SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.24 número6Epidemiologia do cancro do colo do úteroO Paradoxo Moçambicano índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Arquivos de Medicina

versão On-line ISSN 2183-2447

Arq Med vol.24 no.6 Porto dez. 2010

 

COMENTÁRIO

Falando Sobre Saúde

Manuel Cardoso de Oliveira1

 

1 Escola de Estudos Pós-Graduados e de Investigação, Universidade Fernando Pessoa, Porto

 

Correspondência

 

Nos últimos anos tem havido uma pressão de crescente intensidade para que as instituições de Saúde melhorem a qualidade dos seus desempenhos. Trata-se de uma questão de grande complexidade com uma componente multidisciplinar acentuada que, por isso mesmo, exige pessoas especialmente preparadas e com formação cultural e profissional adequadas. Satisfazer estas exigências num ambiente sem as estruturas indispensáveis, onde ainda predominam comportamentos pouco propícios para a mudança, é uma tarefa organizacional de grande susceptibilidade e de resultados visíveis morosos. Felizmente que nos vamos distanciando da aplicação pura e dura das regras de outros mercados no mercado especial da Saúde.

Torna-se indispensável identificar as áreas em que a inovação é necessária e encontrar novas ideias e soluções para os problemas. As instituições que cumprirem este programa irão prosperar, as outras correm sérios riscos de definhar. A inovação, alguém disse, é uma prática de gestão, uma disciplina com ferramentas e processos específicos. Para que mais atempada e eficazmente todos os responsáveis fiquem mais capazes para esses desempenhos é fundamental que se cultivem e aprendam com quem os possa ajudar. O amadorismo com que se seleccionam líderes para os mais diversos níveis das organizações de Saúde tem tido efeitos nefastos cujas consequências se vão fazer sentir por muitos anos. Sem ignorar o passado, temos de nos virar para o futuro e optar por novos tipos de pensamento. Os desempenhos, no que à Qualidade Clínica diz respeito, são um imperativo estratégico muito semelhante ao da Segurança, que com a Qualidade tem uma relação muito directa. São tarefas de grande exigência que não mais pode ser delegada na “gente da qualidade”, sem qualquer ofensa, como é óbvio, para esse sector que, sem estar altamente colocado nas hierarquias das instituições, desempenha trabalho de muito mérito.

Os países anglo-saxónicos, uma vez mais, tomaram a dianteira nestas iniciativas, mas em todo o mundo se começa a pensar mais intensamente nesta problemática. É que proporcionar às populações melhores cuidados de Saúde, gastando menos, é um enorme desafio que só quem estiver muito familiarizado com estas temáticas pode enfrentar. A verdade é que alguns países estão já a desenvolver programas para populações seleccionadas em que estes objectivos estão a ser cumpridos, esperando-se que essas experiências possam ser multiplicadas, servindo de exemplo. Mesmo reconhecendo a dificuldade de transpor conhecimentos adquiridos em determinados contextos para outros com variáveis diferentes, a verdade é que há ensinamentos muito úteis que devem ser adaptáveis a diferentes realidades.

O IOM, ao debruçar-se sobre a causalidade dos erros, dizia que o problema era essencialmente com os sistemas e não com as pessoas, pelo que seria necessário redefinir aqueles. Trata-se de uma tarefa ciclópica que também exige que as pessoas façam profundas mudanças, especialmente nos comportamentos, pois elas são um componente dos sistemas e talvez até o componente mais importante.

O facto de se verificar nos sistemas de Saúde autoritarismose hierarquias excessivas condiciona bloqueios que dificultam as melhores soluções. Daí que voltemos à questão da necessidade de lideranças esclarecidas, desde a frontline até ao topo, o que infelizmente nem sempre acontece. Espartilhados pela pulverização do poder, e obrigados a satisfazer clientelas, é confrangedor o comportamento de muitos responsáveis, o que só tarda as melhores soluções.

Como já salientámos, nas organizações de Saúde embricam-se profundamente diversas áreas do saber, o que nos leva à necessidade de criar grupos multidisciplinares que facilitem a concretização dos objectivos delineados. Mas para que assim seja é indispensável criar infra-estruturas que suportem as acções a desenvolver. Muitos dos profissionais da Saúde sabem que os simples processos de intenção falham por não terem sido criados espaços e novas estratégias organizacionais a tempo para que a sustentabilidade das iniciativas esteja garantida. É ainda necessário preparar pessoas para o desempenho correcto das suas atribuições, criando programas de ensino e treino que sensibilizem e tornem competentes os profissionais selecionados para o desempenho dessas tarefas. Eles, pela natureza das funções que exercem, devem estar muito próximos dos topos da hierarquia das instituições, à semelhança da colocação do Departamento de Qualidade Clínica junto ao Conselho de Administração dos Hospitais.

É importante operacionalizar as estratégias de mudança organizacional, para não dar razão a um alto responsável do NHS quando disse “que nestes últimos anos as numerosas estratégias desenvolvidas só tiveram um coisa em comum: é que não tiveram consequências práticas de relevo”. É sabido que os médicos, que têm visto o seu estatuto de autoridade e poder seriamente ameaçados, deveriam ser aqueles que mais lucidamente se deveriam comprometer, pois essa é a orientação que lhes poderá devolver o prestígio perdido.

Vem a propósito lembrar que mesmo com recursos significativos e lideranças determinadas demora muito tempo a criar o processo de mudança e que, depois desta, as suas consequências práticas são também demoradas. Tal facto só deve ter uma consequência inteligente: mais do que desmoralizar as hostes, antes as devem estimular para que se faça bem e em tempo oportuno o que deve ser feito. Como dissemos, em íntima ligação com a Qualidade está a Segurança. A Segurança em Unidades de Saúde merece também tratamento individualizado. Construir uma cultura de Segurança é um enorme desafio e, como tal, exige também que se criem estruturas e capacidades organizativas adequadas, para o que é necessária uma grande determinação. Espera-se assim contribuir para que os Hospitais e outras Unidades de Saúde sejam lugares mais seguros e menos frustrantes, lugares onde se possa trabalhar com mais gosto e eficiência e ainda que os recursos humanos e materiais neles investidos possam ser um investimento com retorno.

Não se pode falar de Saúde sem referir a crise de confiança que está instalada em muitas áreas dos respectivos Sistemas. Também este tema merece tratamento diferenciado tal a sua importância estratégica. Necessitamos de melhoras a nível dos cuidados, pois a falta de confiança gera consequências preocupantes – discriminação da Qualidade dos desempenhos, aumentos dos custos e dos conflitos e ineficiências organizacionais.

Nestes diversos cenários – Qualidade Clínica, Segurança, Confiança, está bem patente a sua interdependência e o valor da accountability, governance e empowerment. Há que reconhecer o valor de medir tudo o que for mensurável – estruturas, processos e outcomes. Mas há também que atender à qualidade de vida dos nossos doentes, conceito que por vezes é esquecido. Estas diferentes perspectivas acarretam uma outra exigência: a de dispormos de profissionais competentes. Dada a importância deste tópico, aconselhamos a seguir a orientação do Accreditation Council for Graduate Medical Education (ACGME) quanto aos tipos de competência que estão mais em causa e o modo de os medir, orientação que tem sido seguida por alguns pioneiros nesta área.

A adulteração das lideranças é uma das mais poderosas barreiras à obtenção de bons resultados, como temos vindo a denunciar. Para além das considerações anteriores, é ainda oportuno lembrarmos uma outra ferramenta tantas vezes referida e tão poucas vezes contemplada – a investigação.

Possuir conhecimentos científicos e organizacionais é uma realidade nem sempre atingida e em fluxo contínuo. É necessário criar novos conhecimentos, mediante uma investigação deliberada e estruturada de modo a reformular a prática médica de acordo com o seu ritmo vertiginoso de mudança. Com a criação de conhecimento e do seu ciclo até a acção, mover-nos-emos da evidência para a prática de um modo mais expedito.

 

Correspondência

Manuel Cardoso de Oliveira

Escola de Estudos Pós-Graduados e de Investigação Universidade Fernando Pessoa Praça 9 de Abril, 349 4249-004 Porto, Portugal. Email: maco0410@gmail.com

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons