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Arquivos de Medicina

On-line version ISSN 2183-2447

Arq Med vol.26 no.2 Porto Mar. 2012

 

Caso II - adulto do sexo masculino, 20 anos, com diarreia não-sanguinolenta

 

Susana Rodrigues1, Joanne Lopes2, Luís Tomé3, Susana Lopes1, Fátima Carneiro2,4, Guilherme Macedo1,4

1 Serviço de Gastrenterologia do Hospital de São João

2 Serviço de Anatomia Patológica do Hospital de São João

3 Serviço de Gastrenterologia dos Hospitais da Universidade de Coimbra

4 Faculdade de Medicina da Universidade do Porto

 

RESUMO

As doenças hepatobiliares são manifestações extra-intestinais comuns da doença inflamatória intestinal (DII). As alterações das provas hepáticas poderão estar presentes em até 30 porcento dos doentes com DII, não parecendo estarem associadas com a actividade ou gravidade da doença e podendo ser relacionáveis com doença hepática específica (autoimune ou não) ou medicação concomitante. Neste sentido, alterações persistentes das provas hepáticas devem ser cuidadosamente avaliadas e integradas no contexto clínico do doente. A colangite esclerosante primária (CEP) é uma das patologias hepatobiliares mais comuns na DII, particularmente nos casos de colite ulcerosa (CU), sobretudo na pancolite. Descrevemos um caso de um doente de 20 anos do sexo masculino diagnosticado com pancolite ulcerosa e alterações persistentes das provas hepáticas. Durante o estudo, o doente apresentou um padrão misto de citólise com predominância colestática (GGT, ALP 3-4xLSN, AST, ALT 2.5x LSN). O estudo etiológico revelou uma IgG elevada e ANCAp positivo. A biópsia hepática realizada não mostrou inequivocamente a entidade anatomopatológica responsável pelas alterações hepatobiliares. O doente foi medicado com mesalazina oral, azatioprina e ácido ursodesoxicólico (AUDC) com efeito parcial. A colangio-RM mostrou uma estenose biliar extra-hepática e a colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE) revelou uma estenose 3 cm e achados altamente sugestivos de CEP intra-hepática. As biópsias da estenose da via biliar mostraram sinais de atipia pelo que se questiona a eventual presença de malignidade, e consequente optimização da proposta terapêutica.

Palavras-chave: Diarreira não sanguinolenta; Doença de Crohn; Doença inflamatória intenstinal

 

ABSTRACT

Hepatobiliary diseases are common extraintestinal manifestations of inflammatory bowel disease (IBD). In fact, abnormal liver biochemical tests are present in up to 30 percent of patients with IBD, do not appear to correlate with disease activity or severity and may be associated with a specific concomitant disease (autoimmune or not) or therapy. As a result, persistently abnormal liver biochemical tests should generally be carefully evaluated. Primary sclerosing cholangitis (PSC) is one of the more common hepatobiliary complications of IBD, particularly in patients with ulcerative colitis (UC), particularly extensive colitis. We describe a case of a 20-year male patient diagnosed with extensive ulcerative colitis and persistently elevated liver biochemical tests. During the workup the patient presented persistent cholestatic (gGT, ALP 3-4x ULN) and cytosolic liver injury (AST, ALT 2.5x ULN), with a predominance of cholestasis. His etiological workup revealed an elevated IgG and positive ANCAp. The liver biopsy performed did not show clear signs of an anatomo-clinical entity responsible for the hepatobiliary disease. The patient was treated with oral mesalamine, azathioprine and ursodeoxycholic acid (UDCA) with a partial response. A cholangio-MRI showed an extra-hepatic biliary stricture and the endoscopic retrograde cholangiopancreatography (ERCP) revealed a 3cm stricture and findings highly suggestive of intra-hepatic PSC. Biliary biopsies taken showed signs of atypia questioning the possible presence of malignancy, and subsequent optimization of therapy.

 

Introdução Prof Guilherme Macedo (PGM): “Gostaria de vos cumprimentar a todos, dar-lhes as notas de boas vindas e explicar em 3 minutos o que nos moveu para estar aqui. O que nos moveu, obviamente foi o convite generoso e irrecusável, mas sobretudo o pretexto de comunicação, o pretexto de troca de informação, no fundo trazer para aqui aquela que é a nossa realidade da Gastrenterologia neste hospital, com o serviço de Anatomia Patológica. A grande razão para estarmos aqui, é pois um pretexto de comunicação, um pretexto de ensino: o ensino é um movimento biunívoco de quem ministra informação e de quem e como a apreende.

Conhecem provavelmente este cavalheiro, doutras lides, mas este mesmo Kubrick dizia o que é para nós um aforismo quase vital: A entrega total a um objectivo só é exigível quando nós damos esse testemunho. É esse testemunho que os dois serviços vêm dar, sobre o ensino ou sobre esta modalidade de partilha de conhecimento. Para nós o ensino é um método, em que se fornecem instrumentos cognitivos e psicoafectivos, duas palavras que nós gostamos muito na nossa área, para veicular várias coisas: informação, experiência, vontade, competência e entusiasmo, tão características dos licenciados em medicina. Mas mais do que isso, queremos que os licenciados em medicina se tornem médicos. Uma pequena grande diferença que implica compreender alguns processos que também se ensinam, processos esses que fazem transformar essas características em conhecimento, em maturidade, em motivação, em dedicação e, sobretudo, muita paixão.

Sabem, obviamente, qual é a diferença entre informação e conhecimento. Mas às vezes essa diferença não é muito perceptível ou muito nítida nos nossos espíritos e para os médicos é fundamental perceber que também para compreender essa subtil diferença há um caminho a fazer-se. Se eu falar aqui, sobretudo à comunidade mais jovem, quem é o senhor Peter Gonzalez, vou ter alguma dificuldade. Alguém sugere quem seja o senhor Peter Gonzalez, que é este cavalheiro? Ah, agora as meninas já disseram - Bruno Mars, isso conhecem. Ora isto é dispor de informação, reconhecer uma foto mediática; obter conhecimento significa ter tido a curiosidade, ambição e procura de saber que uma informação imediatista pode ser completada com alguma coisa mais.

Muito importante também é o processo de passagem da experiência, pura e dura, para a maturidade. Como devem calcular este cavalheiro (Chesley Sullenberger) e muitos milhares de pilotos têm uma enorme experiência de voar, mas este piloto, na altura apropriada revelou uma outra característica de excelência, que foi a maturidade de seleccionar intuitivamente os riscos, e assim pousar no Hudson, indubitavelmente “against all odds”.

Entre vontade e motivação há também alguma diferença, porque os alunos têm muita vontade de aprender, muita vontade de fazerem coisas, mas não chega para definir os contornos duma motivação, a motivação é um compromisso temporal. Sir Alex Ferguson (que como sabem não é nenhum medico famoso…) diz frequentemente que de facto nada contamina mais do que a vontade e o entusiasmo, é isso que faz mover as coisas e faz vencer obstáculos. Mas a nosso ver mais importante ainda que esta vontade e este entusiasmo é conseguir sustentar no tempo uma motivação, um drive, uma intenção, e a isso chamamos paixão. É essa paixão que nós vamos ver aqui quanto estivermos a discutir o caso clínico concreto dum jovem, que tem a vossa idade e que anda, infelizmente pela sua doença, a ser submetido a uma parafernalia de várias procedimentos, altamente complexos, exigentes e tecnologicamente muito avançados, e que nós vamos discutir aqui, sobre a sua oportunidade e aplicabilidade. O nosso pretexto de comunicação é esse: mostrar que na clínica há muitos momentos que nós temos, para além de muito estudo e trabalho solitário, pegar nos telefones, temos que calcorrear os corredores do Hospital, temos que falar uns com os outros, partilhar certezas e duvidas, para podermos servir bem, que é o nosso fundamento. Para demonstrarmos isso vou passar a palavra à Dra. Susana Rodrigues (DSR), que é Interna do nosso Serviço de Gastrenterologia do Hospital de São João e para a Dra. Joana Lopes (DJL), Especialista de Anatomia Patológica, para nos contarem… uma história. Trazerem a historia do percurso de vida dum rapaz, entre as varias decisões clínicas que tivemos de tomar, que provavelmente alguns de vós irão conhecer dentro de algum tempo, quando também tiverem de lidar com as nossas próprias inquietações e uma ânsia tremenda de excelência.

Drª Susana Rodrigues: O caso clínico corresponde a um jovem do sexo masculino, de 20 anos, natural de Paredes, estudante e residente em Lisboa.

A história deste doente, começa com uma referência a diarreia sem sangue, com dor abdominal recorrente e emagrecimento de 2 a 3 kg no espaço de 6 meses. Neste contexto o doente foi referenciado no exterior para efectuar uma colonoscopia total. Mostrou mucosa do recto do cólon direito com edema/eritema e úlceras, compatíveis com o diagnóstico endoscópico de pancolite ulcerosa. Em relação aos antecedentes pessoais o doente não apresentava nenhuns antecedentes patológicos de relevo, referia apenas o consumo esporádico de álcool em festas da Faculdade, não apresentava história nenhuma de viagem recentes e como antecedente familiar importante, tinha a mãe com história de Doença de Crohn.

Passamos agora a mostrar as imagens das biópsias cólicas efectuadas no exterior.

Drª Joanne Lopes: Recebemos imagens dessa biópsia cólica efectuada num Laboratório do exterior. Vemos um fragmento de mucosa cólica com expansão do córion por folículos linfóides; observam-se alterações das criptas (encurtamento e espaçamento irregular) (Fig 1). Há sinais de actividade, com lesões de criptite, sem evidência, nestas imagens, de abcessos crípticos. Em áreas focais há sinais de ulceração (traduzidas pela presença de tecido de granulação). O diagnóstico então efectuado foi de lesões de recto-colite crónica com sinais de actividade e ulceração, compatível com doença inflamatória intestinal de tipo colite ulcerosa.

 

 

Prof. Guilherme Macedo: Deixe-me só dizer colocar uma questão que gostaria de pôr já ao Prof. Luís Tomé, nosso “Special Guest Star” de hoje, é Prof. da Faculdade de Medicina de Coimbra, e Chefe de Serviço dos Hospitais da Universidade do Serviço de Gastroenterologia; a questão que eu gostaria de pôr é se para já estamos tranquilos, com um diagnóstico com base histológica de colite ulcerosa...chega para já?!... (9:53)

Prof. Luis Tomé: Em 1º lugar gostava de agradecer ao Sr. Prof. Guilherme Macedo pela gentileza do convite a participar nesta reunião, e cumprimentar o Sr. Prof. Sobrinho Simões, dizendo-lhe Sr. Prof. que eu não me lembro de ter tido oportunidade de estar sentado ao lado de um Prémio Pessoa... Deixe-me dizer também que, nós em Coimbra tivemos um Prof. na Universidade de Direito, que tinha uma máxima que marcou a vida social intelectual da cidade, dizia ele, “nada de altas cavalarias, nem de voos arriscados, faça-se o trivial”. Evidentemente que esta observação que este Prof. de Direito proferiu conduziu a cidade de Coimbra a um inexorável declínio. Naturalmente eu não me revejo nela mas nem por isso arriscaria, aqui, alguma alta cavalaria. Quero portanto dizer que estou tranquilo acerca do diagnóstico e devo dizer que não preciso geralmente da histologia para fazer o diagnóstico. Por este contexto clínico que aqui temos com o aspecto endoscópico descrito, as biopsias reputo-as de dispensáveis.

Mas, já agora pergunto eu, essa circunstância da mãe do doente ter um Doença de Crohn que tão assinalada é nessa sua introdução usando uma história clínica, acha que tem alguma relevância? Acha que existe alguma tendência para alguma agregação familiar nas doenças inflamatórias crónicas do intestino?

Prof. Luís Tomé: Quanto à biopsia...

Prof. Guilherme Macedo: Ficámos todos muito mais tranquilos quando fazemos biopsia, e é recomendado ser sempre feita, até porque tivemos algumas surpresas muito recentes, são raras, mas que podem fazer diferença entre a vida e a morte e isso preocupa-nos naturalmente.

Prof. Luís Tomé: mas que surpresas foram essas já agora?

Prof. Guilherme Macedo: foi ter descoberto que um individuo com uma colite ulcerosa trivialíssima, aos olhos de todos, era afinal uma amebíase. Tratava-se de um senhor de raça branca e que dizia que nunca tinha ido a lado nenhum, até depois de nós termos perguntado especificamente, não viajava para lado algum, mas afinal tinha vivido em Angola muitos anos…

Prof. Luís Tomé: ...colite ulcerosa febril...

Prof. Guilherme Macedo: Há muitas colites ulcerosas febris e essa é também a razão para precisarmos ter uma biopsia…

Drª Susana Rodrigues: em Fevereiro de 2009, após a colonoscopia, o doente foi medicado no exterior, com 5-ASA oral 1000mg 3x dia.

Em Agosto de 2009, em análises de rotina, efectuado pelo médico assistente no exterior foram detectadas alterações das provas hepáticas, realçando-se a presença de um padrão misto de citólise com aumento das transaminases, (381 - 10 vezes o valor normal da ALT) e o aumento também dos parâmetros da colestase no aumento da gGT e aumento da fosfatase alcalina, ± 1,5x normal.

Em Outubro de 2009, o doente iniciou corticoterapia com prednisolona 50mg pelo seu médico assistente, com a suspeita que o doente pudesse ter uma hepatite autoimune. Após iniciar esta terapêutica o doente em Janeiro de 2010 foi referenciado ao nosso Hospital, à nossa consulta de Hepatologia. Quando nós o vimos em Janeiro de 2010 o doente estava medicado com 10mg de prednisolona e a fazer 5-ASA oral. Efectuou análises em Janeiro e vimos os resultados em Março de 2010, nesta altura o doente estava assintomático, medicado apenas com mesalamina oral e persistiam as alterações das provas hepáticas, mantinha citólise e a colestase, desta vez com valores de colestase mais marcados.

Foi efectuado um estudo das alterações das provas hepáticas num contexto do doente com colite ulcerosa; realizou uma ecografia abdominal, que mostrou esteatose hepática sem sinais de hipertensão portal, nomeadamente, esplenomegalia ou dilatação da veia porta, não tinha alterações das vias biliares nem do pâncreas. Foram pedidos marcadores víricos para Hepatite B, Hepatite C e HIV que foram negativos, no painel imunológico realço apenas positivo o aumento da imunoglobulina G, os auto-anticorpos pedidos anti-mitocondrial, anti-músculo liso, anti-nuclear e anti-LKM e ANCAs foram negativos e a electroforese das proteínas séricas também foi normal.

Foi feito um despiste de doenças metabólicas, feito um doseamento da a1-antitripsina, ceruloplasmina, cinética do ferro, que foram todas normais, o perfil lipídico do doente também era normal, as hormonas tiroideias, estavam dentro dos valores de normalidade, serologias eram negativas, para EBV, CMV, e sífilis. Foi também efectuado o estudo de coagulação, também normal. Estávamos então colocados perante um jovem com colite ulcerosa com alterações das provas hepáticas, pelo que colocamos a hipótese de realização de uma biopsia hepática. Pensamos em algumas hipóteses de diagnóstico, nomeadamente doenças hepatobiliares que podem estar associadas a doença inflamatória intestinal, à cabeça colangite esclerosante primária, pela sua frequência e com o facto do doente apresentar uma pancolite ulcerosa, colangiopatia autoimune, a hepatite autoimune, o envolvimento hepático por doença inflamatória intestinal, isto é, alterações inespecíficas que podem surgir no fígado de um doente com doença inflamatória intestinal, como por exemplo, esteatose ou granulomas epitelióides ou até depósitos de amilóide. Também colocamos a hipótese de haver uma doença hepatobiliar concomitante com doença inflamatória, como por exemplo, esteatose simples, esteatohepatite ou toxicidade por 5-ASA.

Prof. Luís Tomé Ter uma elevação de cerca de 2 x fosfatase alcalina, achas que isso é suficiente para diagnosticar uma colestase?

Drª Susana Rodrigues: Ele tem de facto um padrão misto ele não tem só uma colestase, ele tem citólise e colestase

Prof. Luís Tomé: Foi proposto que deveria haver um limiar quanto ao valor de fosfatase alcalina que se sobreponha ao normal, para se definir colestase e esse valor geralmente atribuía-se o de 3 vezes. Mas por exemplo, a fosfatase alcalina de 180 também é colestase?

Prof. Guilherme Macedo: Se for de origem hepática e em 2 determinações espaçadas de 3 a 6 meses, é!.

. É evidente que se for uma elevação transitória, haverá um critério temporal também nesta avaliação. Para um doente que neste perfil clinico, e que tem 2 ou 3 determinações diferentes com fosfatase alcalina elevada que vá acima de 1.5x o normal, é evidente que estamos a considerar que tem uma colestase. A questão é que este doente não tem uma colestase isolada. Ter fosfatase alcalina elevada não significa no entanto, sempre, ter colestase. Uma grávida, normalmente, por ter uma estrutura a crescer que se chama sinciciotrofoblasto e outra estrutura que alberga que é o feto, tem fosfatase alcalina elevada

Prof. Luís Tomé: ...Neste caso porque o doente tem fosfatase alcalina elevada e gGT elevado importa mais a conjunção das duas enzimas para definir esta colestase. Já agora, queria saber se faria biópsia hepática

Prof. Guilherme Macedo: eu faria, neste contexto parece-me crucial.

Prof. Luís Tomé: .....eles discutem a possibilidade de ter uma colangite esclerosante, uma colangiopatia autoimune, uma hepatite autoimune embora não tenha auto-anticorpos, na exclusão deste diagnóstico talvez precise da histologia, mas não tem auto-anticorpos, e o envolvimento hepático por doença inflamatória crónica quer dizer exactamente o quê?

Drª Susana Rodrigues: são alterações inespecíficas que podem surgir no contexto de doença inflamatória, como presença de esteatose, ou granulomas epitelióides.

Plateia b): Quando o Prof. Luís Tomé disse que a hepatite autoimune está completamente fora de parte, porque não tem anti-anticorpos, isso não é propriamente critério de exclusão... relativamente ao envolvimento hepático pela doença inflamatória intestinal, pode acontecer, que se tivermos granulomas, há alterações das provas hepáticas

Prof. Luís Tomé: eu nunca vi nenhuma granulomatose hepática, com 330 de transaminases, não me lembro....

Prof. Guilherme Macedo: é verdade, no caso duma granulomatose isolada; o problema é que há aqui um componente citolítico que nos põe tantas dúvidas, que devemos fazer biópsia.

Prof. Luís Tomé: a medicina é feita de coisas simples e não de coisas complicadas, a granulomatose hepática é uma coisa complicada, não é provável que este doente nos venha a aparecer com uma granulomatose ... mas vamos ver o que é isto...

Drª Joanne Lopes: Nós recebemos um pedido de exame anátomo patológico para uma biópsia hepática, devidamente preenchido, em que a informação clínica era de pancolite ulcerosa, com um ano de evolução, com sinais de citólise e colestase; havia história também de consumo esporádico de álcool. No exame histológico observámos fígado com expansão dos espaços porta e septação fibrosa do parênquima (Fig. 2A). Nos espaços porta observámos infiltrado linfocitário de densidade moderada com pequenos agregados linfóides. Não se identificaram lesões fibro-obliterativas dos ductos biliares nem aspecto de fibrose em “casca de cebola” (Fig. 2B). Não se identificaram granulomas. Em hepatócitos peri-portais observou-se depósito de cobre. Em resumo, não observámos aspectos morfológicos típicos de colangite esclerosante primária. Contudo, a presença de fibrose e acumulação de cobre levaram-nos a levantar a hipótese de perturbação do fluxo biliar e a sugerir estudo imagiológico das vias biliares.

 

 

 

Prof. Luís Tomé: As lesões em “casca de cebola” à volta dos ductos biliares, que disse que são características da colangite esclerosante, com que frequência é que elas se encontram, que eu não me lembro de ter visto nunca nenhuma?

Drª Joanne Lopes: É raro, mas geralmente é observado quando há colangite esclerosante primária com envolvimento dos pequenos ductos e então aí a biopsia hepática, se tiver uma amostragem adequada, pode demonstrar este aspecto característico.

Prof. Luís Tomé: A Srª Drª já viu? Casca de cebola ....

Drª Joanne Lopes: já vi

Plateia c)(Profª Fátima Carneiro): É verdade que são raras as lesões em “casca de cebola”. Nesta biopsia havia alguns plasmócitos, mas a densidade era ligeira e as lesões de hepatite de interface e de actividade intralobular eram também discretas. Na hepatite auto-imune estas alterações costumam ser acentuadas e coexistir com transformação acinar dos hepatócitos. Estes aspectos não estavam presentes neste caso.

Prof. Luís Tomé: outra coisa se ouve muito falar, mas eu também de facto não me lembro de ter vindo à mão, é aquele fenómeno de que se descreve nos livros, nas hepatites auto-imunes, de emperipolesis.

Plateia c): Trata-se de fenómenos de “piece-meal necrosis”, de necrose marginal. Não foram observados nesta biopsia e costumam estar presentes na hepatite auto-imune.

Drª Joanne Lopes: A hepatite de interface costuma ser muito exuberante em situações de hepatite auto-imune; não era o caso.

Prof. Luís Tomé: Portanto em resumo a biopsia não terá ajudado nada…

Drª Joanne Lopes: ajudou muito...

Prof. Guilherme Macedo: ...pelo que mostrou e pelo que não mostrou

Drª Susana Rodrigues: Por apresentar um aumento de dejecções, cerca de 1 a 2 vezes por dia e aumento da proteína C reactiva, o marcador inflamatório, em Julho de 2010 foi submetido a uma ileocolonoscopia. A ileocolonoscopia mostrou mucosa com edema, congestão e erosões, ao longo de todo o cólon com maior exuberância no cólon direito, e a mucosa ileal não mostrou qualquer tipo de lesão mas procederam-se a biopsias neste exame

Drª Joanne Lopes: Na mucosa ileal vemos que a arquitectura vilositária está preservada e não há evidência de alterações inflamatórias, úlceras/erosões ou granulomas (Fig. 3A). Na mucosa cólica observaram-se alterações inflamatórias acentuadas e distorção das criptas, que estão profundamente encurtadas (não atingindo o plano da muscular da mucosa) e se apresentam irregularmente espaçadas. (Fig. 3B). Observaram-se sinais acentuados de actividade, com permeação do epitélio glandular por números polimorfonucleares, com consitutição de raros abcessos crípticos (Fig. 3C).

 

 

 

 

Em conclusão, estes aspectos morfológicos são próprios de doença inflamatória intestinal do tipo colite ulcerosa.

Prof. Luís Tomé: duas observações. Em 1º lugar, para lhes dizer, usando uma expressão que usam no Norte do País é que estas imagens são uma categoria, e que os colegas da Anatomia Patológica são de facto uma categoria, isto parece ser tirado de livro. Em 2º lugar, por seguir muitas colangites esclerosantes que eu presumo que é aquilo que o que o doente tem, vejo que colites ulcerosas das colangites esclerosantes costumam ser mansas, ou seja não costumam ter esta coisa grave de ser necessário fazer mais colonoscopias, por vezes até nos esquecemos que tem uma doença inflamatória intestinal, tem claramente uma actividade mais branda do que aquilo que nos está aqui a ser mostrado. Portanto, eu começo a pôr-me à defesa.

Plateia d): uma dúvida, aqui ele encontrava-se com suspensão da terapêutica?

Prof. Guilherme Macedo: esteve sempre sob terapêutica…

Plateia d): portanto está em terapêutica e mantem lesões activas?

Prof. Guilherme Macedo: mantem lesões, discretas lesões endoscópicas, mas lesões histológicas, o que também é comum na doença inflamatória em que há uma certa discrepância, não há uma correlação directa entre o silêncio clínico e a actividade histológica ou actividade endoscópica.

Drª Susana Rodrigues: O doente também tinha sido referenciado de fora, nós não tínhamos também nenhuma avaliação endoscópica no nosso hospital, também é importante para nós conseguirmos perceber.

Portanto, mantendo a suspeita de possível colangite esclerosante primária, uma vez que a biopsia foi de facto inconclusiva, solicitamos o apoio da Radiologia e pedimos uma colangioressonância em Julho 2010. O relatório descreve uma dilatação fusiforme da via biliar principal, na sua porção extra-hepática atingindo o calibre máximo de 8mm. Este aspecto foi considerado inespecífico e não sugestivo de colangite esclerosante primária, podendo então traduzir uma presença de um pequeno quisto do colédoco.

Na avaliação clínica, na consulta de hepatologia, entre Julho e Setembro de 2010 o doente estava assintomático, mantinha terapêutica com 5 ASA oral, já teria iniciado nesta altura, ácido ursodesoxicólico com a presunção que o doente poderia ter uma colangite esclerosante primária, 250 mg 2 vezes por dia, mantinha o perfil misto analítico com transaminase aumentadas, citólise e com gGT e fosfatase alcalina aumentada, traduzindo colastase, foi feita pesquisa de marcadores tumorais CA 19,9 e CEA que foram normais e o doente aumentou a sua dose de ácido ursodesoxicólico, uma dose terapêutica 15mg/Kg/dia. Nesta altura em Agosto de 2010 o doente também iniciou terapêutica imunosupressora com azatioprina uma vez que tinha uma actividade marcada na colonoscopia. Repetiu-se o estudo imunológico, o doente tinha um aumento da imunoglobina gama e desta vez veio uma positividade para os ANCAs que não se verificara anteriormente. Este quadro I serve para compararmos principalmente a hepatite autoimune com a colangite esclerosante primária; existem algumas diferenças que são importantes como por exemplo, diferenças epidemiológicas, a hepatite autoimune é muito mais frequente nas mulheres do que nos homens, enquanto na colangite esclerosante primária, há um predomínio masculino, embora ligeiro. As alterações predominantes hepáticas em termos analíticos na hepatite auto-imune é um padrão de citólise com aumento das trasaminases, da ALT e da AST, na colangite esclerosante primária há principalmente colestase com aumento da gGT associada a um aumento de fosfatase alcalina. Em relação aos auto-anticorpos, na hepatite autoimune habitualmente temos anticorpos anti-nucleares positivos, os ANA, anti-músculo liso, anti-LKM e mais frequente pode aparecer os ANCAs perinucleares aumentados na colangite esclerosante primária. Em termos histológicos como já referimos, na hepatite autoimune principalmente pode acontecer lesões do tipo interface, e presença de um predomínio de células linfoplasmocitárias. Na colangite esclerosante primária, o que nós esperamos é a presença de fibrose e obliteração à volta da zona dos ductos biliares. Em termos de diagnóstico na hepatite autoimune existe um score internacional e vários parâmetros, incluem a histologia e os autoanticorpos entre outros, na colangite esclerosante primária é muito importante a presença de uma colangiografia, seja ela por ressonância, seja por CPRE. Em termos terapêuticos, habitualmente a terapêutica da hepatite autoimune passa pela imunossupressão com corticoterapia, prednisolona mais frequentemente associação com azatioprina ou outros imunossupressores. Na colangite esclerosante primária embora seja controverso, neste momento, a maior parte dos especialistas propõe o uso do ácido ursodesoxicólico (um ácido biliar) nem que seja num contexto quimio-profiláctico, porque estes doentes, tem um aumento risco de vários tipos de cancro, como vamos ver de seguida

Prof. Luís Tomé: Vamos parar um bocadinho agora nesta parte. O diagnóstico da hepatite autoimune, é de uma doença muito heterogénea, para a qual não existe marca bem definida não se tem um teste tal, nem um teste tal para fazer o diagnóstico, por isso a partir de 1993 foram desenvolvidos uma série de scores, depois em 1999 chegaram à conclusão que os aqueles scores não eram bem assim ( este score aqui de 15 corresponde a essa estratificação de 1999) mas em 2008 apareceu um novo score simplificado para o diagnóstico da hepatite autoimune que depende apenas de 4 items

Drª Susana Rodrigues: Isso está validado?

Prof. Luís Tomé: o score é novo e sendo “fresco” talvez não possa corresponder muito bem às exigências e de facto tem havido em algumas publicações em que se compara os méritos do score de 2008 que depende só de 4 parâmetros com o score de 1999 que engloba 17 parâmetros e chega-se à conclusão que aparentemente o score de 2008 deixa passar algumas doenças que o score de 1999 não deixava passar. Para o nosso caso o valor máximo que podemos obter no score 2008 é 4 pontos, no diagnóstico exigem pelo menos 6, portanto este doente não tem de certo uma hepatite autoimune de acordo com esse score.

Prof. Guilherme Macedo: Logo, continuamos sem fugir da nossa ideia inicial, que é uma colangite esclerosante com um envolvimento citolítico em que estamos a ver se conseguimos enquadrar numa destas entidades que é difícil, há sobreposições como se vê, entre critérios, entre autoanticorpos, entre alterações analíticas etc, mas não so há colangite esclerosante no contexto de uma doença inflamatória do intestino, colite ulcerosa, mas há mais, porque há alterações visíveis da via biliar como se viu na colangioressonância que nos pôs muitas dúvidas...

Plateia (Dr. Costa Maia): de facto aquela ressonância, ou pelo menos aquele relatório e aquela imagem que puseram ali não é uma categoria, estamos de acordo. Eu não sei o que o relatório dizia ou as imagens o que mostravam em relação à árvore biliar intra-hepática que não tive oportunidade de ver ali, porque não se vê. Não percebo a que propósito é que vem aí ou pra que servem neste contexto marcadores tumorais. Será que é de pedir marcadores tumorais a este doente ou a outro doente nestas circunstâncias?

Prof. Guilherme Macedo: Se calhar já podemos dar resposta melhor daqui a pouco. Posso dizer já, não está indicado o pedido de marcadores tumorais neste contexto nesta fase: mas começamos a sentir algum desconforto neste doente concreto, porque há alterações biliares que não conseguimos compreender e a imagiologia não ajudou e portanto considerou-se que podia ter algum relevo um valor histórico, isto é, o valor em determinado momento da doença, dispormos de valores de determinados marcadores tumorais.

Plateia (Dr. Costa Maia):portanto esse é o valor de base para comparação futura, é isso?

Prof. Guilherme Macedo: Correcto

Plateia (Margarida): foi posta a hipótese de toxicidade de 5-ASA;gostaria de a perguntar se alguma vez se suspendeu, porque este doente tem feito sempre o 5-ASA e se alguns aspectos que foram descritos na biópsia, nomeadamente a colestase, não podia ser interpretada num contexto de uma toxicidade

Drª Joanne Lopes: Não foram identificadas alterações relacionáveis com corticoterapia ou terapêutica com azatioprina ou 5-ASA.

Prof. Luís Tomé: já agora, sobre esse assunto, os aminossalicilatos podem dar fenómenos de esteatose que geralmente não se costumam acompanhar com alterações tão substanciais como temos aqui, uma visível citólise, embora eu acho que a Srª Dra faz uma observação cheia de sentido.

Drª Susana Rodrigues: em Dezembro de 2010, o doente estava assintomático, medicado com 5-ASA oral, ácido ursodesoxicólico 500mg 2x por dia e azatioprina 125mg/dia, cerca de 2 mg/Kg/dia. Em termos do perfil hepático, mantinha o aumento da ALT, cerca de 4x/4,5x normal e mantinha o aumento discreto de fosfatase alcalina e aumento gGT cerca de 4x normal. Em Abril, o doente foi reavaliado, tinha aumentado a dose de azatioprina para um valor 2.5mg/Kg e tinha tido um ligeiro agravamento das análises de colestase em relação às medidas anteriores e uma vez que a colangiorressonância anterior ter sido inconclusiva em relação ao diagnóstico ou não de colangite esclerosante, foi proposto a realização de nova colangioressonância. Na 2ª colangioressonância realizada em Julho de 2011 descreve-se uma área focal de ectasia fusiforme da via biliar principal, distal ao ducto cístico com cerca de 7mm de diâmetro anteroposterior e uma extensão de 2cm, afilando de forma progressiva, e não se identificava o nível obstrutivo, achado que poderá estar relacionado com quisto do colédoco. Não há descrição da rarefação dos canalículos biliares intra-hepáticos. O doente foi então submetido em Agosto de 2011 a uma CPRE (colangiopancreatografia retrógrada endoscópica), um exame endoscópico que combina endoscopia e a fluroscopia que tem como interesse diagnóstico neste caso, avaliar a anatomia das vias biliares, através da injecção de contraste. Este colangiograma foi feito depois da insuflação do balão e conseguimos ver uma ligeira dilatação do terço médio e proximal do colédoco com os ramos intra-hepáticos com aspecto em rosário com áreas dilatação/saculação bem como áreas de estenose, e claramente consegue-se observar uma rarefação dos canalículos biliares terminais intra-hepáticos. Foi feito durante esta CPRE, biópsia da via biliar, e também, escovado da via bilar a nível do ramo intra-hepático direito.

Drª Joanne Lopes: A biopsia da papila de Vater era de pequenas dimensões. Não se observaram lesões de displasia ou de neoplasia invasora. Na citologia do escovado da via biliar observaram-se células cúbicas dispostas em monocamada, ocasionalmente com aumento da relação núcleo-citoplasmática e com hipercromasia nuclear (Fig. 4). Estes aspectos foram considerados inconclusivos, i.e. insuficientes para um diagnóstico suspeito de malignidade.

 

 

Prof. Guilherme Macedo: Neste ponto gostaria de recordar duas coisas: para já estamos a contar uma história, história real, em tempo real de um jovem que tem a idade de muitos que estão aqui e que tem uma doença no intestino, uma doença hepato-biliar, naquilo que nós designamos, actualmente como a expressão clara daquilo que se descreve como eixo do fígado e intestino. A verdade é que esta é uma doença muito particular, a colangite esclerosante, de um risco adicional de complicações a nível da árvore biliar e este foi o problema que subitamente começamos a entroncar, quer dizer, se havia a dúvida de haver doença autoimune de tipo colangite esclerosante, doença como sabem autoimune de envolvimento hepático e biliar traduzida pela colestase bioquímica, a verdade é que não se exprime só pela colestase bioquímica: há algo na via biliar, que uma 1ª colangioressonância, imperfeita, deixa-nos desconfortáveis pelo que, não fazendo por rotina a CPRE na colangite esclerosante - por vários problemas que podemos discutir a seguir e ao contrário do que se fazia hà muitos anos atrás, em que era mandatório, - nós fazemos quando temos de esclarecer dúvidas na colangioressonância ou quando temos suspeitas de que é preciso ir lá buscar alguma coisa, tentar ver se alguma coisa justifica aquela dilatação. Aquela descrição de facto deixou-nos muito desconfortáveis e na CPRE temos imagens que são quase “de livro” também, a “árvore de inverno”, aquela imagem que vemos de rarefação dos ramos intra-hepáticos e que resulta da injecçao sobre pressão mantendo a pressão elevada com pequeno balão insuflado endoluminal, colocado na via biliar distal pelo endoscopista (Dr Pedro Pereira). Isto tem um significado importante, porque a colangite esclerosante é uma condição pré-maligna, de doença oncológica a nível biliar.

Queres fazer algum comentário sobre isto?

Prof. Luis Tomé: O Prof. Guilherme Macedo diz bem, no sentido dos colegas mais novos terem isso presente, que a colangite esclerosante é uma condição pré-maligna, nas próprias vias biliares e a sua existência também aumenta o risco de malignidade no cólon nas colites ulcerosas. É preciso que a colangite esclerosante tenha alguns anos de evolução e este rapaz que só tem 20 anos, pelo que não me parece muito natural que tenha já esta temível complicação…

Prof. Guilherme Macedo: …Há no entanto um grupo etário particular o grupo pediátrico, sobretudo no início da adolescência, em que algumas formas de colangite esclerosante surgem nem sempre associadas a dados clínicos muito relevantes, mas com forte compromisso citolítico e colestático bioquímico e que nós só detectamos isso se fizermos algumas análises nessa altura por qualquer outra razão; o que o Prof. Luís Tomé diz pois é que é muito rara a colangite esclerosante nesta fase, num rapaz de 20 anos, a não ser - e nós temos essa dúvida - que este jovem tenha, de facto, a doença há muitos anos.

Prof. Luis Tomé: A colangite esclerosante que aparece nos jovens é geralmente aquilo que se chama colangite esclerosante dos pequenos ductos, ou seja, é mais normal de que seja da periferia dos ramos biliares e depois, como a gente sabe, com a evolução e o passar dos anos essa colangite esclerosante dos pequenos ductos acaba por dar manifestações, não deste género, mas antes de estenose marcada nas vias biliares de calibre mais importante. Agora eu faço-te uma provocação, porque é que este doente não tem um Caroli com esta dilatação da via biliar principal?

Prof. Guilherme Macedo: Caroli é uma má formação das vias biliares e que se traduz por uma saculação quística da via biliar. Foi um pouco para responder a isso que fomos lá para a CPRE na dúvida da temporalidade da doença, dúvida da gravidade da doença, porque a colangite esclerosante, nós sabemos isso, em qualquer momento é uma doença muito caprichosa, não é uma doença que evolua com muita inflamação, muitos anos e depois vem o colangiocarcinoma… não é assim, há uma grande discrepância no tempo entre a expressão clínica da colangite esclerosante e a sua gravidade oncobiológica não há dúvida, sabemos isso e portanto pode surgir em qualquer momento. Este é o problema do seguimento destes doentes, e nós só chamamos para a hipótese Caroli, outra condição pré-maligna das vias biliares porque há uma descrição inicial, volto a dizer uma colangioressonância imperfeita, que diz que ali há uma dilatação fusiforme, a via biliar principal está um pouco dilatada, mas a CPRE tirou-nos do horizonte a malformação congénita da via biliar.

Prof. Luis Tomé: estamos todos de acordo, será no fundo uma colangite esclerosante na sua fase inicial

Prof. Guilherme Macedo: certo, o grande problema aqui que nós começamos a ficar cada vez mais desconfortáveis com alguns dados inconclusivos da citologia, não totalmente definidos para atipia, etc. o que nos levanta sérios embaraços, porque sabemos que na colangite esclerosante, de facto, de repente, podemos deparar com um colangiocarcinoma. Aliás uma das soluções terapêuticas pode ficar gravemente comprometida porque já se tendo o colangiocarcinoma avançado inesperadamente isso compromete qualquer solução radical.

Drª Susana Rodrigues: o doente foi avaliado em Setembro de 2011, estava assintomático nesta altura, medicado com 5-ASA 3gr/dia, AUDC 500mg 2x/dia e azatioprina 150mg. Tinha havido uma ligeira melhoria analítica, com valores de fosfatase alcalina quase normal, uma gGT aumentada e uma ALT mais ou menos 3 a 4x normal. Foi proposta nova CPRE ao doente uma vez que resultados que pedimos do escovado biliar tinham sido inconclusivos em relação à presença ou não da atipia.

A 2ª CPRE realizada em Dezembro de 2011, é basicamente sobreponível à anterior, conseguimos ver uma rarefação dos canalículos biliares intra-hepáticos e foi efectuado novamente escovado da via biliar.

Drª Joanne Lopes: Na citologia do escovado da via biliar, constituída por 7 lâminas, apenas se observaram agrupamentos de células epiteliais numa delas. Nestes grupos celulares observou-se sobreposição nuclear, anisocariose e reforço da membrana nuclear (Fig. 5). Embora a citologia não seja conclusiva, achamos que estas alterações são mais do que reactivas e transmitimos isso mesmo aos clínicos, salientando que estes grupos, apesar de raros, eram bastante problemáticos.

 

 

Prof. Luís Tomé: Essa citologia foi feita nalguma estenose?

Drª Susana Rodrigues: havia uma zona na área do ramo intra-hepático direito que não se conseguia progredir com o contraste. E foi por isso que foi pedido com esta informação de possível estenose maligna.

Prof. Luís Tomé: Os colangiocarcinomas, naturalmente podem surgir em alguma circunstância, em qualquer estenose, mas é raríssimo que surja em primeiro lugar sem um certo tempo de evolução de uma colangite esclerosante, é raríssimo que surjam em doentes que não estejam com as bilirrubinas elevadas.Num transplante em doentes com colangite esclerosante, quando se vai visualizar no microscópio ao detalhe as vias biliares, uma percentagem significativa dos doentes em que não se imaginava que houvesse colangiocarcinoma tem de facto um colangiocarcinoma, em cerca de 1/5 dos doentes, 20%. Portanto nessas circunstâncias em face a um meu doente de 29 anos que já tinha uma hepatopatia avançada comecei a fazer uma imensa pressão para que o doente fosse transplantado e a falar com franqueza, tinha um grande receio que tivesse que levar essa má noticia ao doente, de que ele teria um colangiocarcinoma quando eu já o sigo há cerca de 10 anos, teria sido realmente uma grande inércia da minha parte se isso acontecesse. Felizmente ele foi transplantado e não tinha absolutamente nada, aquilo correspondia à evolução da hepatopatia que costuma acontecer nas colangites esclerosantes. As citologias não dão diagnóstico de colangiocarcinomas num 1/3 dos casos, quando muito, e tem falsos positivos: quando há actividade inflamatória importante ali à volta aquelas células começam logo aparecer um pouco estranhas, portanto, a sua eficácia é baixa. Se o médico acredita que o doente tem um colangiocarcinoma ou tem displasia, ele tem de o mandar transplantar nessa altura, não é preciso andar a perder tempo, senão é a vida do doente que se perde.

Prof. Guilherme Macedo: estás portanto a dizer que há transplantes profilácticos?

Prof. Luís Tomé: Em certa medida, pois normalmente fazemos um transplante a uma colangite esclerosante para evitar que apareça um tumor… mas não é bem o caso que eles tem aqui, isto já começa a ter algumas citologias meias equívocas, eu no meu caso concreto que vos estive a descrever tinha um doente com uma degradação acentuada nas provas hepáticas. Uma degradação acentuada nas provas hepáticas é uma indicação imperiosa na colangite esclerosante para poder transplantar.

Prof. Guilherme Macedo: nós não recomendamos transplantação neste caso concreto. Já vimos que colangite esclerosante é uma doença caprichosa, e portanto também foge um pouco aos cânones habituais de indicação para transplantação, e tem critérios que também fogem ao comum para indicação para transplantação. Também existem scores, mas na ausência de hipertensão portal ficaríamos muito surpreendidos que este doente precisasse de transplante

Plateia (Dr. Costa Maia): Acho que este é um caso em que nós não conseguimos negociar muito bem a informação, isto é, não é possível completamente e em segurança, correlacionar a informação com uma decisão. Há colangiocarcinomas aos 20 anos e nós temos uma informação que nos diz que este doente tem uma colangite esclerosante, e temos uma informação que nos diz que este doente tem alterações que não são só explicáveis por alterações reactivas… não temos outro remédio que não seja promover uma transplantação atempada neste doente.

Prof. Guilherme Macedo: Como vêm é muito menos fácil e linear do que parece à primeira investida…

Prof. Luís Tomé: Os tumores destes colangiocarcinomas antes de desenvolverem um aspecto da massa parenquimatosa são geralmente tumores que rodeiam o ducto tem antes um componente de estenose da via biliar, é por isso que é a estenose que nos preocupa.

Plateia: neste caso não há existência de estenose?

Prof. Guilherme Macedo: obviamente que há zonas de estenose quando se diz aspecto em rosário na CPRE. Por isso nós estamos progressivamente a ser empurrados para o lado da transplantação neste doente sobretudo enquanto não dispusermos da possibilidade de explorar ainda com mais detalhe, por dentro, a própria via biliar, ver as atipias, ver as displasias em tempo real, como desejamos poder faze-lo em breve no nosso hospital. O problema, não é da transplantação que é uma coisa fabulosa e fantástica a seu tempo, mas não propriamente a melhor coisa para se dizer a alguém que tem 22 anos, que está assintomático, portanto é bom contextualizarmos isto, é a tal a dimensão humana que também temos de ter e que nos faz às vezes hesitar nalgumas decisões, e isso não significa estar indeciso, significa atempar melhor uma decisão...

Prof. Luis Tomé: Eu acho que este doente não escapa a uma transplantação, o problema que está aqui à nossa frente não é saber se ele escapa, porque eu estou convencido que com esta evolução que temos aqui é saber quando é que ela vai ter de ser feita e esse é que é o problema mais sério.

Prof. Sobrinho Simões: Vocês, gastroenterologistas, têm um medo desproporcionado em termos de custo benefício para a cancerização… Será que o transplante se justifica pelo risco de cancerização ou porque existe uma doença hepática gravíssima?

Prof. Guilherme Macedo: o problema da colangite esclerosante é ainda outro, é que não é só o medo de aparecer o cancro, não, é que o facto de aparecer o cancro nestes doentes pode proscrever, pode ser uma contra-indicação, para a própria transplantação. Esse é que é o drama nesta doença em particular, é que quando se consegue detectar o colangiocarcinoma pode já não ser possível oferecer o transplante…

Plateia (Profª Fátima Carneiro): no vosso entendimento, o conhecimento da história natural da colangite esclerosante leva a que seja inexorável o transplante e o que querem é poder fazê-lo em tempo útil e não serem impedidos de o fazer porque entretanto apareceu o colangiocarcinoma, é isto?

Prof. Luis Tomé: Profª Fátima, a evolução deste doente antecipa com que este doente não consiga escapar a um transplante, antecipa, como o Prof. Guilherme assim disse e eu subscrevo muito as suas observações, a doença é muito caprichosa, mas pela experiência que vamos acumulando, com o que se lê e com aquilo que lidamos, é improvável que este individuo com esta actividade na sua doença hepática vá conseguir escapar a um transplante; ele um dia destes vai ter estenose na via biliar principal, porque ele agora tem apenas aquele compromisso dos pequenos ductos e quando aparecer a estenose então a nossa preocupação aumentará ainda mais…

Prof. Guilherme Macedo: A CPRE mudou de facto a sua aplicabilidade no contexto da colangite esclerosante, mudou 2 vezes: no princípio, achamos que era menos importante fazer, havia risco de infecção, havia estase, zonas estenóticas, estase biliar, havia quase a promoção de infecção. Deixamos de fazer praticamente nesse contexto, depois voltou o 2º movimento, de reabilitação da CPRE neste contexto: arranjar formas de ir lá ver o que se está a passar, recolher fragmentos, saber se há displasia, se não há displasia. Obviamente a CPRE não é um exame para se fazer por rotina ou sequencialmente, tem de ser para responder a determinadas inquietações específicas. Não sei se este doente fará alguma vez mais alguma CPRE, não posso dizer que não o fará, muitas não vai fazer seguramente, porque não é nossa postura, nem me parece razoável que ele o faça. Apenas se tivermos disponível a possibilidade de ver a via biliar e de electivamente procurar uma zona que de facto nos dê o argumento final para a transplantação, só nesse contexto é que nós pensaríamos em voltar `CPRE

Drª Susana Rodrigues: vou só recordar alguns aspectos da doença: em cerca de 80% dos casos de colangite esclerosante há uma doença inflamatória associada, com mais frequência a pancolite ulcerosa; na maior parte dos casos existe atingimento intra e extra-hepático mas em mais ou menos 25% dos casos pode haver só envolvimento intra-hepático e em menos de 6% dos casos pode haver atingimento só extra-hepático; há uma diferença entre o envolvimento dos grandes e pequenos ductos como o Prof. Tomé disse e é mais frequente numa população pediátrica ver doença de pequenos ductos na colangite esclerosante primária. Tradicionalmente o exame “gold standard” é a CPRE embora com os riscos de pancreatite e colangite, a modalidade diagnóstica mais utilizada e preconizada é a ressonância.

Existe aumento de risco de colangiocarcinoma, do carcinoma colo-rectal nos doentes com doença inflamatória intestinal, do hepatocarcinoma, carcinoma pancreático e carcinoma da vesícula biliar nos doentes com colangite esclerosante primária. Embora a terapêutica mais utilizada é o AUDC não existe evidência que com este tratamento os doentes não tenham um avanço histológico, progressão dafibrose, nem que aumente a sobrevida, nem que diminua a taxa de mortalidade, nem que exista uma diminuição da taxa de necessidade de fazer transplante.

Portanto, em resumo temos um jovem de 22 anos com pancolite ulcerosa imunossuprimido com azatioprina dose 2.5 mg/kg, uma colangite esclerosante primária com predomínio intra-hepática na CPRE com uma histologia sugestiva de fibrose avançada (na biópsia tinha pontes porto-portais)e uma citologia das vias biliares que levantava a dúvida de atipia.

Perante isto, a proposta terapêutica é a de manter o AUDC por uma questão quimioprofiláctica, vigiar como qualquer doença hepática colestática a densitometria óssea. Teremos de efectuar colonoscopias anuais com pesquisa de displasia por causa do aumento do risco de carcinoma colo-rectal; é controversa autilização dos marcadores tumorais CA19.9 e a colangioressonância anuais, para vigiar estes doentes para o aparecimento de colangiocarcinoma e no futuro deveremos ter novas tecnologias, nomeadamente endomicroscopia confocal que permite uma visualização de histologia em tempo real através do endoscópico com utilização de uma sonda o que neste caso pode ser extremamente útil.

Prof. Luís Tomé: A maior parte dos doentes com colangite esclerosante morrem no contexto de hipertensão portal e não de colangiocarcinoma, morrem com hepatopatia terminale em percentagem ainda assim reduzida, surge o colangiocarcinoma

Prof. Guilherme Macedo: ainda que nós tenhamos esta percepção que a transplantação está no horizonte, nós não sabemos quão longínquo é esse horizonte, daí a necessidade de eventualmente termos de esperar algum tempo; mesmo a indicação para transplante é uma indicação controversa e quando se põe indicação não significa que vai ser transplantado na semana seguinte ou no dia seguinte, portanto há aqui um intervalo de tempo que vai ter de ser gerido também com muita parcimónia. Quando se propõe alguém para transplante, há que contar com algum tempo de espera, variável, imprevisivel... idealmente este doente deve ser acompanhado num Centro que também seja capaz de fornecer o resto do tratamento, que é a transplantação, para não haver vícios de comunicaçãooulinguagem: porque há perdas de informação quando há muita comunicação, esse é também um dos aspectos importantes, no acompanhamento destes doentes. Com o risco acrescido de carcinoma de cólon e recto muitas vezes se pôe a questão, por exemplo, se na transplantação se poderá ou não fazer sentido a colectomia, assunto muito discutido noutras ocasiões e noutros contextos

Prof. Luis Tomé: Para uma doença não clássica os critérios clássicos dizem assim: quando 2 medições da bilirrubina total separadas por 6 meses forem superiores a 10mg/dl deve ser transplantado. Há portanto alguma adaptação dos critérios rígidos à evolução clínica destes doentes

Prof. Gulherme Macedo: Vemos assim que a complexidade da situação clínica deste jovem precisa ter uma abordagem integradora e algoritmizada. Um algoritmo heurístico, de adaptação constante e apropriada à variabilidade e mutabilidade que todos estes aspectos apresentam.

A condição clínica é desafiante e estimuladora, porque desafia a nossa capacidade cognitiva e racional, e estimula a nossa mais profunda sensibilidade humanista. Do equilíbrio desta s forças resulta o comportamento medico mais adequado. Ao seu tempo e ao seu modo.

Felicidades para todos.

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