrelações entre a Saúde e a Educação são muito complexas e susceptíveis e não devem por isso ser alteradas bruscamente. Simplesmente isso não pode ser razão para sucessivos adiamentos no encarar desta situação com realismo. Sucede, pelo contrário, que vão sendo introduzidos sucessivos remendos que acabam por deixar tudo mais fragmentado e mais complicado. Há estrangulamentos nas carreiras que são absolutamente inadmissíveis. Como é possível admitir-se que para progredir na carreira alguns universitários tenham de esperar por títulos que o Ministério da Saúde tarda em atribuir, não cumprindo sequer a lei que rege os respectivos concursos? Refiro-me à obtenção do grau de consultor, indispensável para que os nossos jovens professores auxiliares concorram ao lugar de professores associados. Por outro lado, é sabido que a contagem de tempo dos professores convidados tem em Medicina particularidades que qualquer pessoa de bom senso e recta intenção reconhece. Como é então possível que essa contagem de tempo seja feita incorrectamente e de modo diverso entre várias Faculdades de Medicina, sem que essa inacreditável assimetria seja definitivamente ultrapassada? E o que está em causa é a paralisia das nossas instituições por não termos vagas disponíveis para contratar jovens assistentes, nem professores que assegurem a desejável renovação da Universidade. Todas estas dificuldades serão ultrapassadas quando se decidir que nos Hospitais ditos Universitários haja apenas uma carreira.

A experiência holandesa parece aquela que na Europa está mais evoluída e, apesar de não completamente avaliada, a verdade é que tem permitido avanços sensíveis. Os Hospitais Universitários não se podem excluir de um contributo ao mais alto nível para o Sistema Nacional de Saúde. Eles estão no fim de uma linha de importância crescente, têm que ser exemplares no seu modo de funcionamento global, são os responsáveis pela preparação de gente fundamental ao funcionamento da Saúde, e eles, melhor do que quaisquer outros, devem preparar não só os futuros líderes, como serem os principais agentes de programas de Educação Médica Contínua. Os Hospitais Universitários não se podem excluir de participar na carta hospitalar portuguesa, nem podem deixar de ser o centro principal e modelar de uma série de hospitais e de centros de saúde que com ele devem estar relacionados. Os Hospitais Universitários, portanto, serão uma estrutura pivot dos Centros Universitários de Saúde, e só assim poderão desempenhar eficientemente a sua função. O que em Portugal está mal todos nós sabemos e o que nos faz falta é quem saiba o que está certo.

Uma outra necessidade é a de parcerias com instituições académicas não médicas como, de resto, a Faculdade onde trabalho tem desenvolvido. Mas para além de todas estas parcerias é necessário um aprofundamento destes conceitos destinado a combater a fragmentação dos diversos saberes e iniciativas. As ciências básicas devem ter uma inserção hospitalar formalizada e os planos de estudo das Faculdades necessitam de ser alterados, criando novas áreas e reestruturando a organização dos saberes estabelecidos. Também nesta área as Faculdades devem fazer bem o seu trabalho, escolhendo aqueles que pela sua prática mais garantias dêem de idoneidade, seriedade e sucesso. Numa palavra, também as Faculdades não se podem dispensar de dar um contributo qualificado à questão dos Centros Universitários de Saúde.

No fundo não devemos desejar uma solução administrativa para um problema que é cultural. Isto significa que estas questões não se resolvem apenas com medidas de gestão, seguramente bem intencionadas, mas que não dispensam experiências e saberes e uma grande maturidade. Actualmente os nossos departamentos são estruturas administrativas obsoletas, mais do que verdadeiros locais de ciência, sendo um dos principais problemas a falta de compromisso entre a investigação e os serviços à comunidade. É preciso juntar as pessoas e os grupos para que possam gerar ideias e projectos comuns.

 

Correspondência:

Prof. Manuel Cardoso de Oliveira

Serviço de Cirurgia B

Hospital de São João

Alameda Prof. Hernâni Monteiro

4200-319 Porto

e-mail:maco@med.up.pt

 

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